quarta-feira, 1 de julho de 2015

Uma história verdadeira e de arrepiar

O relógio da Fazenda dos Bambus marcava 15 horas e eu arrancava sozinho dali, montando a Mula Queimada do meu avô Serafim rumo a São Sebastião do Rio Preto. Era fim de férias e acabava a vida mansa que curtia sempre em Santo Antônio do Rio Abaixo, muito bem cuidado pelos tios Magda e Antônio do Inhô. Apesar dos meus 11 anos de idade, naquele tempo os meninos eram mais livres porque não havia banditismo por aí. Ao sair, recebi as bênçãos dos meus tios e o adeus dos primos  Edson, Edir, Edilon, Elair, Edvar, Ernane, Eliane,  Eustáquio, Edésio, Fernando e Antônio (reparem que, quando o estoque de “E” acabou, passou-se para o “F” e o “A” foi o ponto final no herdeiro do nome do patriarca).

São 18 quilômetros de percurso, e a boca pequena dizia seis léguas. O tempo normal de viagem dificilmente passava de três horas. A Mula Queimada, imponente e respeitável, era o xodó do meu avô, e eu, como neto mais velho o mimo dele, que tinha o privilégio de fazer o que queria. O tempo fechado para chuva naquele final de janeiro continha ameaça, não para mim que tinha umacabeça doida de criança. Mas a chegada rapidamente do toró fez com que, num momento de tempestade, me aconchegasse dentro do curral da fazenda do lendário Deolindo do Morro Grande. Vejam como eram pomposos os nomes de antigamente.

E lá ia eu, corajoso e muito seguro porque a Queimada era um verdadeiro gigante das estradas, melhor ainda que estava “ferrada” nas quatro patas. Uma pequena preocupação passou por minha cabeça quando começou a escurecer. Na altura do Córrego dos Casados, onde me casaria 14 anos depois (o tempo daquela época era mais vagaroso, como diziam nas grotas e até em cidades grandes), já estava muito escuro, não tinha o chatérrimo horário de verão, e passava de 18 horas. Daí pra frente era um pulo, bastava virar o Retiro do Niquito (meu futuro sogro) para o Retiro do Tãozinho do Godó (meu pai). Mas uma nova tempestade me pegou no Mato do Chico Lopes, onde morava outro lendário personagem, o Zé Miguel, de longas barbas, que mais parecia um personagem bíblico, que saudava todos os que passavam por ali, a cem metros de distância. Para mim, ele gritou aos super berros: “Ô minino, desce dessa besta que a chuva tá muito dimais da conta!”

Segui viagem numa escuridão de fazer medo, mas a Queimada enxergava até vagalume de lâmpada desligada. De minha parte, só via a estrada quando relampejava. Eram fortes relâmpagos de alta tensão como no teatro com trovões de batucada no céu, como as crianças diziam. O grande desafio da viagem estava por chegar. Ao virar o alto do Morro do Retiro do Tãozinho Godó, depois do Godó, em seguida do Zezé Godó, vi lá o Rio Preto transbordando, ou bufando, palavra comum do dicionário daquelas grotas. Neste momento, tive uma passageira tremedeira porque me lembrei de que a famosa Ponte do Rio Preto estava semidestruída. Digo semi porque a estrutura dela foi feita de ferro, aço, pedras e cimento, às custas do meu avô Godofredo. Ele até ficou “quebrado” porque não recebeu do Estado o pagamento pelo que fez como Conselheiro Municipal. E a estrutura serviu para apoiar a ponte construída em 1960/61 pelo governador Magalhães Pinto. A opção era o chamado vau.

Abro um parêntesis para explicar o que é vau, de acordo com o Aurélio: “É um trecho de um rio, lago ou mar com profundidade suficientemente rasa para poder passar a pé, a cavalo ou com um veículo.”
Mas, como disse, o Rio Preto bufava, ou estava a alguns metros acima de seu nível normal. E eu, meio tremendo e meio  corajoso, pensei comigo: não tenho alternativa. Voltar para aonde? Para Santo Antônio do Rio Abaixo, impossível, já fazia mais de 4 horas e meia que estava viajando às pelejas. Casas, evidentemente há, mas são poucas e eu não tinha liberdade com ninguém. Um senhor chamado Joaquim Godó, morava atrás, no retiro do meu pai, mas me sentia tímido para pedir pousada. Decidi: vou atravessar este mar! Nisso, um morador próximo, de nome João Hermógenes, chamado engraçadamente de João Imorge, viu aquele quadro, pegou o guarda-chuva e gritou: “Minino, nem pense em atravessar este rio! Está “bufando”. Volte para algum lugar.”

Que voltar que nada! Deitei-me na Mula Queimada e me agarrei ao seu pescoço como se fosse um índio de filme faroeste.  Direcionei a rédea para o local que imaginava mais livre de pedras, pois sabia que o risco seria o animal tropeçar e cair. Daí para a frente, bambeei o guidão e o barbicacho...O baixeiro, todo molhado de suor, começou a se encharcar de água suja de barro do Rio Preto, que corria em violenta correnteza. Eu no pescoço da mula só pensando em chegar do outro lado. Não medi o tempo, mas calculei horas, infinitas, eternas. Quando pensava que chegava do outro lado, a correnteza obrigava o animal a nadar, sem apoio para os pés. Mas, aos trancos e barrancos, chegamos ao outro lado.

Aliviado, molhado, tremendo de frio, toquei triunfantemente para a casa do meu avô, onde desarreei a Mula Queimada aos olhares de Serafim Sana de uma janela e Vó Maria de outra. Gritavam sem parar e me mandavam esperar a chuva passar. Não esperei porque a tempestade durava 5 horas de sequência ininterrupta, sem projeto para parar. Soltei a Queimada no pasto, guardei os arreios e apetrechos e zarpei a pé para a casa dos meus pais e minha também.

Conversa nenhuma, papo nenhum, pergunta nenhuma. Um chicote afiado me aguardava friamente: duas, três lambadas na poupança, outras nas pernas, alguns puchões de orelha, de castigo, ajoelhado na sala e mais umas duas horas de oferenda a Deus de um castigo por minha coragem intimorata de enfrentar o rio transbordante e, mais ainda, a falta de coragem de pedir pousada a um morador da estrada ou retornar para a Fazenda dos Bambús. Ao ser liberado do castigo, meu pai me perguntou: “Que tipo de arte você cometeu hoje?” E eu não respondi. Só tomei mais uns arranques, depois o banho, e fui dormir feliz da vida por não ter nem morrido e orgulhoso da história doida que vivi.

  

Dedico este texto à minha prima Afra Regina Sana, que duvidava ou duvida de que já fui cavaleiro; a Marcos Paulo Almeida Sá e Myriam Christina, esses dois últimos amigos de São Sebastião do Rio Preto.

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