quinta-feira, 22 de abril de 2021

O PORQUÊ DO AMOR A UM HOSPITAL

Tenho 16 e 17 anos de vida. Passo esses dois anos em minha cidade natal, São Sebastião do Rio Preto, esperando completar 18 para cair no mundo à cata de estudos e de emprego. Tenho algumas tarefas a executar: arar terra, prender bezerro, ajudar na ordenha de vacas, ser balconista do Bazar São Geraldo, de meu pai, engraxar sapatos, editar o jornalzinho Folha Sebastianense e dirigir um jipe. Também tenho o hábito inexplicável de subir o mais alto morro acima de nossa casa, sempre ao meio-dia, para ouvir as “dinamitagens” da Vale a 42,72 km em linha reta (IBGE), estrondo vindo do Pico do Cauê, em Itabira. Cisma de Tutu Caramujo. A então Vila de São Sebastião só tinha dois veículos motorizados: o jipe do Lucinho Moura e esse fabricado pela Willys Overland do Brasil. Motorista que fazia “corridas” somente eu.



  MOTORISTA DE AMBULÂNCIA?

Bem, aos 16 anos não sou apenas um chofer do carro do ano. Precisamente, meu tempo divide-se em 80% ocupado em transportar mazelados ou para Ferros, ou Santa Maria de Itabira, ou Itabira. São enfermos de verdade, ou suspeitos, desconfiados, acidentados ou doentes terminais. Um pescador qualquer estoura a mão com dinamite; um bêbado eventual cai de uma ponte; uma mulher grávida está em trabalho de parto —  chega um chamado às pressas para levar o paciente para socorro imediato, a mim que estivesse ou na primeira esquina ou no alto da serra, contemplando o tiro na hematita itabirana.

 Noventa por cento dos destinos têm um alvo: Itabira, e cem por cento o Hospital Nossa Senhora das Dores. Alguns perdem  litros de sangue que jorram em baldes, outros gritam de dor, crianças agonizam, velhos padecem, eu testemunho, com o coração despedaçado e as mãos agarradas ao volante, às vezes voando, ao vivo, tristes despedidas da vida.

Já voltei em alguma ocasião do meio do caminho, quando a vida tinha sido perdida. Na maioria das viagens da ambulância sem sirene, acompanhava-me, alguém de boa vontade, mas estou sempre sozinho com o doente, até o seu destino. Sem convênio com município algum, o hospital de Itabira não podia receber adoentados vindos de outras comunidades além dos limites geográficos itabiranos.

E estou agora na porta do HNSD. Uma atendente abre  a janelinha da porta para dizer um “não” sonoro, eu o ouço antes de ter sido pronunciado, porque conheço o sistema, nem pagando, quanto menos indigente forasteiro. Está escrito no regimento interno. Tenho, então, de ir à casa do diretor, que pode  ser Dr. Eduardo Costa, ou Dr. Edson Machado, ou nem me lembro mais quem para reiniciar as frases treinadas: “Está perdendo sangue, vai morrer se não for atendido”. O médico tem que ser humano e todos assinam a ordem de internação, comovidos por gemidos que ouvem. Acabam debruçando, mesmo no caput quente do jipe, para rubricar a autorização de atendimento.

E lá vou eu feliz da vida de volta ao hospital para ser recebido, agora com ordem superior, e contribuir, graças a Deus, para a salvação de uma vida preciosa. Que orgulho tenho me domina o hospital pela parceria! E quão feliz me sinto mesmo atravessando anos a fio daquele tempo distante, mas inolvidável!


UMA VIDA DE ITABIRANO

Os anos passaram, meu emprego, depois de labutar na imprensa de Belo Horizonte, bateu às portas da antiga Companhia Vale do Rio Doce, na cidade que me acolheu, Itabira. Aqui me fixei definitivamente, mesmo intercalando estudos na capital, e sempre usando o hospital, não há quem não necessite dele. Quando era vereador, sempre e sempre solicitado por amigos e eleitores e, como cidadão comum,  afinal sou também um ser que adoece e sempre fui um feliz bem-atendido.


 MINHA PERENE GRATIDÃO

Nunca em toda a vida me esqueci de, depois de atendido ou tendo um parente bem-atendido na casa de saúde, escrever um bilhete, ou carta, ou SMS, agradecendo pelo tratamento praticado. Não vou citar nomes alvos de meu preito de gratidão, recordo-me ter enviado a Dom Mário e a Márcio Labruna, dois ídolos que tenho no coração como exemplos de dinamismo e dedicação.

O impaciente que pode estar lendo-me deve perguntar: “Só por isso você ama o hospital?” Não seria pouco agradecimento se não soubesse que, na verdade, sempre denominei o HNSD de “Valente da Saúde”, podem conferir em Itabira e Centro-Leste em Revista de novembro de 1993 (edição 11, páginas 16 a 19). Na época, a Irmandade chegava aos 139 anos de existência resistente.


O VALENTE  DA  SAÚDE

O Valente atende a mais de 20, ou 30 e até 50 encaminhados por municípios nesta pandemia e vai transpondo barreiras, lutas ferrenhas e sem entregar-se. Desafios imensos e indizíveis pela frente, cada vez mais tenazes. E atende Itabira com todas as suas resistências, que vêm de provedores, médicos, enfermeiros, técnicos, ajudantes, escriturários, faxineiros, cozinheiros, trabalhadores, enfim. Um grupo unido de trabalho com a alma aberta e até sorrisos quando a barra está pesada.

Não vou mais dizer o porquê deste amor que se estampa  na cara, nem vou me lembrar de provedores e diretores, para não cometer injustiças. Mas gostaria de citar aqui um fato ocorrido numa época em que o saudoso Dom Mário Gurgel  fora chamado para dar extrema unção ao hospital que morria, desta vez aceleradamente. As vozes das ruas pareciam gemer unissonamente: “Vai fechar, vai fechar, vai fechar!”. Então, cabia a presença de um verdadeiro milagreiro para resolver a questão. E santo por aqui era somente o salvador também da Funcesi. Como faz falta a Itabira este gigante encurvado e forte que veio do Nordeste!

Como o herói retirou o hospital da situação pré-agônica?  Dom Mário mexeu com os pauzinhos e montou UTIs de luxo, atraindo recursos da Vale. Convidou a comunidade para a inauguração. Eu estava lá. Nós, da imprensa, intrigados, perguntávamos uns aos outros: “Como alguém, à beira da morte, pode sair esnobando luxo no meio de dívidas impagáveis?” A pergunta que fiz ao bispo antes da solenidade ele a respondeu em seu discurso: “Para sairmos do caos, tivemos que construir fontes de fornecimento de serviços a quem tem dinheiro. Quem tem dinheiro sustenta o nosso hospital. Está explicado como saímos das contas em vermelho para as cores azuis”.


REAFIRMANDO A MINHA OBSESSÃO INFINDÁVEL

Para encerrar quero repetir, com perguntas, a quem pode ter a tolerância de me ler::

 — Você mora em Itabira ou na região de Itabira?

  Você tem consciência de que pode adoecer ou se julga um ser imortal?

  Você nunca foi ao HNSD e nunca viu como lá o trabalho é sério?

  Você pensa que o hospital pode salvar vidas, inclusive a sua e dos seus entes?

— Você já teve na vida a alegria de ter podido salvar doentes como eu tive?

 Se você for contra tudo o que acabo de rabiscar, tudo bem, siga o seu caminho. Mas se quer ser como sempre quis, sempre sou e serei, entenda a minha repetição obsessiva de uma frase que não me canso de com ela refletir de coração aberto: amo o Hospital Nossa Senhora das Dores como a maior fonte de caridade que há por aqui. Amor juntado a esperança, virtudes que necessitam ser estendidas. Para que sempre prevaleçam o bem e a verdade para além da vida e para além da morte.

 Amém.

José Sana

Em 22/04/2021


sexta-feira, 2 de abril de 2021

CARTA ABERTA AO SENHOR MANOEL LAUQUIDAU

 Prezado Senhor Manoel Lauquidau,


Cordiais saudações.


Aqui quem vos aciona de  meu computabrito  é  o Cabrito Doido, fugido de clínicas de tratamento de doideira  porque estava sendo maltratado e via que loucos eram eles.

Pois é, me dirijo ao senhor por ter inventado esta tal de dia da preguiça, aumentado para semana do desleixo e agora virou mês da vadiagem detida.

Então,  me trancaram na choupana e meu capim está acabando. O compadre Zé Maneca Bodaço teimou e ficou debaixo da cama com medo do senhor. Foi achado lá desmaiado de  fome. Não fossem as orações da senhora Cabra da Peste, esposa dele, teria ido pro Cafundó do Judas ou Quintos dos Infernos.



A Senhora  Covid, pelo nome  já diz que está convidando a gente para lhe dar um abraço e ficar contaminado. Diz mais: seria Convid, mas o computabrito do Joaquim Mandioca pipocou e vomitou a letra “n”. Quer dizer: a montanha não vem a nós; somos nós que vamos à montanha da Covid. Tudo isso é mostrado pela TV JC em sua retrospectiva de contaminados em lista maior que a de Schindler.

A falta de capim-meloso ameaça a Cabritolândia toda. A fome está chegando com brutalidade. E sem perdão. Tudo o que tinha de comer nas ruas principais de Cabritolândia e ao redor já foi catado pela cabritada. Existem algumas hortas ainda, mas a polícia caprina resolveu cercar tudo e não deixar passar  ninguém. Mandam a cabritada para casa. E nem temos casa. Pode?

Quero dizer a você, meu caro Lauquidau, que nos faça o seguinte favor: saia fora da raia e nos deixe viver. Ensine esse povo o que é tratar da doença do Josué Coronga. Vá a Rondônia e veja o que o governador de lá está fazendo. Longe pra ir, não é? Pois, então, siga o caminho de Itajubá, no Sul de Minas. Lá combatem a Covid antes de ela chegar.

Meu caro Senhor Lauquidau, sei que o senhor está rindo da falta de inteligência do ser caprino-humano que nos rodeia. Diz o ditado que um cabrito com iniciativa chifra até a mãe e o pai dele. É o que está acontecendo.

Não vou me prolongar mais. Só vou adverti-lo sobre a  maldade que o senhor está fazendo, pedir-lhe ajuda e que  ensine o povo de Cabritolândia a ser mais esperto. Então, faça-lhes lives, dê entrevistas no Jornal da Cabritada, escrito e televisado (JC), explique direitinho a maldade de ficar sem capim-meloso ou capim-gordura.

O cálculo é fácil de se fazer: qualquer um fica com a barriga murcha, acaba até o capim-cheiroso, qualquer bode se enfraquece. Em se enfraquecendo vem a anemia e o bode passa a não aguentar a subir em talhados. Vem a seguir a principal fraqueza que é uma comorbidade inapelável. Os bodes, bodinhos, bodões, cabras, cabritos e até os cães vadios, os vira-latas, estão sendo frontalmente atingidos.

Liberem esses cabritos para invadir hortas. E adotem o tratamento por prevenção, enchendo-lhes a barriga de tudo o que é verde. A ordem dos lugares comandados por onças, tigres e até elefantes não há  a tal Maria Fome, nem a peste e a guerra na busca de bendita braquiária, já praticamente um substantivo abstrato, ou seja, inexistente.

 Atenciosamente.

 Assinado: Cabrito Doido de Jogar Pedra da Silva

 

P.S.: 1. Sou alfabetizado em Cabritolândia. Não  sei  escrever Lauquidau em inglês.

 

       2. Estão aterrorizando a cabritada toda. Juntem o número de mortos e joguem  tudo num dia só. Cabritos também se suicidam. 

     3. Cabritos fazem entrega de sanduíches de capim pra  todo lado. Nesta semana perdemos meia dúzia de bodes de entrega. Culpa  sua, senhor Lauquidau!

       4. Ninguém sabe nada de Coronga. Apresente o marido da Covid-19 a eles para que aprendam lições fabulosas.

       5. Anotem nos seus caderninhos de apontamentos: sempre prometi e repito que não se aglomerem na cidade, sejam seres distanciados, nem briguem por causa de capim de espécie alguma.

   6. E contem comigo de máscara, luvas, sapatos esterilizados, toalha pendurada no chifre para lavar as mãos de meia em meia hora. Prometo jogar um balde de água no Senhor Lauquidau se não rachar fora já.


O MESMO CABRITO