segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Em defesa da publicidade

Dia deste li um comentário de uma pessoa que se apresenta como inteligente e culto nas páginas do Facebook e de outras páginas da vida. Em um arroubo de fazer inveja à chegada de um leão em um circo, soltou o seu rugido ensurdecedor: “Quem vende anúncio mama nas tetas do governo”. Nem sei se foram essas as suas expressões, talvez não, o significa foi o mesmo. Em outras palavras, classificou o anúncio de televisão, rádio, internet, jornais e revistas como uma doação de quem paga para quem recebe.

Quis dar uma resposta imediada ao dito cujo rapaz, itabirano, arredio, meio atrevidinho. Calei-me e me entendi como ter agido corretamente. O assunto iria render e assunto que  rende na internet vai de janeiro a dezembro, ou até mais. Esquecendo o momento, agora resolvi não dar-lhe resposta, mas prestar um esclarecimento aos que vivem de olhos tapados por uma peneira de granulometria de grandes buracos.

A publicidade é uma ferramenta de consumo, uma forma de tornar conhecido um produto, diferente da propaganda, que é uma difusão, uma propagação da ideia, ou um anúncio, este um instrumento dela. Ela é regulamentada e tem profissionais especializados que cuidam do seu sítio. Há um curso de  Publicidade, às vezes acoplado ao de Jornalismo e Relações Públicas, regulamentado no Brasil. Quem se forma em publicidade tem autorização para exercer a profissão de publicitário.

Como espaço para movimentar a publicidade — criar, elaborar e difundir — existem as agências, legalmente constituídas, que vendem o seu produto encomendado pelo cliente, o dono da mercadoria. A mídia, para ser um meio que chega ao consumidor, recebe as publicidades e as difunde. Então, concluindo: quem divulga a publicidade  manipula a sua matéria-prima, que vale dinheiro como qualquer outro produto. Alguém vai à padaria e compra pão, biscoitos, bolachas. E as consome. Esse consumidor não deve nada a ninguém, comprou, pagou, como o dono da padaria e outros clientes.

Então, o dono da agência, assim como o proprietário do veículo em que é difundida a publicidade, nenhum dos dois devem ao anunciante, o cliente, seja ele do poder público ou do privado.Era somente o que queria dizer ao idiota descuidado que rosnou besteiras nas linhas do face. Talvez acostumado a ouvir os verbos mamar, sugar, enriquecer, tenha pensado que o produto nada custe ou nem deve custar ao seu dono para ser conhecido.

Durante 18 anos de diretor da revista DeFato, normalmente circulava numa região de certa forma imensa:  Centro-Leste, Centro-Nordeste, Vale do Piracicaba, Vale do Rio Doce, Vale do Suaçuí, Vale do Aço e Vale do Jequitinhonha. Como editor, percorria, mensalmente, praticamente, todas essas regiões. Rodava no meu Fiat 3 mil quilômetros por mês, tendo chegado a 5 mil em média quando a missão incluía a Estrada Real. Acompanhava as pesquisas de opinião, f eitas por um instituto, que era parte do grupo, o DataFato. Por meio dele, sabia dos anseios e  conhecia o valor da revista, quem a lia ou quem não lia.

Avaliando a produção da publicidade, que percorria os olhos de milhares de pessoas, eis aí a matéria-prima do negócio: o veículo de comunicação. Então, quem vende publicidade, vende o seu produto acabado, vende o seu pão, a sua bolacha, o seu biscoito. A diferença não existe, então, de outra mercadoria que é entregue nas lojas, nos supermercados, na praça. Alto lá, portanto, a publicidade, chamada de arma e de alma do negócio, é uma forma legal e normal de provocar a venda ou a avaliação positiva de alguma coisa.
Tá falado, ou quer mais, seu falador, dono do mundo!

sábado, 28 de dezembro de 2013

Quem mata mais: as enchentes ou a BR-381?



Para começar  este  papo que promete  ser curto porque é desagradável para muita gente, estou mudando o nome da tal Rodovia da Morte. É injusto, de acordo com o panorama geral, que ela tenha nome no singular. Afinal ocorrem mortes todos os dias, então está explicado e convém chamá-la sempre de Rodovia das Mortes.

Agora, vamos às chuvas. Os jornais impressos, falados e televisados deste final de ano estão mostrando imagens repetidas de desolação por causa das chuvas. Muitos pensam que tem o dedo de Deus nisso tudo. Discordo. O tempo, o período, a época é de chuva. O que está errado é o desrespeito às normas naturais: estradas malfeitas, construções sem infraestrutura, barrancos mal escorados, enfim, um número infinito de prática da engenharia atropelada pela falta de bom-senso.

As chuvas permitiram inspeções de autoridades que desejavam ver  a situação de perto. Trata-se de uma demagogia institucionalizada. Em um helicóptero, sobrevoaram Fernando Pimentel (ministro não sei e nem quero saber de quê, mas pré-candidato ao governo de Minas), Antônio Anastasia (governador de Minas Gerais), Dilma Rousseff (presidente da República e candidata à reeleição) e a prefeita de Governador Valadares (não decorei o seu nome). O quarteto do impressionismo viu com os olhos de ver, ouviu com os ouvidos de ouvir e sentiram com a emoção de sentir a gravidade dos acontecimentos.

O resultado da visitação aérea de áreas atingidas foi a rápida manifestação presidencial que já tinha frase pronta antes de chover: “Todo município atingido tem o direito de requerer verba que será liberada em 24 horas”. Depois, as regras para liberação, etc. e tal. Fica registrado o seguinte: valores ilimitados, verbas fáceis de serem abocanhadas nos cofres da União. Tudo certo no país do tem dinheiro sempre.

A BR-381 é, hoje, a maior vítima de protocolos, emperramentos, burocracias, enrolos, falta de vontade política, escândalos, tudo o que se queira pensar em tom negativo. Há anos anunciam a sua duplicação no trecho Belo Horizonte a Governador Valadares. A Rodovia das Mortes mata mais que enchentes, tempestades, tsunamis, terremotos, terrorismo, homens-bomba e toda as desgraças que assolam o planeta. Basta o helicóptero presidencial sobrevoar em qualquer dia escolhido, de janeiro a dezembro, com a mesma tripulação, que  verá as calamidades ocorrendo.

Mas a BR-381 não tem nenhum cartão corporativo para fazer obras necessárias, para atropelar protocolos e má vontade política. Argumentam com as leis, com as normas ambientais, com uma série de motivos para empurrar as obras indispensáveis sempre para a frente  com a barriga. Por que a União, comandada por Dilma, não promove um estudo, que estabeleça  valores máximos, que divida os quilômetros em lotes, que monte uma comissão pública de fiscalização e que, enfim, determine: “Comecem e terminem já!?”

Poderiam  contra-argumentar que se abre uma porta para a corrupção. Mas a réplica está pronta: de qualquer maneira haverá corrupção, os ladrões de plantão estão sempre de boca aberta. Decretando uma super calamidade pública, talvez mude o panorama: uma empreiteira toma conta de pequeno trecho, vigiada o máximo possível.

O que é preciso agora é que provem que essa inspeção do quarteto medíocre não estava fazendo uma bruta demagogia. Morrer por morrer, o decreto que mata na Rodovia das Mortes é diário, sempre, infalível e inquestionável. 

Vergonha na  cara já!

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

João Lagoa, personagem folclórico e inesquecível de São Sebastião do Rio Preto


Por que João Lagoa? Pergunto a mim mesmo  e respondo: não sei. Só o conheci muito de perto porque era o meu filósofo preferido em São Sebastião do Rio Preto. Ah, eu chorava quando ouvia alguém, ou a multidão, rezar a Oração de São Francisco de Assis. E ornamentava a memória com os patrimônios material  e imaterial que eram relegados ao abandono. Como admirador do conjunto de riquezas locais, João Ferreira Neto, cujo Ferreira tinha proximidade com a família de minha avó paterna, Maria Natividade Ferreira de Almeida, exercia em mim domínio completo de meu bem-estar geral.

Era uma alegria imensa quando o via sentado à porta ou numa cadeira ou banco de boteco. Sua mania indescritível de se gabar em façanhas impossíveis de ocorrer, mostrando e até nos convencendo de que tinha uma imensa riqueza, isso era o que nos tirava do enfastiado dia a dia daqueles tempos. Falava, aos gritos, colocando uma tonalidade forte no final da frase: “Comprei as fazendas de Pedro Nico, Caetano Nico, Joãozinho Augusto e hoje já tenho 12, já tenho 12, tenho 12, 12, 12”. Reduzia paulatinamente as frases a palavras, como se fosse um literato formado em universidade, ou publicitário profissional, o sentido maior que queria dar aos seus anúncios. Incríveis suas metonímias, pleonasmos, metáforas e hipérpoles.

Sempre naquele estilo diferente – estatura pequena, magro, pescoço pendente para um lado  como se fosse um torcicolo crônico, o seu jeito de ser – autodeclarava-se ao mesmo tempo o maior fazendeiro da região, e  contraditoriamente pedia a alguém que lhe pagasse uma dose de cachaça. Geralmente, aquele que lhe daria o seu combustível preferido, lhe perguntava: “Como um homem rico não tem dinheiro para uma pinga?” E o Lagoa já tinha uma resposta na ponta da língua: “Fazendeiro rico não anda com dinheiro  no bolso, fazendeiro rico não anda com dinheiro no bolso, não anda com dinheiro no bolso, no bolso, no bolso!”

João Lagoa mostrava que era mesmo tocado a álcool, mas nunca se encharcava. Não deixava, como outros beberrões, que a baba escorresse pelo peito, sequer saíam cuspes a brotar da boca.  Nas suas ressacas antológicas, tornava-se um homem anormal, depressivo, chato de se ver. Quer dizer que a sua etílica condição era a preferida, principalmente por mim e conhecida como normal. Lembro-me de certo dia em que a nossa secretária doméstica, a bondosa e inesquecível Maria Lucinha, me disse: “João Lagoa tá ali na ponte”, já sabendo de minha eterna adoração por ele. Mas, antes que eu descesse em desabalada correria para vê-lo, completou: “Mas não parece bicudo”. Não fui e fiquei da janela do sobrado esperando que alguém lhe desse apenas uma dose, o suficiente para, enfim, animar o seu espírito contagiante.

É preciso selecionar as algumas de suas principais frases para que não digam que exagerei ao nomeá-lo filósofo. Vejam se tenho razão:

— “Quem tá bêbado bebe mais!” — quando lhe negavam bebida diante da afirmação de que já não aguentava mais.
— “Passarinho, que não deve nada a ninguém, tá voando há muito tempo!” — a alguém que dormia até tarde. E ele acordava o meu cunhado, José Damázio Soares, conhecido como Zé Leitoa, que era dono da linha de ônibus e ainda não tinha feito pagamento de todos os seus compromissos, aos gritos.
— “Acorda, Zé Leitão!” — outra maneira gritada da rua em frente ao quarto de Zé Leitoa.
— “Homem enfezado não come!” — a polícia, covardemente, o prendia quando estava nas ruas fazendo a criançada alegre. Diziam todos que a polícia, por não ter o que fazer, cometia essa brutalidade. E ele dizia a frase quando pessoas caridosas lhe mandavam comida na pequena cadeia de São Sebastião do Rio Preto.
— “Se o povo perguntar por mim, pode dizer que João Ferreira Neto tá pra trás acertando negócio, ta pra trás  acertando negócio, acertando negócio, acertando negócio!” — quando sentia que era a hora de ir embora. 

Mas  ir embora para onde? Ah, ele se hospedava nas fazendas da região, sempre bem recebido por todos, executando algum serviço que lhe rendesse a comida e a cama. Normalmente, não bebia nesses períodos e, assim, tornava-se melancólico, pobre, de pouca conversa e de dar pena.

Numa dessas etapas de seu silêncio, encontrei-o à beira da estrada, numa serra que divide as propriedades de meu futuro sogro, Antônio Augusto de Morais, o senhor Niquito, e de José Ferreira de Morais, o Zé do Inhô. Tinha eu dez anos de idade e ia, a cavalo, passar as férias em Santo Antônio do Rio Abaixo, na Fazenda dos Bambus, de meus tios Magda e Antônio. 

Ao vê-lo assentado e absorto, apeei do cavalo, aproximei-me e me preparei para um papo exclusivo, digno de me fazer feliz para o resto do dia.  Fui logo falando: “Oi, João Lagoa, veio comprar a fazenda do Zé do Inhô?” Mas ele não me perdoou: “Deixa de ser bobo, menino! Que diabo de conversa besta é essa, não tá vendo que sou um pobre-coitado?” Decepcionei-me totalmente, peguei o meu cabresto, caí fora e fui pensando comigo mesmo naquela cabeça de pré-adolescente: como a cachaça faz falta a um ser humano!
Mas ele não demorava a voltar ao seu estado o etílico, o natural, e sempre estava de volta à vila de São Sebastião para provocar  bons e prazenteiros  momentos a todos. Contudo, certo dia, parou mesmo de beber  e recolheu-se exatamente à Fazenda do Fonseca, de Zé do Inhô , vindo a  depressão crônica lhe tirar a vida. Só não tenho a certeza absoluta de que a sua morte ocorrera naquela fazenda. Sei que ele desapareceu do cenário da paisagem folclórica da região. E sentimos muito a sua falta, como até hoje.

O que acabo de escrever não é um biografia. Já rabisquei para vários jornais e revistas a história desse homem carismático, que durou  pouco nesta vida, infelizmente. João Lagoa deixou a  sua memória viva em todos  os que o conheceram e faz parte da legião de nossas riquezas perdidas. Só lamento que em São Sebastião e Santo Antônio, principalmente nessas duas comunas, não exista ainda o busto ou algo que faça o simples reconhecimento de homens como  ele , Zé Loriano, Godozinho e tantos mais, os quais formaram inconscientemente parte de nossos patrimônios culturais-humanos.
Na falta de uma foto, uma imagem que, observem, não era o estilo de João Lagoa: ele não carregava garrafas, não bebia na rua e nem usava sapatos. Mas sempre "estava pra trás acertando negócio"

Minha paixão pela história se arranca de baixo para cima e não o contrário, de cima para baixo, da nojenta narrativa institucional,  que adula a elite e  a chama de história oficial, em detrimento dos que realmente compunham o nosso cenário, aos quais hei de render sempre uma homenagem simples, mas leal e sincera.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

ENTREVISTA: SENHORA CACHOEIRA DO CHUVISCO



“Eu queria acabar com toda a ignorância no mundo”


 Ninguém sabe mais que a  Natureza. Natureza não é somente o verde, as matas, o solo, a água, a lua, o sol e os seres viventes. Ela é um conjunto representado por cada uma dessas partes e é o todo. Trata-se de uma lei já sancionada pelo Ser Supremo e, portanto, algo tangível, que não se rende, uma só palavra, irredutível.   Daí, então, a decisão de entrevistar a Cachoeira do Chuvisco. Ela não mente, não precisa de reuniões fantasiosas, não discute com ninguém, sequer nos retruca. Ela apenas diz e, como faziam, ou ainda fazem, os oficiais de cartório, bate o carimbo nas suas palavras em que se lê apenas um termo, “Dou Fé”, e vem logo a assinatura da Senhora Tabeliã, que é o conjunto da obra divina.

A decisão da entrevista ocorreu quando Afra Regina Sana, minha prima desde o tempo da São Sebastião colonial, e Marcos Paulo Almeida Sá, amigo que representa a nova geração da cidade, decidiram me acompanhar — ou fui eu quem os acompanhei — à confluência de três municípios: Itambé do Mato Dentro, Santo Antônio do Rio Abaixo e São Sebastião do Rio Preto, na linda localidade chamada de Cachoeira do Chuvisco. Na  terça-feira, três horas antes de nos apresentarmos para a reunião artificial da Anglo American com uma fração mínima da comunidade são-sebastianense, estávamos lá naquele ambiente propício. Esclareço que a localidade é linda, com belas construções que combinam com a paisagem, somando-se ao bucólico encontro dos rios Preto e Peixe para, finalmente, fechar o cordão de ouro com a Cachoeira propriamente dita.

Uma brisa sobrevoa o espaço como se fosse um oxigênio abençoado para quem está nesse atual sufoco de calor e baixa densidade do ar. O barulho forte mas apaziguador de raiva e ódio das águas soa como se fosse uma bênção vindo de cima. Só contrasta com o ambiente o perigo malicioso que envolve o entorno da bênção divina: algum lodo, cipó salvador (eu mesmo, como um Tarzan moderno, sem sunga e sem Jane e a pequena gorila me agarrei em suas sustentadas seguranças). A própria Cachoeira, que aceitou a entrevista, me alertou sobre a periculosidade e me convidou a sentar-me numa pedra de segurança máxima (não cadeia), deixando os fotógrafos Marcos e Afra à vontade e um pouco distantes.

E aí se deu a entrevista, que transcrevo a seguir (CC = Cachoeira do Chuvisco):

EU — Sem agendar a entrevista, por que a senhora topou falar comigo com exclusividade e de supetão?
CC — Sempre precisei falar com alguém desse mundo animado, ou inanimado, para transmitir uma mensagem. Mas as pessoas vêm aqui, filmam, fotografam, namoram, me elogiam, até me bajulam, mas nem se interessam em conversar comigo. No seu caso, você chegou e logo nos identificamos. Mas sei que não é a primeira vez que vem aqui.

EU — Acertou, verdade. Sou velho em suas terras e água. Agora só quero saber quais são as mensagens que a senhora  interessa enviar aos seres viventes —  homens, mulheres,  crianças e os animais chamados de irracionais, além das plantas?
CC — Mensagens? Apenas o seguinte: que cada ser vivente aprenda a linguagem que falo agora, o idioma da Natureza. E que você consiga difundir as palavras desta entrevista para que tudo seja proveitoso.  Espero que outros venham e troquem experiências e ideias comigo.

EU — Volto a perguntar: durante essa sua longa vida a senhora não se identificou com outro habitante deste mundo?
CC — É claro que sim. Identifico-me com muitos, principalmente com fotógrafos, poetas, escritores, jornalistas, pensadores, crianças (que até nem gosto que venham aqui por causa da falta de segurança)  e outros admiradores do belo. Mas é uma questão de avanço da natureza  e sensibilidade.

EU — A senhora quer falar apenas como cachoeira, água, ecossistema, nesta entrevista, ou topa tocar em outros assuntos?
CC — Olha, prefiro deixar você à vontade. Pergunte o que quiser. Caso não possa dar resposta a algum questionamento, aviso que esse assunto não é da minha alçada. Mas adianto: só não é da minha competência o que se referir à individualidade das pessoas. O mundo é coletivo e esta é a regra que deveria ser transformada em lei: fora do conjunto o mundo despenca. É a individualidade que provoca o egoísmo e aí está uma das causas mais determinantes que contribuiu para o caos já vivido pela raça a que você pertence, a humana.

EU — O mundo está perto de um caos, um novo holocausto, ou mesmo o que as religiões chamam de apocalipse?
CC — De tudo isso. Não importa o nome, não importa o conceito. Importa a confusão que o ser humano preparou para si próprio. Como se vê, esse ser ainda não entendeu patavina, quer dizer que o apocalipse não será evitado.

EU — Especificamente sobre a senhora, o desequilíbrio ecológico a incomoda neste isolamento que parece se imiscuir o seu mundo?
CC — Você e os seus amigos e companheiros no mundo desconhecem o mal-estar que me atinge aqui, mesmo no meio dessas densas matas. Veja como estão cada vez mais secos os rios que me formam. Só me fortaleço nesta época do ano, quando a chuva me abençoa dia e noite. E para azar não somente meu, mas de todos nós, você já deve ter visto a passagem de tubos da mineração. Para instalar esses tubos, houve cortes imensos de montanhas, porque o funcionamento do transporte de matéria-prima depende de uma plataforma nivelada, não se sobem serras.

EU — Algum outro dano ao ecossistema da região?
CC — Não somente da região, mas de todas as bacias que recebem a minha riqueza inalienável, a água. Observe que  uma mancha vermelha traz um colorido diferente na queda d’água. Apesar de fazer uma contenção quase perfeita do volume de terra, a devastadora não consegue evitar a poluição e passo a receber detritos diversos, não digo sujeiras das cidades, como esgoto e substâncias químicas, mas a própria terra que é estranha ao meu ambiente. São amigas, a terra e a água, mas dentro de nossas funções específicas dentro do conjunto da natureza.

EU — Há o ser humano favorável e o contrário ao empreendimento. O que a senhora aconselharia que fosse feito?
CC — Muitos vão se assustar com a minha opinião: não sou contra o progresso e o desenvolvimento. Seria contra no princípio, quando as devastações não tinham sido difundidas. Se houvesse uma freada naquele início, o homem estaria bem protegido e poderia continuar seguro no seu hatitat. Agora, não. O crescimento populacional do mundo empurra o seu habitante a procurar saída para dar qualidade de vida a todos, embora isso já seja apenas um sonho, um alvo praticamente inatingível. Mas que precisa haver gritos soando mesmo que seja no deserto, isso é preciso.

EU — Qual seria a ideia dos contrários que permitiria o empreendimento mineral na região com retorno palpável?
CC — Por exemplo, a construção de estradas de ferro ao invés do mineroduto. O retorno social da ferrovia é palpável. Seria uma luta sem cessar da comunidade: primeiro pela mudança no projeto, depois para que o transporte fosse estendido a outras finalidades, principalmente de pessoal. Sei que houve conversações neste sentido, mas  não houve firmeza e insistência das comunidades da região na defesa de um objetivo comum. Na falta de união, fator que favorece os destruidores, a perda social é imensa.

EU — E agora?
CC — Pode imaginar toda sorte de respostas cruéis da natureza. Não há mais saída. O empreendimento está de pé. Os seus defensores estão nadando de braçadas. Apelam para, incrivelmente, os benefícios  imediatos dados aos municípios, como Santo Antônio do Rio Abaixo, São Sebastião do Rio Preto e Passabém, os quais estão recebendo o mais bruto ônus da construção. É bem provável que, principalmente São Sebastião, deixe de existir no final das obras do mineroduto. A cidade recebe hoje um imposto miserável e vergonhoso, cerca de R$ 50 mil mensais de ISS. Enquanto isso, as construções, principalmente as que jamais poderiam sair de cena, estão sofrendo abalos. Não é preciso contratar nenhuma firma especializada para estudar as trincas e rachaduras. Basta conhecer a história do antigo arraial: as casas e igrejas foram construídas para suportar um trânsito de animais, sequer de veículos mais pesados e, principalmente de carretas destruidoras.

EU —A senhora aconselharia o povo a se manifestar  com o bloqueio de trânsito pesado na entrada da cidade?
CC — Entendo até que a mineradora seja consensual neste caso. Seus ilustres técnicos, principalmente engenheiros especializados, sabem que não é humano, não é condinzente com a realidade esse grosseiro desfile de máquinas de altíssimo poder de destruição em ruas muito acidentadas, com curvas sinuosas e traiçoeiras.

EU — O mesmo não ocorre em Passabém e Santo Antônio?
CC — Sim, ocorre, mas com repercussão de menor violência. Passabém é uma cidade plana dentro do perímetro urbano. Mas o seu calçamento está, também afundando. Parece que as   construções estão preservadas, mas a intensidade do trânsito pode, no decorrer do tempo, provocar estragos. Em Santo Antônio, o trânsito pesado ainda não desfila pelas ruas principais, mas, aguardem, vai tornar tudo uma desordem em pouco tempo, pois há mineração a ser explorada nas imediações, no rumo de Conceição do Mato Dentro.

EU — Voltando ao seu habitat, a senhora sugere um plano turístico para esta região?
CC — Olha, como já disse, o ser humano deveria ter contido o avanço da poluição no Planeta no início. Mas não soube perceber os pesados resultados que ocorreriam. Agora, sem retorno, é preciso administrar o fim da vida na Terra...

EU — Fim? Haverá um fim do mundo?
CC — É claro que sim. Caminhamos para isso. Sem retorno. O motivo é claro, todos veem, até os cegos. Basta entender que a vida não ocorreu nem ocorre somente neste Planeta. A ciência vai alcançando respostas concretas para muitas perguntas interessantes. A Terra irá se tornar inabitável. Só não posso prever quando, porque tudo depende, exatamente, do comportamento de vocês daqui para a frente. Como já disse: saber administrar o fim.

EU — Então, deveria haver um plano turístico para a senhora aqui?
CC —Sim. Já tivemos mortes neste local. A região do meu entorno continua perigosa. O que há aqui é uma placa com número de telefone de emergência, instalada pela Prefeitura de Santo Antônio do Rio Abaixo, além das estradas. Para o acesso precário, há estradas. São Sebastião do Rio Preto me prestou uma homenagem pública, me elegeu a Terceira Maravilha, mas não construiu sequer o acesso do lado de seu município. Acho que os dois municípios deveriam se entender e olhar com mais carinho por mim.

EU —A senhora quer ser frequentada?
CC — Bem frequentada sim, mal frequentada não.

EU —Ainda vai morrer muita gente aqui?
CC — Infelizmente, vai, porque o ser humano insiste em ser ignorante. Ele tem todas as informações ao seu alcance acerca do passado, do presente e do futuro, mas prefere viver na escuridão do saber. Eu queria acabar com toda a ignorância no mundo. Mas não posso fazer isso sozinha.

EU — A senhora tem mais algumas mensagens a dizer?
CC — Tenho muitas, mas nem adianta mais. O mundo é movido pelo Dinheiro (quero que coloque essa palavra com inicial maiúscula porque ele virou Deus). Ele é quem manda. Ninguém pode constestar. O que as religiões pregam não é do alcance humano. As pessoas fingem que entendem. Mas na hora do pega pra capar, vem lá o Deus que domina todos.

EU —Considerando que a senhora falou muito mais para uma comunidade pobre do que para o resto do mundo, quer  dizer que perdemos tempo nesta entrevista?
CC — Disse que quem manda no mundo é o Deus Dinheiro. Esse deus, move para o mal e para o bem. Mais para o mal. É o primeiro responsável pela corrupção, pela malversação do dinheiro público.

EU —Em muitas cidades pequenas perderam a noção do público e do privado. A senhora sabe disso?
CC — É claro. O problema é que os legisladores fizeram leis para coibir grandes engates e não alcançaram o alvo. Nas pequenas comunidades, vendo o rico roubar, o pobre também se julga no direito e pede ao seu político que lhe faça doações de roubos. Os prefeitos, não todos, é claro, se julgam no direito de fazer o que fazia Robin Hood naquela lenda do cinema: roubar dos ricos e dar para os pobres. O rico, neste caso, é o poder público.

EU —Agradeço a sua boa vontade em me atender. Deseja dizer mais alguma coisa?
CC — Não, é melhor encerrar por aqui. Temos muitas outras figuras aqui entrevistáveis, como as matas, os rios, as pedras que ornamentam, também, o rio, os peixes e até mesmo a senhora Dona Poluição que vai nos ameaçando, além do Desmatamento. Pode procurar cada um desses aí que, na certa, você será atendido.

EU —Muito obrigado pela sua gentileza da entrevista!
CC —Sempre às ordens.

Crédito: Fotos de Marcos Paulo Almeida Sá