sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O dia em que uma cueca virou coador de café

Tinha eu 16, 17 anos. Zé Quintão, meu colega de igreja, bagunças e galinhadas, a mesma idade. Afinal, somos de época idêntica, diferença de poucos meses, e nos encontrávamos nas férias ou intervalos de aulas em São Sebastião do Rio Preto. E ocorreu uma noite inusitada. Às 20 horas, quando saí de casa num instante qualquer,  meu pai me avisou: “Se você chegar hoje depois de dez horas vai ficar na rua.” Não dei bola para aquela advertência. Entrei no meio da turma e daí esquecemos as horas, depois de galinhadas e seresta. Deu 3 horas da madrugada, veio sono pegar a turma, menos os dois Zés. Contei pro meu amigo: “Olha, se a porta de minha casa estiver fechada, vou sumir do mapa”. A resposta do Quintão veio em cima do que imaginava: “Vou com você!”

E partimos Rio Preto acima, depois de arrumar as trouxas. Biscoitos, bolos, pães, panela, caçarola, sal, gordura, arroz, carne e um litro de cachaça, uma capa e um cobertor. Pegamos a beira do rio nas proximidades da Praia da Conquista. Marchamos. No corpo, uma roupa só. O dia de amanhã não interessava. Caminhamos, pedras sobre pedras, com uma lanterna, tudo produto da casa do Zé.  De repente, chegamos defronte uma cidade, já cansados. — Uma cidade? — era a nossa arguição. Ao  olhar e manjar, constatamos que aquele seria o povoado do Porto, localizado a seis quilômetros da Vila de São Sebastião.

Dormimos a primeira madrugada, depois de uns tragos e um bom sanduíche, quando o dia ameaçava raiar. Como dormimos: no chão, nas folhas, cobertos pelos cobertores. E o dia raiou. Nem uma escassa alma passava por lá. Zé Quintão resolveu tomar uma decisão: foi à rua, como dizíamos, fazer uma feira. E de lá trouxe algumas frutas e um reforço para o almoço, com garfos e facas, dois pratos e anzóis. Passava eu o dia sozinho, foragido, quieto, pronto para viver naquele ambiente delicioso, as cachoeiras fazendo barulho, o rio  caudaloso, eu nem aí, pensando no para sempre. Cobras, soins e lagartos não nos preocupavam. Essa solidão transcorria durante o dia, até que aconteceu, lá pela sexta noite, Zé Quintão não voltou. E venci a madrugada na solidão completa que parecia dos cem anos de Gabriel García Márquez.

E foi assim até o 15º dia. Pescando, lendo, bebendo cachaça, também com limão, fritando peixes e vivendo como indígenas ou eremitas. Nem queríamos saber o que pensavam de nós e daquela loucura juvenil.  Até hoje não sei e nem procurei me inteirar das fofocas. Meio mês só com água e cachaça, sentimos falta do café. Então, o amigo Quintão foi novamente à rua e trouxe apetrechos para o moca: pó, açúcar, vasilhame, tudo parecia certo. Mas na hora de virar a água no pó, cadê o coador? Não tinha. O que havia, sim, era a minha cueca, tipo samba-canção, que tirei para lavar. Zé Quintão, muito zeloso, deu a ela mais limpeza ainda e, usando sabão de barra, a esfregou com esmero e vontade.

Depois de lavadinha, a esticou no vasilhame todo de metal. Virou a água fervilhando no pó, sob o reino da fumaça, que cheirou no lado oposto  do rio, nos disseram depois quem passava por aquelas bandas. Estava limpo o novo modelo de coador, ninguém viu, ninguém comentou e guardamos o segredo durante mais de quarenta anos. Em comum acordo com José Quintão de Almeida elegemos aquele café o melhor de toda a nossa vida. Afinal, fazia 15 dias não tínhamos contato com a civilização, nem com café fraco ou forte. 


Devido à insistência e os recados que recebi, voltei para  casa, depois de meu pai implorar, e daí para a frente nunca mais fechar a porta da casa. Consegui, então, o passaporte para a liberdade nas noitadas de minha terra. Essas passaram a ser notáveis, brilhantes, inesquecíveis.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Por uma Itabira mais humana e sem precisar de mártires

Vinha eu na Avenida Mauro Ribeiro Lage, onde os cidadãos preocupados com a forma física escolheram como seu espaço de caminhada, era quase nove horas e o tempo de quem trabalha estava vencido. Inesperadamente, do outro lado, a dez metros de mim, ou a um passo, diria, uma figura feminina voa ao ser arremessada por um dos 60 mil ou mais veículos que inundam Itabira de odor de combustível e fumaça. Não sei o que penso e passo depressa ao lado da mulher, pálida como uma santa, totalmente inerte, para conferir o seu semblante, já que só podia ligar o 192. Sem pensar, cercado por uma multidão que começa a se formar, como acontece sempre comigo escurece a visão, vem uma quase incontida tonteira e tenho que zarpar para não me tornar mais uma vítima.

Em seguida, da janela de meu apartamento vejo as cenas, depois de ingerir a  necessária água. O rápido Samu chega com dois veículos e agora o que interessa é saber se aquela santa-mártir sobreviverá. Não, infelizmente, o presságio de sua morte invade o meu cérebro, mas registro o momento como marcante em minha vida negativamente. Em pouco tempo, redesenho na mente a estampa pálida da septuagenária senhora, recordando que se tratava de uma viúva, religiosa, piedosa, de bondade que transparece além dos gestos e atos. Eu a conhecia, sim. Tratava-se de Rosa Severiana de Freitas Oliveira, 72 anos, voluntária do Santuário de São Geraldo, ermida que tem em seu comando o querido Padre Cléverson Pinheiro e quase cotidianamente o também estimado Padre Luciano Simões.

Tento esquecer a cena dramática, marcante, dolorosa, para me localizar em problemas estruturais de Itabira. Hoje a cidade carrega um peso terrível que é o seu trânsito caótico, imposto sobre a maioria de suas ruas ou estreitas ou tidas como “para descontar o tempo perdido”, o que é, de verdade, a Avenida Mauro Ribeiro Lage, onde ocorreu o fato com data, hora e minutos anotados por mim: segunda-feira, 31 de agosto, 8h52 exatos. Vejo os quebra-molas abundando por vias e mais vias urbanas e praticamente inócuos. Vejo as rotatórias sendo mais um motivo de medir a impaciência e o egoísmo das pessoas do que uma disciplinadora para todos. Vejo a Avenida João Pinheiro e outras mais, como Cristina Gazire, Li Guerra, Almir Magalhães entre tantas sendo transformadas em pistas de corrida e pergunto: onde está a educação do motorista?

Além da falta de polidez há a desatenção. Em raros momentos são vistos os agentes da empresa que cuida do trânsito fiscalizando velocidade, segurança do pedestre. Na Mauro Ribeiro os motoboys abusam sem limite nas 24 horas do dia. Já os guardas se concentram quase na fiscalização dos estacionamentos, querem o talão marcando o tempo de permanência do veículo, ou nem querem, porque o melhor para eles é, sem dúvida, arrancar uma multa, fazer subir a arrecadação. Diz a  boca pequena que a Prefeitura se anuncia como “quebrada”, embora não tanto quanto o povo, sugado, dolorido, maltratado, em processo de humilhação pelo desemprego, salários corroídos pela inflação ou mesmo esgotados pelo esquema pernicioso que o governo impõe aos aposentados de há muito tempo.

Depois de dizer tudo isso, volto à Dona Rosa, a verdadeira responsável por estas linhas e mártir que aparece para chamar a atenção e fazer com que Itabira volte a ser humana como já foi um dia e seja uma cidade das crianças, jovens, adultos, idosos e não de carros novos, velhos, importados ou chiques. A vida virou uma correria desenfreada rumo ao dinheiro, mas as autoridades precisam pensar mais no ser humano, na sua segurança. Governar não é apenas arrecadar e punir. Na falta de um líder para chamar todos à responsabilidade, nomeamos a humilde Dona Rosa, que deu sua vida para o retorno da educação e do espírito humanitário, que pode estar dizendo isto agora: “Morri para que todos vocês, religiosos de qualquer crença; membros de clubes de serviço, de jovens, de mães, de lazer; profissionais da imprensa, do ensino, da justiça, das empresas; dedicados a associações de bairros, sindicatos de classes, organizações de toda ordem e bem-intencionadas; para que Itabira inteira se junte, se abrace, se confraternize faça uma promoção do fim da violência em todos os níveis e, principalmente, no trânsito, que faz vítimas inocentes em praticamente todos os dias."

E aí convocamos todos a entrar na mesma sintonia daquela senhora que teve morte violenta mas que poderia ter sido, como muitas outras que ocorrem sempre, para mudar a nossa história. Viver bem e saber evoluir na face da Terra é a missão de todos nós. Os mártires são outros quinhentos, esses morrem para suprir a nossa ignorância. E chega de burrice e desamor!