segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

HISTÓRIA VERÍDICA DO INACREDITÁVEL. (Capítulo 6)

O PASSO DIFÍCIL DA AMIZADE PARA O AMOR

Enéias chegou cedo à sua casa, viu e sentiu com um certo ressentimento, de vazio por dentro, que, agora, a separação estava consumada. Engraçada a questão, serve até para muitos exemplos aos casais que vivem procurando parâmetros em questões similares: enquanto o marido esperava reconciliação, a esposa Karen  simplesmente desejava ser reconquistada pelo próprio marido. Como nenhum dos dois tomou a iniciativa de uma conversa pacificadora ou romântica, deu nisso, ou seja, no nada feito. Quer dizer: nem sempre o silêncio é a solução para os quesitos de uma vida em paz, quanto menos a inércia.

Nessas horas, quem sabe, modestamente, um bom vinho tinto seco a dois, ingerido sob o silêncio da noite ou da madrugada, resolva. E, assim, ou seja, sem uma tomada de medidas inovadoras, passaram-se os dias sequentes para adaptação à nova vida da dupla que encerrava 17 anos de união. Karen volta para a casa da mãe e leva consigo  o “rapa de tacho” Wilton com pouco mais de sete anos àquela altura. Das meninas, Ana, a mais velha, fica com o pai e a do meio, Adília, parte para o Vale do Aço para estudar.

Enquanto isso, na Paraíba – eita João Pessoa boa! —  a vida queimava de calor e amor, saudade sem estrutura inicial, mas viva e forte, segundo palavras do já apaixonadíssimo Marcos Aurélio. Ele dispõe da presença de um amigo confidente, Geraldo Bonifácio, as notícias transmitidas à namorada Antonieta, e Karen, agitada e esperançosa de uma vida em paz na velha São José do Cata Prego. Tempos climáticos diferentes, quente no Nordeste, frio no Sul e temperado no Centro-Sul, mas o tempero de sentimentos se dava mesmo sob as rédeas de Maria Antonieta, só dela, dona de toda a situação, liderança inconteste.

Vamos colocar os pingos nos iis: Antonieta amava Bonifácio e este amigo de Marcos, que ama Karen, que não ama ninguém. Ou ainda espera por Enéias? Parece até aquele poema de Drummond...

“João amava Teresa 
que amava Raimundo
que amava Maria 
que amava Joaquim
que amava Lili
que não amava ninguém...”

Parece com a Quadrilha de Drummond,  mas não é. Virou apenas enfeite para o divertimento de muitos os que acompanham uma história de vida. Pois, então, muita gente quer saber o que vai dar esta história e não há pressa para seguir à frente. As pessoas são pacientes nas novelas de TV, mas por aqui preferem a brevidade. Tudo será narrado conforme o que se sucedeu, até com mais presteza. E, agora, há uma mudança bem acentuada ocorrendo na vida de algumas pessoas. Karen, por exemplo, está saindo do estado de expectativa de retorno à monotonia de uma vida de casada ou meio-casada, terminando a sua expectativa de ser reconquistada, estancando-se agora numa desilusão sem medidas. O que era intrigante neste caso até agora é que na vida de Karen e Enéias jamais um equívoco, uma discussão turvaram a felicidade conjugal. De repente, tudo vira de cabeça para baixo.

A desilusão era um vácuo coberto por uma amizade virtual bem adiantada, por sinal, com aquele “protegido” da cupido Antonieta. Realmente, Karen gostava de ser cortejada e o era por mensagens no MSN ou SMS e até Zap-Zap, Face ou ao telefone, por Marcos. Só que preferia que mantivesse aquela situação como amizade.

Pelas ruas da cidade, tortuosas e movimentadas, ela, Karen não ia além do que podia a sua simples imaginação. Com quase ninguém para conversar, reparava que todo mundo estava sempre ocupado ao celular. “Incrível, que mundo é este?”! Sentia a mudança nas relações pessoas com pessoas. Via amigos, amigas, conhecidos, desconhecidos, todos indisponíveis. É uma mania esquisita do momento, o mundo parece optar por contato online a um frente a frente, cara a cara, olho no olho. A maioria digitava, outra parte ouvia música. Nas caminhadas em alguma avenida, é comum encontrarem-se casais desligados, ou seja, cada um no seu fone de ouvido.

A vida, a que chamam de real, vai se transformando aos poucos em vida silenciosa. Reduzem-se os contatos interpessoais, poucos abraços e beijos. A tecnologia toma o lugar do sentimentalismo. Ela própria, na sua nova solidão, tentava se adaptar a esse novo mundo. E não era mais ninguém, a não ser as duas sagradas criaturas: Antonieta lá do Sul e Marcos, no Nordeste. Uma a empurrando ao amor que lhe era duvidoso e outro, terno e cada vez mais amável, confortando-a pela vida que considera sempre um desafio.

Ela própria entra em êxtase: “Não é desagradável ser esse relacionamento uma amizade pura”, comentava Karen com os mais próximos.  “Mas, por que, meu Deus, ele insiste em amor? Existe base para esse salto?” — Pensava consigo mesma ou às vezes com os  mais chegados. O que a intrigava era que, se ele não enviasse uma mensagem, não proferisse um alô, a tristeza e o vazio vinham logo, sentia que Marcos  está fazendo falta  com as suas palavras mansas e oportunas para cada momento. Mesmo porque não o conhece ainda pessoalmente. As reflexões valiam para conter o seu ardor de ávida por amigos. Tanto que ela teve esta conversa com Antonieta:

— Nieta, queria que o meu relacionamento com Marcos não passasse de amizade.
-— Também eu penso assim. Só que ele virou totalmente a cabeça e quer que seja um namoro sério e fiel.
— Impossível! Como vou namorar alguém que não conheço?
— Eu conheço e o abono pra você. É uma pessoa muito atraente, desejado por todas as meninas, sério e correto.
— Vou acreditar em você até que o veja, pegue em suas mãos e até possa ter ou não o desejo de beijá-lo. Enquanto isso não acontece, gostaria que ele me tratasse como amiga, ora, somos amigos! Fora disso não é mesmo razoável. 
— Olha, Karen, acho que você está certa. Vou ver se consigo fazê-lo entender e, assim, promovam um encontro físico, pessoal, tangível, total.
— Tudo bem. Um bom dia para você!
— Bye!

E assim aconteceu. Imediatamente, o panorama ficou mudado. De repente, Karen sentiu, pelos novos contatos, por escrito ou por fala, com Marcos, a sua mudança inesperada. Ela  estranhou a aceitação imediata ao novo sistema adotado por ele e e até quis perguntar o motivo. Ora, pensou consigo mesma, nem dava tempo para que Antonieta falasse com ele.Inteligente e cautelosa, calou-se. Na voz como sempre arranhada do amigo Marcos, percebeu que ele tinha sido advertido e, imediatamente, tomado a sua decisão. Até que houve uma conversa entre os dois assim:

— Marcos, você é mesmo meu amigo?
— Claro, isso está muito claro. Você tem dúvida?
— Olha, estou sentindo falta de umas palavras que me dizia e não diz mais... como, por exemplo, que quer me ver, que quer me dar um abraço, que gosta de mim.
— Acho que não preciso mais dizer isso a você, Karen. Quero que se sinta à vontade.
— O que você pensa de minha situação, de meu fim de relacionamento com o Enéias?
— Não faço nenhum juízo. Nenhum... Acho que você é madura para resolver tal questão com maestria. Você quer voltar pra ele?
—Queria, mas não quero mais. Não quero porque lhe dei a oportunidade da reconquista e ele não a aproveitou. E acho que agora está bem feliz com a sua antiga namorada.
— Se você tem a certeza de que ele tem outra namorada, acho que deve esquecê-lo imediatamente...
— Era isso o que queria ouvir de meu amigo.Obrigada.

E, então, ia o amor sendo colocado de lado, de molho, no banco de reservas. Ou como diz sempre Nielsen no seu programa de rádio, “os sentimentos sendo cozinhados como um galo duro”. Logo ele que é cruzeirense, torce pelo time azul, mesmo sendo comentarista de futebol, que respeita o rival Atlético como time forte e duro. E “vingador”, como está escrito no hino alvinegro. Mas, para a sua esposa, Nancy, é sempre assim, os casos se repetem. Sem nenhuma maldade, o locutor comenta em programa que tem sido cada fez mais frequente os namoros virtuais que acabam se tornando reais. E contou um caso interessante sobre um casal que se casou online sem se conhecer pessoalmente.

Todos, afinal, torcem para que haja um desfecho feliz naquele imbróglio romântico em que se transformara a vida daquelas pessoas, todas amigas, principalmente o casal Enéias-Karen, de sua família inteira e até mesmo Antonieta, que fora funcionária de seu empreendimento comercial, um restaurante feito com  amor de iguarias deliciosas. As sugestões do locutor, diariamente sobre o prato do almoço era um momento bem quente de seu horário. Muita gente se embriagava de fome pelas sugestões. Esse é o poder do rádio!

Aqui entra, num rápido parêntese, não apenas um intruso, mas acabam sendo duas oportunas criaturas metidas a sábias. Ele, o Gambá da Rua de Baixo e o Sapo da Ponte. E olhem que ficou na espreita a Onça Parda, decidida a dar um palpite também. Os dois curiosos, lá de outras paragens, da cidade vizinha de  Zumbeta,  pequenina e por isso chamada de Pílulas de Vida do Doutor Ross, isto é, que resolvem, começam a discutir entre si sobre o tema do momento, um papo cabeça entre bichos. Pode?

— Você acha, senhor Sapo, que é correto transformar amizade em namoro?
— Ora, isso já foi discutido, considero que entre os dois sexos é impossível. A amizade já é namoro.
— Então, por que chega com essa cara de reprovação?
— Você entendeu mal, seu Gambá bicudo! Sou contra transformar uma amizade virtual em amor virtual...
— Mas que tipo de amor você, Sapo, enxerga entre Marcos e Karen, se ambos estão a uma distância de mais de 2 mil quilômetros?
— Qualquer atitude de ambos é precipitação, amigo Gambá. Acho primordial que se conheçam pessoalmente. É preciso captar gestos, palavras, atitudes, sondar simpatia, empatia, tudo para se ver que há realmente sentido a continuidade dessa história.
— A empatia é fator primordial. Ela resolve tudo, meu caro Sapo. E chega de o senhor continuar coachando a noite toda, perdendo tempo em dizer a verdade. . 
— Então, vamos aguardar, seu fedorento! – finalizou a conversa o senhor Sapo da Ponte. E a Onça Parda, que funcionou espontaneamente como mediadora, pediu que fosse fechado o parêntese.

Tá certo!. Queira ou não queira o mundo ao redor, eis que a palavra amizade não comporta  mais neste presente caso, porque, de repente, ambos perceberam que não era mais possível um viver sem o outro, mesmo que fosse isto mesmo, online, a dois mil quilômetros de distância. 

E ocorria uma tentativa até certo ponto interessante: Geraldo tentava convencer Marcos a mudar de cidade. Estava  Geraldo prestes a conseguir uma transferência empresa ou mudança de emprego, seu objetivo agora seria levar consigo o amigo. Segundo Antonieta, que o instigava sempre, esse se tornou o objetivo, ou seja, praticamente o próximo passo da vida desse grupo dentro do qual um ama o outro. Nos seus encontros no centro da cidade, os amigos trabalhavam a ideia. Geraldo arrastou Marcos para um cafezinho, e aí foi demorando até cair a noite e começarem a pedir cerveja mais cerveja. Durante a conversa, regada a bebida preferida dos dois, havia uma condição: trabalhar noutra cidade, no Sul, comportaria mudar-se completamente. Marcos Aurélio tem pai e mãe, além de duas irmãs e teria que encaixar todos noutra cidade bem longe.. Mesmo que  a família tenha boa condição financeira, então, bastava para uma mudança de região, já que o pai de Marcos tinha de há muito empreendimentos pequenos em Curitiba.

— É muito trabalhoso, Geraldo, convencer meu pai e minha mãe a se mudarem para o Sul — asseverou Marcos Aurélio — mesmo com imóveis lá.
— Vamos combinar — concluiu o amigo — você toca no assunto com ele e o resto deixe por minha conta.

Despediram-se e em poucos dias, Seu Joaquim e Dona Francisca resolveram comprar uma casa na praia, perto de Curitiba, além de um apartamento no centro da bela cidade sulina. Mas ainda não arredaram pé de João Pessoa. Seria, no caso, como disse o pai de Marcos, investimentos. Mas o mecânico-metalúrgico Marcos esperava contato do amigo Geraldo Bonifácio para se desligar de sua empresa. Faltava um novo emprego para Marcos, o que também era questão de tempo, devido à sua competência, esse é o pensamento de todos. 

Por isso não durou muito e a sua saída de João Pessoa foi sentida demais pelos diretores com os quais ele trabalhava, mas, como dizem os experientes: as oportunidades não aparecem todos os dias e agora seria uma nova vida, numa região mais próspera. E estava, então, contratado o rapaz, ou melhor, os dois amigos numa mesma empresa, a Foster Co., multinacional metal-mecânica paranaense.

Movida pelos acontecimentos, sentindo apenas que essa mudança poderia ter sido melhor para os dois, ou seja, que Marcos viesse para São José do Cata Prego, Karen sentiu, geograficamente falando, que o “amigo” era uma bênção de Deus, pensou logo que ir ao Sul ver essa pessoa fosse infinitamente mais fácil. Na vontade de ir, no desejo que parecia ser de ambos, o ânimo tornou-se patente. E se misturaram desejos de encontro com a real situação do momento. Afinal, Karen e Marcos, que continuavam trocando mensagens, eram o quê? Amigos, namorados, desconhecidos especiais?

Depois da trégua que deram para conter o namoro, voltaram a parecer  espontaneamente, nas mensagens diárias o tratamento  “querida” “querido”, “meu bem” e até “meu amor”. Então, Karen, livre e desimpedida resolveu permitir ou deixar acontecer, como mandam as regras desse sentimento que, segundo os poetas, chega sem que se perceba, embora, um dia desapareça também, deixando ou não vestígios ou marcas. 

No caso de Karen e Marcos estava definitivamente feita a ponte da amizade para o amor. E nem se cogitava mais ouvir a expressão virtual. Era tudo real e fim.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Mesmo virtualmente, está iniciado um namoro

(Capítulo 5)

Introspectiva desde os seus primeiros passos aqui no Planeta Terra, Karen Helena tornou-se outra pessoa, completamente ao contrário. O que tinha mudado para refletir tanto na sua personalidade ? Ninguém sabe, nem ela, sequer as pessoas mais íntimas, pelo menos por enquanto. O que ela estaria fazendo de novo? Absolutamente nada exteriormente. No fundo, contudo, ela sentia, sem explicar e sem se explicar, que ocorriam mudanças extraordinárias em sua caminhada de ser vivente Ela estava ainda morando na sua casa própria, com os filhos e o marido, só que separada fisicamente deste, como se sabe Na sua troca de palavras com Enéias estava tudo normal, até as anedotas que surgiam vez por outra eram compartilhadas entre eles. Afinal, ambos sempre se entenderam como amigos, fora do amor.

Mas o que é o amor, afinal? Esse troço, como dizem lá pros brejos abaixo, não seria somente algo prazeroso, cheio de motivações e cultivador de emoções? Inexplicável! Às vezes o casal vive as mesmas aventuras como de Enéias e Karen durante 17 anos e muito bem. De repente, algo se rompe, uma torneira vaza e o cano começa a deteriorizar-se. Antônio Mesquita, sempre presente nas discussões sobre o assunto, amigo da família, comentou numa roda de amigos: “O casamento durou 17 anos? Puxa! Deu certo demais e foi um milagre!” Em seguida, completa: “De minha parte, considero esse tal de matrimônio uma instituição fracassada!” E desfia uma série de exemplos com casos verídicos na ponta da língua, citando o milagre e o santo: “Sem a preocupação do casamento, a união dá muito mais certo!” — arremata.

Karen decidiu, naquela tarde de um dia ensolarado de janeiro de 2009, ir conversar com a sua genitora, que mora em bairro não tão distante, mas na outra ponta da cidade:
—  Pronto, cheguei, a bênção, mãe1
—  Deus te abençoe, minha filha, mas o que traz você aqui agora?
—  Novidade, né? Mas aproveitei que nesse horário estava sem nada para fazer e sabia que a senhora permanecia em casa, então, vim conversar um pouco sobre um assunto um tanto quanto delicado.
—  Ihhhhhhhhhhhh!!! Espero que seja coisa boa e não desagradável!

Karen Helena estava disposta a resolver o seu delicado problema agora e, então, foi diretamente ao assunto:
— Mãe, estou me separando do Enéias! — e deu uma parada como se a separação fosse aqueles segundos de acontecer e voltar ao normal, numa respiração do ar impuro que a cidade emite e distribui para os seus moradores, de graça, esperando toda a reação da calma Dona Querenina. Fitou-a nos olhos, esperou mais um pouco, até que a querida mãe retrucasse:
— Assim, de repente, parecendo sem motivo sério? Por que nunca abordou esse assunto comigo? Ou melhor, fiquei sabendo, pelas suas meninas, que vocês estavam dormindo em quartos separados, mas Aninha me disse, sim, acho que foi ela — ou foi a Adília? — Não, foi Aninha mesmo, que me explicou tudo direitinho, isto é, que tudo aconteceu por causa de divergências sobre os malditos pernilongos. Acabamos rindo bastante e comentei com elas assim: meninas, já pensou se seus pais se separam e jogam a culpa do divórcio nos pernilongos? (rsrsrsrsrs)...
— Aquilo foi uma desculpa que ele e eu arrumamos para justificar um fato que aconteceu e que dele não pretendíamos fazer alarde.

— Agora me conte, minha filha, o que, de verdade, ocorreu? Foi chifre que saiu por aí? (rsrsrsrsrsrs)...
— Mais ou menos, mãe, não vamos conversar isto agora, em respeito a ele que optou por não discutir. Sei que houve um caso dele, mas não me magoei. Olha, acho até que posso entrar com as minhas culpas como revide, embora não tenha sido, mas jamais tive tal intenção.

A conversa, depois de uma parada quando o telefone fixo da casa tocou, foi prosseguida por Querenina 15 minutos depois:

— Olha, você que sabe o que está fazendo. Tudo o que quero para os meus filhos e netos é a felicidade. Você sabe que detesto dar palpites em casos assim de relacionamento familiar, sempre fui assim, principalmente com a minha família.

— Sim, mas eu, como filha e ainda assim única — Dona Querenina tem apenas Karen como mulher e mais dois rapazes — não poderia deixar de vir conversar com a senhora. Ainda mais que não tenho outro lugar para morar senão a sua casa!

Por aí o diálogo se encerrou. Querenina foi cuidar da casa e a filha retornou à casa que deixaria no dia seguinte.

Faltou um assunto que Karen omitiu à sua mãe. Será que estava prestes a iniciar um inédito namoro que, por ser virtual, quis esperar  acontecer inicialmente? Propostas e mais propostas de Marcos Aurélio, ainda morando em João Pessoa. choviam. Ela, na sua filosofia do pé no chão, segurança total, ainda preferia ficar assim sem aceitar. Mas era verdade que aquelas palavras convidativas a um encontro, as animadoras esperanças que chegavam, tanto escritas quanto faladas, lhe davam estímulo quase cem por cento para garantir que a sua vida estava prestes a mudar.

A voz “arranhada”, que ela própria assim apelidou, mas que parecia um sussurro de carinho no ouvido ansioso por ser adulado como uma preparação para o romance, estava dominando plenamente a sua queda pelo rapaz de 28 anos, seis anos mais nova que ela, que lhe prometia amor para sempre, amor eterno, como dizia o incorrigível e talentoso Nelson Rodrigues: “O amor é eterno ou não era amor”.

O janeiro foi todo assim, de sussurros quase ininterruptos, predominando a voz arranhada, que acabou sendo uma novidade. Essa novidade tinha que acontecer rápido, ou seja, Karen queria ficar frente a frente com aquele que, aos poucos, tornava-se seu amor. Sem uma palavra a alguém sobre o amor que se iniciava, olha que interessante: a sua amiga Antonieta, aquela que se tornou uma promissora cupido em sua vida, real responsável pelo início deste romance, passou a ser indispensável.

Aí entra o Sapo da Ponte, atrevido como sempre, mas desejoso de prestar algum esclarecimento. A sua intromissão se deve ao caso de Karen ter andado pensando noite e dia, dia e noite, em não exceder de amizade. Mas o Sapo não concorda. E apurou o seguinte: "Entre um homem e uma mulher não é possível haver amizade. É possível haver paixão, hostilidade, veneração, amor, mas amizade, não."  A frase, o Sapo da Ponte, com exclusividade buscou do notável escritor irlandês Oscar Wilde (1854 – 1900), parece datada, mas não podia estar mais em sintonia com as atuais discussões sobre as relações entre os sexos. Assistido por mais de seis milhões de pessoas, um vídeo amador se tornou viral nos Estados Unidos e no Canadá justamente por explicitar a diferença de opiniões entre homens e mulheres no que tange às amizades entre homem e mulher.

Nele, um estudante universitário pergunta a suas colegas de faculdade se elas acreditam ser possível existir amizade entre um homem e uma mulher. A resposta? “Sim, claro”, dizem todas. Já quando ele dirige a mesma questão a seus colegas homens, ouve de todos que “hummm... não!”

O tema, abordado de forma lúdica no vídeo, ganhou roupagem científica em três recentes pesquisas que buscam entender melhor as implicações das amizades entre pessoas de sexos opostos. Numa delas, os estudiosos definiram os quatro tipos mais comuns de relações entre eles e elas. Em outro estudo, pesquisadores concluíram que existe ao menos um pequeno nível de atração na maioria das amizades entre os dois sexos , o que não é necessariamente ruim, já que a terceira pesquisa aponta que o sexo, para surpresa (e alegria) de muitos, pode fortalecer os laços entre os amigos. Aqui o Sapo volta para a Ponte e dá como concluída a sua “ajuda”.

Mas, afinal, Karen estava liberada pelo compromisso desfeito e pôde deixar que as rédeas de seu coração seguissem soltas ou às soltas. Agora é com ela mesma, que pensa, imagina, faz profundas reflexões sobre o amor. E chega à sua própria conclusão: “Amor é momento, instante, passagem, para não dizer balela”. Para o Mesquita, que é tão sabido quanto o Sapo da Ponte, o que atrapalha o casamento é o compromisso, a obrigação, as leis artificiais e as exigências. Para ele, que mandou na época o recado a Karen: “Se for mudar de amor não se case porque o casamento torna o homem e a mulher plenamente donos um do outro; sem casamento as pessoas lutam para a cada dia conquistar o seu par e aí a união se torna longa”.

O Gambá da Rua de Baixo, de outras histórias quase silenciosas, aproxima-se quando o Mesquita diz alguma coisa. Na verdade, o Gambá fala baixinho, sem ênfase, e apenas meigo, quase inaudível. Ele não é burro, entende que não precisa de voz rompante para convencer alguém sobre determinado assunto. Para ele, basta o seu cheiro horroroso, característico do dele próprio, também chamado de Opossum, ou Ticaca, que tem um discurso próprio sobre o ciúme: “Estado emocional complexo que envolve um sentimento penoso provocado em relação a uma pessoa de que se pretende o amor exclusivo”. Pela definição é dado o sinal da presença do egoísmo, totalmente fora do contexto humano, apesar de ser uma característica forte do home atual.

A partir de um princípio de namoro — Karen pensava que só virtualmente não seria válido um relacionamento — a menina, prestes a divorciar-se do primeiro e único casamento, quis falar mais com a sua amiga Antonieta. Se ela se interessou tanto, se foi uma cupido bem aplicada, teria que ir prestando mais informações a respeito de seu amigo Marcos Aurélio. E assim, passaram a conversar, ora por telefone, ora pelo MSN praticamente toda noite. A pergunta de Karen a Antonieta a embaraçou por alguns instantes:

— Já senti que Marcos é um homem inteligente nas paqueras, falando mais claramente, afinal, ele é ou não é um galanteador profissional?

Antonieta ficou meio entre a porta e a parede, mas deu a sua resposta:

—  Calma, minha filha, já lhe falei que ele vive do trabalho, da casa para a companhia que o admitiu e vice-versa. Desde quando se formou em técnico metalúrgico a sua vida é uma grande monotonia. Nem pense que ele é igual aos outros homens, o conheço há muitos anos.

Na conversa, Maria Antonieta sugere a Karen que se torne amiga mais íntima de seu namorado, o Geraldo Bonifácio, colega de trabalho do Marcos Aurélio. E veio aquela corriqueira pergunta:

— Você não tem ciúmes dele não?
E a resposta em cima da pinta:

— Juro que sou meio ciumenta, ou toda ciumenta, mas garanto a você que de você não tenho nem um fio de linha! E você perguntou se Marcos é galanteador, vou lhe dizer que o meu namorado era um grande “chavequeiro”, mas o consertei para sempre. Assim que nós, mulheres, devemos fazer com esses galãs safados que, se deixar, acabam se dando bem com as suas conquistas e nos deixando a ver navios.

Assim as duas amigas encerram a conversa e saem para as últimas façanhas do dia, antes do sono reparador. Obsessiva, Karen Helena não para de pensar: “Estou gostando mesmo desse cara, mas eu quero me encontrar com ele, quero, quero, quero”. E guarda uma frase que, certa vez, alguém lhe disse: “Na internet só tem enrolo, mentira, tapeação, tudo feito por pessoas desocupadas e inescrupulosas. Nunca, jamais, serei vítima disso!”


E olhando para a foto do namorado virtual, que colou na parede de seu quarto, fechou os olhos e dormiu...

sábado, 9 de janeiro de 2016

HISTÓRICA VERÍDICA DO INACREDITÁVEL

A amizade aproxima-se de seu objetivo. E a vida continua
(Capítulo 4)

E estamos em setembro de 2008 numa casa da Rua das Flores, cidade de Cata-Prego, Estado de Minas Gerais, Brasil, América do Sul, Mundo. Karen Helena, com coragem e tudo, parte para a frente do espelho e se olha assustada. “Nossaaaa... preciso de um recauchutagem urgente!” — clamou de si para si a situação de seu semblante,. como se fosse um pneu desgastado. Os olhos fundos e profundos, escuros, olheiras quase roxas como se tivesse levado uns incríveis bofetadas. As sobrancelhas requerem  trato especial de algum profissional qualificado. A face clara paira  um pouco inchada como uma manga rosa exposta na fruteira da copa. Não se acha bonita nem antes nem agora ao sair da cama. Ou melhor, na sua perene humildade, requer as coisas lindas somente para outras pessoas. Sinal  insofismável de virtudes que trouxe do berço, da mãe, um pouco do pai saudoso. Veio  a conclusão imediata: “Preciso me cuidar!” Ou ir ao borracheiro?
                                                     
Correu direto ao smarthphone e o encontra cheio de mensagens. No Facebook  havia uma foto sua com a família: filho, filhas e a mãe amada, adorada, os filhos venerados. Faltou o marido, repórter de “Diário de Cata-Prego”. As opiniões dos amigos em comentários nunca variavam: “Lindos, lindos, lindos!”. Olhou uma  foto sua feita no trabalho, melhor dizendo, numa feira realizada na cidade. Ela como recepcionista, depois expositora, a seguir vendedora, a profissão nata. Clicou em fotos e os inarredáveis comentários: “Linda, linda, linda”. E voltou a pensar: “Se eu fizer um sélfie ou selfie (inglês)  e postar, com essa feiúra  toda, juro que vão comentar mesmo assim: ‘Linda, linda, linda’. Então, devo ouvir a minha opinião somente  e digo a mim mesma que estou horrível, horrível, horrorosa. Vou ligar pro salão de beleza e pronto, devo cuidar de mim”. Papo final, horário marcado para a tarde. Era um sábado desses sem agitação, nem casamentos, nem aniversários.

Por conta do nada ter o que fazer, vai ao computador. Abre o No Facebook. Lá está o “amigo” Marcos Aurélio com mensagens e suplicando atenção: “Bom dia, querida amiga!” — o anúncio de sua presença às 9:15. A seguir outra mensagem: “Quero mais uma foto sua. Me envia? Anexo uma minha para vc espantar baratas”. Que diabo, pensou Karen,. ele já tem a minha foto. Mas isso é bom. Sinal de haver insistência em ser amigo porque viu a minha cara de há muito. Com certeza, gostou dela. Karen Helena ainda não respondeu. Esperou. e leu “Escrevendo” — informa a tecnologia do MSN, ou melhor, havia pulado para o WhatsApp.  Adiante: “Outro sélfie para você!”. E Karen repara bem a imagem: “Não parece bonito de morrer, não é um galã de cinema de Hollywood nem um ser bronzeado como um artista havaiano. Isso me convence de uma coisa: ele não é trapaceiro”. As fotos eram normais, ou seja, ele nem muito lindo, mas razoavelmente bonito. Avaliou o rapaz: alto, moreno, sem cabeça chata como os nordestinos, tudo bem. Mas o que importa são as palavras, afinal, eram apenas amigos e assim queria continuar sempre, desfrutando de sua cultura.

Deu as suas respostas. Desta vez mais branda, bem amena e diferente do contato passado.  Respeitosa, amiga, interessada numa amizade nordestina. Ter amigos nesses lugares é bom. Quem sabe, um dia, uma temporada de descanso? O Nordeste é, hoje, uma região muito requisitada pelo resto do Brasil. Acabou-se aquele tempo de ter pena do povo por causa da seca, de esperar que o governo implemente aqueles planos especiais de ajuda ao agricultor, ou ao fazendeiro. Nada como do tempo de Vidas Secas, drama inconteste de Graciliano Ramos. Então, dedilharam muito, muito, muito. Marcos Aurélio cada vez mais interessante, ela avaliava. Escreve bem, pensou. Expressa sentimentos com a autoridade de quem os sente. Faz  expressões vivas tornarem-se uma espécie de sussurros. Como? Vou ver se dá para explicar: parece que ela está perto dele, sentindo seu hálito, vendo seus gestos, algo assim notável e de gosto apurado. Ele conta casos de sua amizade com Antonieta, com 22 anos, seis anos mais nova. “Nossa! Graças a Deus, não haverá nada mais que amizade entre nós porque tenho 34 e não vou mesmo namorar um verdadeiro menino para mim. Já tenho uma filha de 13, outra de 11 e um menino de 7. Posso me soltar mais porque você se  parece um amigo muito leal!” — escreveu a ele de supetão, quase sem pensar. Arrependeu-se mas não dava tempo mais de apagar. Deixa pra lá, pensou..

“Idade não interessa!” — Exclama o paraibano vendo escorrer por entre as teclas do computador a sua esperança, pois o que deseja, de verdade é conquistar aquela mineira muito bem recomendada pela amiga Nieta, moradora de São José dos Pinhais. Nessa conversa via  Zap-Zap que se passou houve várias tentativas de um papo por telefone, uma conversa mais natural. Ambos tentaram discar, mas nada concretizado. Ficou a promessa de se falarem pelo som e,  no bate-papo, clareou-se mais o desejo de Karen de trocar palavras vivas, normais. Nada de relevante, pensou Karen, porque foi muito bom saber que ele se expressa bem e é bom trocar palavras com quem respeita o nosso achincalhado idioma.  Então, na verdade, há, neste dia de contato, muita vibração positiva, aquilo que Karen sempre ouve nas palestras ou nos livros de autoajuda, muito comum, a mesma linguagem dos especialistas no tema.

E em casa? Como estava o ambiente familiar? Uma pequena mudança que os filhos notaram, é claro, mas parecia algo assim com um único culpado: os pernilongos. O quê? — alguém se assustaria. Que diabo de pernilongos são esses? O seguinte: Karen e Enéias tiveram uma pequena discussão. Voz baixa. Nada de gritos de ciúme por parte da mulher, apenas um princípio forte de amor próprio. É o que ocorre com as  pessoas hoje  em dia: “O único problema do casamento é a falta de confiança” — já escrevia em sua coluna  do jornal Estado de  Minas, em 1952, a conselheira e guia sentimental Ivone Borges Botelho. A afirmativa continuou valendo como se fosse uma lei para os anos seguintes.

E nisso aparece o intruso, mas quem sabe providencial, o Sapo da  Ponte para fazer abrir um novo parêntese como no capítulo anterior. Ele chega com os seus ensinamentos. Diz que o mais importante de toda a história do casamento é a mudança de comportamento, sentimento, entendimento. Vem  dizendo que no tempo do onça os homens nunca tinham contato com  a  namorada senão por recados, às vezes rápidos  encontros na rua, ou um aceno de mão. Se gostava da menina, chamava um cupido para conversar com ela ou escrevia aos pais dela. Para pedir  casamento, mesmo sem contato algum um com a outra, escrevia uma carta, ou incumbia alguém de fazer por ele. A resposta do pai da moça quase sempre vinha, no caso de positiva, marcando já a data do casório. Se fosse negativa, havia o respeito total e cancelavam-se os sonhos. Não havia naqueles tempos o esquentar de impetuosas paixões.

O Sapo esclarece que quando e enquanto havia namoro, perdurava também o mesmo comportamento de antes, nem um toque nas mãos, não havia esse “desrespeito”. O bicho, coaxando bem alto, explicava o seguinte: “O pai da moça queria saber que o pretendente da sua  filha era, fisicamente, um homem normal. Ou seja, se tinha o costume de ‘trocar o  óleo’ em alguma casa de tolerância”. Em outras palavras, a família da moça queria ter sempre a certeza de que o namorado ou noivo jamais ficaria com o seu par antes do casamento. “Sexo antes de se casar é não somente pecado, como também um risco porque, tratando-se de uma desvirginada ela ficaria marcada para sempre”, concluiu o Sapo que explica, ainda a necessidade de se saber o estado financeiro do futuro namorado. Aí o bichinho pula fora e fecha este parêntese.

Voltamos à casa de Karen, onde o ambiente não pesou em nada. Apenas o casal acertou que ela dormiria em outro quarto por causa dos pernilongos. Parecia  brincadeira, mas a explicação é a seguinte: ele, Enéias, queria sempre dormir com a janela aberta. Ela, Karen não aceitava, porque esses “Culex Pepeans Fatigans” (nove científico do extrator de sangue) preferem a mulher. A explicação da separação de corpos aos filhos se deu assim, exatamente para que ninguém se envolva. De si para si, Karen explicou-se que precisava dar um tempo ou uma oportunidade para o marido. Chegou a confidenciar a uma de suas amigas de trabalho, Elenice, que queria ser reconquistada pelo Enéias.

Aí segue a vida. De longe, Marcos se julgava já apaixonado, interessado, louco para ir à frente com Karen. Assim, ocorreu um longo bate-papo já no mês de dezembro do mesmo ano, 2008. Falaram-se muitas vezes por telefone. Quando um não encontrava o outro, deixavam mensagens nas redes particulares. Mas o normal passou a ser o falatório que aumentava — e muito mesmo — as contas telefônicas. Contudo, surgiu um pouco mais tarde o telefone via WhatsApp, totalmente gratuito, as trocas de afagos aconteciam ao vivo e quase a cores. Inacreditável era a percepção de Karen. Pensava ela que a voz do amigo fosse algo assim entrecheada de arranhos, um pouco fanhosa. Será o sotaque do Nordeste? Ou é uma alteração feita pela distância, pois estavam a mais de 2.800 quilômetros de separação física.

À amizade ela já havia se entregado inteiramente. Considerava Marcos Aurélio um verdadeiro guru, talvez um psicólogo de graça. Todas as suas questões mundanas contava para ele, ou por escrito pelo WhatsApp ou MSN ou num telefonema. Eram problemas do seu casamento que se desmoronava aos poucos, dos filhos que os sentia diferentes ou no relacionamento com os demais familiares e até amigos. Certo dia, Karen gritou ao telefone umas expressões fantásticas de elogios ao amigo. Disse que estava se sentindo cada vez mais segura quando conversava com ele, agradeceu-o penhoradamente

Chegou  a época do Natal e do Ano-Novo e aconteceu um fato interessante: Karen quis comprar um presente para o seu amigo. Resolveu, então, ligar para a amiga Antonieta, como sempre a cupido dessa amizade que se empenhava em tornar-se namoro ou amor. E a ligação:
— O que você acha de eu lhe dar um presente, Nieta?
— Espetacular! Boa ideia, minha amiga.
— O que você, então, me sugere?
— Tenho que pensar. Você me dá um tempo? Acho que preciso ligar para ele.
— Então, aguardo a sua chamada, Nieta. Tão logo me fale, vou comprar e envio a ele.
— Olhe — antecipou Antonieta — eu devo ir lá me encontrar com o meu amor, né? O rapaz de que lhe falei, Geraldo Bonifácio, que é colega de emprego do Marcos em João Pessoa. Devo passar por lá as festas de fim de ano. Posso levar o presente dele ou eu mesma comprar para você.

— Olha, me veio uma luz aqui agora — diz Karen — não vou dar presente nenhum. Ele é meu amigo e nem penso em transformar isso em namoro. Dar-lhe um presente vai parecer interesse meu. Minha mãe me ensina que uma mulher nunca deve se antecipar ao homem no interesse sentimental  — concluiu Karen e deu como encerrado o assunto.
E Karen volta para si mesma. Percebe uma mudança operando: era muito calada e se tornou uma tagarela. Mas nunca contava tudo, deixava as pessoas sem saber, logicamente, o que se passava com ela. Fazia perguntas incríveis às pessoas. Por exemplo:

— Você acredita no amor?
— Existe ilusão e existe amor de verdade?
— A grande descoberta do ser humano na terra chama-se amor?
— As pessoas podem apaixonar-se mais de uma vez?
— O amor existe na adolescência ou na idade madura?

Caminhava pelas ruas de sua cidade sempre à cata de uma pessoa com quem falar. Não encontrava, no entanto, as que desejava abrir-lhes o coração. Quando aparecia alguém mais confiável, levava-lhe a notícia, que seria de uma paixão que “atravessava o coração de alguém” mas nem dizia nenhum dos “alguéns”, o de lá ou a de cá. Percebeu que falava muito e precisava se conter. Lembrou-se de uma palestra em que o palestrante dizia: “A grande utopia das pessoas é encontrar ouvintes”. Naquela ocasião, o conselho do psicólogo que falava tinha o seguinte conselho: “Não ceda! Só fale com quem o quer ouvir. Normalmente — explicou na ocasião — as pessoas querem falar, somente falar.


Nelson Rodrigues, escritor brasileiro que brilhou no seu tempo (década de 1960) e continua ainda vendendo livros, apesar de estar em outro plano de vida. Segundo ele, somente duas pessoas nos ouvem hoje, o psicanalista e o médium espírita. Ao primeiro pagamos para que nos ouça; ao segundo apenas nos curvamos a uma nova fé religiosa. “A igreja vazia também é um ouvinte: — ouvia o eterno e ouvia o sagrado, que estão enterrados em nós”, escreveu o dramaturgo.

E estamos em setembro de 2008 numa casa da Rua das Flores, cidade de Cata-Prego, Estado de Minas Gerais, Brasil, América do Sul, Mundo. Karen Helena, com coragem e tudo, parte para a frente do espelho e se olha assustada. “Nossaaaa... preciso de um recauchutagem urgente!” — clamou de si para si a situação de seu semblante,. como se fosse um pneu desgastado. Os olhos fundos e profundos, escuros, olheiras quase roxas como se tivesse levado uns incríveis bofetadas. As sobrancelhas requerem  trato especial de algum profissional qualificado. A face clara paira  um pouco inchada como uma manga rosa exposta na fruteira da copa. Não se acha bonita nem antes nem agora ao sair da cama. Ou melhor, na sua perene humildade, requer as coisas lindas somente para outras pessoas. Sinal  insofismável de virtudes que trouxe do berço, da mãe, um pouco do pai saudoso. Veio  a conclusão imediata: “Preciso me cuidar!” Ou ir ao borracheiro?
                                                     
Correu direto ao smarthphone e o encontra cheio de mensagens. No Facebook  havia uma foto sua com a família: filho, filhas e a mãe amada, adorada, os filhos venerados. Faltou o marido, repórter de “Diário de Cata-Prego”. As opiniões dos amigos em comentários nunca variavam: “Lindos, lindos, lindos!”. Olhou uma  foto sua feita no trabalho, melhor dizendo, numa feira realizada na cidade. Ela como recepcionista, depois expositora, a seguir vendedora, a profissão nata. Clicou em fotos e os inarredáveis comentários: “Linda, linda, linda”. E voltou a pensar: “Se eu fizer um sélfie ou selfie (inglês)  e postar, com essa feiúra  toda, juro que vão comentar mesmo assim: ‘Linda, linda, linda’. Então, devo ouvir a minha opinião somente  e digo a mim mesma que estou horrível, horrível, horrorosa. Vou ligar pro salão de beleza e pronto, devo cuidar de mim”. Papo final, horário marcado para a tarde. Era um sábado desses sem agitação, nem casamentos, nem aniversários.

Por conta do nada ter o que fazer, vai ao computador. Abre o No Facebook. Lá está o “amigo” Marcos Aurélio com mensagens e suplicando atenção: “Bom dia, querida amiga!” — o anúncio de sua presença às 9:15. A seguir outra mensagem: “Quero mais uma foto sua. Me envia? Anexo uma minha para vc espantar baratas”. Que diabo, pensou Karen,. ele já tem a minha foto. Mas isso é bom. Sinal de haver insistência em ser amigo porque viu a minha cara de há muito. Com certeza, gostou dela. Karen Helena ainda não respondeu. Esperou. e leu “Escrevendo” — informa a tecnologia do MSN, ou melhor, havia pulado para o WhatsApp.  Adiante: “Outro sélfie para você!”. E Karen repara bem a imagem: “Não parece bonito de morrer, não é um galã de cinema de Hollywood nem um ser bronzeado como um artista havaiano. Isso me convence de uma coisa: ele não é trapaceiro”. As fotos eram normais, ou seja, ele nem muito lindo, mas razoavelmente bonito. Avaliou o rapaz: alto, moreno, sem cabeça chata como os nordestinos, tudo bem. Mas o que importa são as palavras, afinal, eram apenas amigos e assim queria continuar sempre, desfrutando de sua cultura.

Deu as suas respostas. Desta vez mais branda, bem amena e diferente do contato passado.  Respeitosa, amiga, interessada numa amizade nordestina. Ter amigos nesses lugares é bom. Quem sabe, um dia, uma temporada de descanso? O Nordeste é, hoje, uma região muito requisitada pelo resto do Brasil. Acabou-se aquele tempo de ter pena do povo por causa da seca, de esperar que o governo implemente aqueles planos especiais de ajuda ao agricultor, ou ao fazendeiro. Nada como do tempo de Vidas Secas, drama inconteste de Graciliano Ramos. Então, dedilharam muito, muito, muito. Marcos Aurélio cada vez mais interessante, ela avaliava. Escreve bem, pensou. Expressa sentimentos com a autoridade de quem os sente. Faz  expressões vivas tornarem-se uma espécie de sussurros. Como? Vou ver se dá para explicar: parece que ela está perto dele, sentindo seu hálito, vendo seus gestos, algo assim notável e de gosto apurado. Ele conta casos de sua amizade com Antonieta, com 22 anos, seis anos mais nova. “Nossa! Graças a Deus, não haverá nada mais que amizade entre nós porque tenho 34 e não vou mesmo namorar um verdadeiro menino para mim. Já tenho uma filha de 13, outra de 11 e um menino de 7. Posso me soltar mais porque você se  parece um amigo muito leal!” — escreveu a ele de supetão, quase sem pensar. Arrependeu-se mas não dava tempo mais de apagar. Deixa pra lá, pensou..

“Idade não interessa!” — Exclama o paraibano vendo escorrer por entre as teclas do computador a sua esperança, pois o que deseja, de verdade é conquistar aquela mineira muito bem recomendada pela amiga Nieta, moradora de São José dos Pinhais. Nessa conversa via  Zap-Zap que se passou houve várias tentativas de um papo por telefone, uma conversa mais natural. Ambos tentaram discar, mas nada concretizado. Ficou a promessa de se falarem pelo som e,  no bate-papo, clareou-se mais o desejo de Karen de trocar palavras vivas, normais. Nada de relevante, pensou Karen, porque foi muito bom saber que ele se expressa bem e é bom trocar palavras com quem respeita o nosso achincalhado idioma.  Então, na verdade, há, neste dia de contato, muita vibração positiva, aquilo que Karen sempre ouve nas palestras ou nos livros de autoajuda, muito comum, a mesma linguagem dos especialistas no tema.

E em casa? Como estava o ambiente familiar? Uma pequena mudança que os filhos notaram, é claro, mas parecia algo assim com um único culpado: os pernilongos. O quê? — alguém se assustaria. Que diabo de pernilongos são esses? O seguinte: Karen e Enéias tiveram uma pequena discussão. Voz baixa. Nada de gritos de ciúme por parte da mulher, apenas um princípio forte de amor próprio. É o que ocorre com as  pessoas hoje  em dia: “O único problema do casamento é a falta de confiança” — já escrevia em sua coluna  do jornal Estado de  Minas, em 1952, a conselheira e guia sentimental Ivone Borges Botelho. A afirmativa continuou valendo como se fosse uma lei para os anos seguintes.

E nisso aparece o intruso, mas quem sabe providencial, o Sapo da  Ponte para fazer abrir um novo parêntese como no capítulo anterior. Ele chega com os seus ensinamentos. Diz que o mais importante de toda a história do casamento é a mudança de comportamento, sentimento, entendimento. Vem  dizendo que no tempo do onça os homens nunca tinham contato com  a  namorada senão por recados, às vezes rápidos  encontros na rua, ou um aceno de mão. Se gostava da menina, chamava um cupido para conversar com ela ou escrevia aos pais dela. Para pedir  casamento, mesmo sem contato algum um com a outra, escrevia uma carta, ou incumbia alguém de fazer por ele. A resposta do pai da moça quase sempre vinha, no caso de positiva, marcando já a data do casório. Se fosse negativa, havia o respeito total e cancelavam-se os sonhos. Não havia naqueles tempos o esquentar de impetuosas paixões.

O Sapo esclarece que quando e enquanto havia namoro, perdurava também o mesmo comportamento de antes, nem um toque nas mãos, não havia esse “desrespeito”. O bicho, coaxando bem alto, explicava o seguinte: “O pai da moça queria saber que o pretendente da sua  filha era, fisicamente, um homem normal. Ou seja, se tinha o costume de ‘trocar o  óleo’ em alguma casa de tolerância”. Em outras palavras, a família da moça queria ter sempre a certeza de que o namorado ou noivo jamais ficaria com o seu par antes do casamento. “Sexo antes de se casar é não somente pecado, como também um risco porque, tratando-se de uma desvirginada ela ficaria marcada para sempre”, concluiu o Sapo que explica, ainda a necessidade de se saber o estado financeiro do futuro namorado. Aí o bichinho pula fora e fecha este parêntese.

Voltamos à casa de Karen, onde o ambiente não pesou em nada. Apenas o casal acertou que ela dormiria em outro quarto por causa dos pernilongos. Parecia  brincadeira, mas a explicação é a seguinte: ele, Enéias, queria sempre dormir com a janela aberta. Ela, Karen não aceitava, porque esses “Culex Pepeans Fatigans” (nove científico do extrator de sangue) preferem a mulher. A explicação da separação de corpos aos filhos se deu assim, exatamente para que ninguém se envolva. De si para si, Karen explicou-se que precisava dar um tempo ou uma oportunidade para o marido. Chegou a confidenciar a uma de suas amigas de trabalho, Elenice, que queria ser reconquistada pelo Enéias.

Aí segue a vida. De longe, Marcos se julgava já apaixonado, interessado, louco para ir à frente com Karen. Assim, ocorreu um longo bate-papo já no mês de dezembro do mesmo ano, 2008. Falaram-se muitas vezes por telefone. Quando um não encontrava o outro, deixavam mensagens nas redes particulares. Mas o normal passou a ser o falatório que aumentava — e muito mesmo — as contas telefônicas. Contudo, surgiu um pouco mais tarde o telefone via WhatsApp, totalmente gratuito, as trocas de afagos aconteciam ao vivo e quase a cores. Inacreditável era a percepção de Karen. Pensava ela que a voz do amigo fosse algo assim entrecheada de arranhos, um pouco fanhosa. Será o sotaque do Nordeste? Ou é uma alteração feita pela distância, pois estavam a mais de 2.800 quilômetros de separação física.

À amizade ela já havia se entregado inteiramente. Considerava Marcos Aurélio um verdadeiro guru, talvez um psicólogo de graça. Todas as suas questões mundanas contava para ele, ou por escrito pelo WhatsApp ou MSN ou num telefonema. Eram problemas do seu casamento que se desmoronava aos poucos, dos filhos que os sentia diferentes ou no relacionamento com os demais familiares e até amigos. Certo dia, Karen gritou ao telefone umas expressões fantásticas de elogios ao amigo. Disse que estava se sentindo cada vez mais segura quando conversava com ele, agradeceu-o penhoradamente

Chegou  a época do Natal e do Ano-Novo e aconteceu um fato interessante: Karen quis comprar um presente para o seu amigo. Resolveu, então, ligar para a amiga Antonieta, como sempre a cupido dessa amizade que se empenhava em tornar-se namoro ou amor. E a ligação:
— O que você acha de eu lhe dar um presente, Nieta?
— Espetacular! Boa ideia, minha amiga.
— O que você, então, me sugere?
— Tenho que pensar. Você me dá um tempo? Acho que preciso ligar para ele.
— Então, aguardo a sua chamada, Nieta. Tão logo me fale, vou comprar e envio a ele.
— Olhe — antecipou Antonieta — eu devo ir lá me encontrar com o meu amor, né? O rapaz de que lhe falei, Geraldo Bonifácio, que é colega de emprego do Marcos em João Pessoa. Devo passar por lá as festas de fim de ano. Posso levar o presente dele ou eu mesma comprar para você.

— Olha, me veio uma luz aqui agora — diz Karen — não vou dar presente nenhum. Ele é meu amigo e nem penso em transformar isso em namoro. Dar-lhe um presente vai parecer interesse meu. Minha mãe me ensina que uma mulher nunca deve se antecipar ao homem no interesse sentimental  — concluiu Karen e deu como encerrado o assunto.
E Karen volta para si mesma. Percebe uma mudança operando: era muito calada e se tornou uma tagarela. Mas nunca contava tudo, deixava as pessoas sem saber, logicamente, o que se passava com ela. Fazia perguntas incríveis às pessoas. Por exemplo:

— Você acredita no amor?
— Existe ilusão e existe amor de verdade?
— A grande descoberta do ser humano na terra chama-se amor?
— As pessoas podem apaixonar-se mais de uma vez?
— O amor existe na adolescência ou na idade madura?

Caminhava pelas ruas de sua cidade sempre à cata de uma pessoa com quem falar. Não encontrava, no entanto, as que desejava abrir-lhes o coração. Quando aparecia alguém mais confiável, levava-lhe a notícia, que seria de uma paixão que “atravessava o coração de alguém” mas nem dizia nenhum dos “alguéns”, o de lá ou a de cá. Percebeu que falava muito e precisava se conter. Lembrou-se de uma palestra em que o palestrante dizia: “A grande utopia das pessoas é encontrar ouvintes”. Naquela ocasião, o conselho do psicólogo que falava tinha o seguinte conselho: “Não ceda! Só fale com quem o quer ouvir. Normalmente — explicou na ocasião — as pessoas querem falar, somente falar.


Nelson Rodrigues, escritor brasileiro que brilhou no seu tempo (década de 1960) e continua ainda vendendo livros, apesar de estar em outro plano de vida. Segundo ele, somente duas pessoas nos ouvem hoje, o psicanalista e o médium espírita. Ao primeiro pagamos para que nos ouça; ao segundo apenas nos curvamos a uma nova fé religiosa. “A igreja vazia também é um ouvinte: — ouvia o eterno e ouvia o sagrado, que estão enterrados em nós”, escreveu o dramaturgo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

HISTÓRIA VERÍDICA DO INACREDITÁVEL

Assim nasce uma amizade... comum
(Capítulo 3)


— Ufa, mãe! Estou cansada! Como trabalhei nesses dias!
Karen olhava para Dona Querenina com cara de meio-morta. Além das correrias na loja, ela tinha montado uma barraca de vendas de roupas numa feira da cidade. Trabalhava em torno de 16 horas por dia... ou mais, como diziam as suas colegas.

— Agora vai descansar, minha filha! Durma aqui comigo.
— Tenho que ir para casa, mãe!. Meus filhos e meu marido estão me esperando. Passei aqui somente para te ver e pedir a bênção. E olhar se um dos meninos pode  me levar à minha casa, porque pegar ônibus nesse horário não é fácil.

Karen tem dois irmãos mais novos, Walter e Wender. Mas era uma sexta-feira, dia de sair, cada um tinha tomado um rumo na cidade. Divertir-se porque quem trabalha mesmo somente essa Karen maluca. Sempre a mãe e até o pai, que infelizmente se foi há algum tempo, diziam que “essa menina não tem quem a faça parar de exagerar no trabalho!”

Eram mais de 22 horas e não havia ninguém em casa, a não ser a Dona Querenina.
— Os meninos estão na rua, Karen, já te falei! Vou chamar um táxi para você.
— Ótimo. Vou tomar uma água gelada, um cafezinho e espero. Mas, olhe, pode chamar um mototáxi mesmo. Táxi aqui é caro de mais, ou melhor, é um artigo de luxo.

E veio o mototáxi, então. E bem rápido. Em Cata-Prego tornou-se esse um dos mais utilizados meio de transporte. Perigoso, sim, mas ágil e barato. Os motoqueiros são chamados e, no caso de uma passageira que recruta chega o atendimento com capacete rosa. Com um desses rosados na cachola, às 10 horas e tanto da noite lá se foi a filha de Dona Querenina. Em casa, Enéias já tinha chegado e aguarda a esposa. Dois trabalhadores, pais de família, comprometidos com o dever de zelar pelos filhos e, principalmente, continuar sendo um casal exemplar.

Ao empurrar a porta que estava recostada, Karen repetiu as mesmas palavras de cansaço, as que dissera à mãe e foi logo procurando os filhos casa adentro. O marido, que estava num canto, encolhido num sofá lendo “Diário de Cata-Preto” a inquiriu sobre o fim desse martírio de terminar o dia numa loja, continuar o trabalho na feira e chegar à casa esbodegada.

— Muito cansativo, viu? — comentou com ela.
— De verdade, é mesmo. Mas eu não podia perder essa oportunidade de pegar um dinheiro extra. Está tudo ficando muito difícil. Quando pinta uma chance, não podemos rejeitar, né?
No caso de trabalhar hoje em dia é preciso agarrar às  oportunidades. Certas pessoas não encontram emprego de jeito nenhum, mas as competentes e bem-dispostas até fogem do trabalho.
— No meu caso tenho que usar o bom-senso — pondera Karen. Mas Enéias é bom demais em humor e retruca:
— Bom-senso é uma qualidade das pessoas que pensam como nós! (rsrsrsrsrs)

O companheiro de longos 14, 15 anos acabou consentindo. Ou melhor, calando-se. “Não é hora de discutir, deixemos isso para depois” — disse de si para si, silenciosamente.
Encerrou-se o assunto e Karen saiu à procura dos filhos Adília e Wilton, já dormindo; Ana no computador, afirma que está desligando a máquina e que ia dormir. Karen, precisava olhar uns e-mails que aguardava como respostas a questões comerciais. Ela e a filha comentaram a respeito de  acidentes que ocorreram mais cedo na BR próxima.

— Dois mortos hoje de manhã, ouvi no programa do Nielsen, mãe?
— Puxa! Ontem também morreram três ou quatro, sei lá. Que é isso? Esse povo precisa tomar juízo no asfalto! — emendou Karen.
— Mãe esta vida não tem sentido, viu? Fique sabendo disso. Eu, que sou sua filha estou te falando. Para morrer basta estar vivo. Veja bem, a senhora se lembra de minha amiga Jane, coitada. De manhã falando com a turma no Facebook e à tarde dentro de um carro capotado.

Aproveitando a oportunidade, atrevido como sempre, o Sapo da Ponte, que coaxou e coaxa durante muito tempo me acordando ou não me deixando dormir, ou até fazendo dormir com aquele barulho enjoativo, pede passagem nesta história para palpitar acerca do mundo de acordo com essa trama, a reclamação de Aninha. Além de ser sapo — e na minha terra não é apenas uma designação genérica de anfíbio — ele é adepto incondicional de A VIDA É BELA e por causa disso quer a ideia sendo alastrada mundo afora. E, ainda, lá tem o verbo “sapear”, que significa intrometer-se, vigiar, acudir. Ele apenas deseja, neste momento, cumprimentar Karen Helena Pinheiro pela sua atração moral, física, de simpatia e causadora de amizade. Mas deixa, sim, um alerta, principalmente para Ana: olha, somos unos, únicos, individualmente insubstituíveis e temos uma missão a construir na vida. Não há vida sem sentido, por mais simples e jogada fora que pareça. Pelo contrário, precisamos, urgentemente, neste período de vida terrestre, descobrir qual a nossa vocação, ou missão que, depois de descoberta, nunca pode ser esquecida e dela desvencilhada. O Sapo diz: “Meu amigo aí ficou perdidamente procurando, mas tem um grande crédito de nunca ter desistido. Tudo na vida se resume nisto: procurar, encontrar e, em seguida, executar”. Complementando o Sapo, vai a seguinte orientação: trata-se de um projeto de vida. E a terna e eterna conclusão: nunca, jamais, em tempo algum seria permissível que a vida existisse sem um objetivo, uma finalidade, um sentido.

E o Sapo Sabidão retira-se, agradece a oportunidade de poder inserir a sua mensagem, retorna à sua ponte preferida, isto é, onde escolheu para viver e promete voltar sempre. Aqui fecho o parêntese  para continuar nesta história que vai ficar espetacular.

Cata-Prego é uma cidade de trânsito maluco. Fora a cidade, as suas estradas de acesso estão quase sempre e completamente lotadas. Morre gente a cada dia, ou hora, principalmente motoqueiros. Esses têm motos para chegar primeiro. Ultrapassam pelos canteiros centrais, cortam nos acostamentos, não há regras e normas para eles. Karen critica, mas acaba de chegar em uma dessas garupas mortais. Mas nem comenta. O tempo de um bairro ao outro foi seis minutos. O trajeto normal, devagar, demoraria 15 a 20 minutos.

Antes mesmo do necessário banho e de se imiscuir entre a fronha, colcha e cobertor, Karen foi ao computador. Havia mesmo uma meia dúzia de e-mails a aguardando. Devagar, um a um, foi abrindo e anotando as respostas. Ficou um último recado para o final. O remetente informava “Marcos Aurélio” e a bem-casada Karen tremeu em cima dos sapatos. Partiu para clicar a abertura da mensagem e parou... tremia mesmo e abriu, finalmente. E leu: “Prezada Karen...” Tirou os olhos, suspirou, respirou. Finalmente, pensou consigo mesma: “Que nada! Vou  ver o que esse moço quer mesmo”.

E continuou a leitura: “Fiquei conhecendo vc pela nossa amiga Antonieta. Ela me manda algumas fotos suas. E fala maravilhas de vc. Estou encantado com as fotos e, mais ainda, com o seu jeito de ser, segundo ela. Quero ser seu amigo. É pedir muito? Obrigado. Marcos.”

Karen desliga o computador. Não dá a mínima para a mensagem recebida, pelo menos por enquanto. Mas ficou pensando em Antonieta, porque ela foi quem passou o seu endereço eletrônico ao rapaz nordestino: será o que essa menina quer comigo? Por que deseja que eu faça amizade com pessoa de outro sexo assim tão interessadamente sem que eu sequer conheço?” Absorta nesses pensamentos, curtindo o cansaço, depois do banho e de troca de palavras com o marido, fechou os olhos e caiu nos braços de Morfeu, ou de Enéias, como queiram.

Longe dali, lá nas terras de João Pessoa, na Paraíba, Marcos Aurélio de Souza levava a sua vidinha simples, embora filho de pais como se diz lá no Nordeste, “de vida arrumada”. Tinha concluído o curso técnico em Mecânica e, mais do que isso, dominava grande experiência em montagens de máquinas pesadas. Pensava em trabalhar num dos dois lugares: ou São José dos Pinhais no Paraná, ou em Lisboa, Portugal. Ou simplesmente continuar no seu atual emprego, sem ganhar um salário que desejava. Para a primeira cidade tinha sido convidado por Geraldo Bonifácio, nascido em João Pessoa e que estava trabalhando e morando no Sul, numa empresa multinacional. Bonifácio namora Maria Antonieta Melo Dias, a irrequieta amiga de Karen Helena.

E olhem que montagem de cenas complicadas! Duas pessoas envolvidas nesta trama no Sul, Antonieta e Geraldo Bonifácio; uma em João Pessoa, o mecânico Marcos Aurélio; e a terceira, Karen, sua família e seus amigos em São José do Cata-Prego. Na Cata-Prego, quem andou catando conversas no ar foi Enéias. Sua mulher não estava nada satisfeita com algumas descobertas que fez e que o deixavam meio atônito. Entre ambos havia, ainda, uma longa ponte resistente. Karen rezava insistentemente para que o amor continuasse firme depois de 14 anos de um casamento feliz que havia declinado um pouco. Dava oportunidades a Enéias. Esse não percebia e se mergulhava em um certo acontecimento que não deixou transparecer.

Indo ao PC, no dia seguinte, Karen foi direto ao tal e-mail do desconhecido Marcos e pensou: “Dou resposta, não dou, deixo pra lá, não deixo, nada tenho para dizer, tenho”. Incertezas sobre incertezas, conseguiu encontrar uma saída. Clicou em “responder” e começou: “Senhor Marcos Aurélio, tudo bem com vc?  Agradeço a vc e à Antonieta pela amizade. Um abraço”. Secamente. E só. E mandou. Não demorou a chegar a tréplica, que propunha conversa em dois canais: ou via WhatsApp ou  Messeger, ou os dois. Karen concordou, esclareceu que não estava muito assídua por causa de trabalho e, então, só lhe restou fôlego para aguentar a insistência.

Nada muda para Karen até esta altura. A resposta que deu foi apenas uma contingência normal e só andou meio indecisa por causa da tenaz persistência antiga de Antonieta. Essa, não se sabe se de propósito, estrategicamente, sumiu, ou deu uma parada nos contatos. Os novos amigos virtuais trocaram números de telefone para ativar o WhatsApp e nomes no Facebook. Agora seria a vez de o rapaz de João Pessoa iniciar o que pretendia. Ou não pretendia? Veremos.

A propósito da moda da internet, até Karen, que usa muito esse meio de comunicação, prefere a conversa olho no olho para certos assuntos: conversa com o marido, os filhos, outros familiares e alguns amigos. Ela sempre diz que, quando não dá tempo de uma visita, sim, um bate-papo pega bem. Pensa que a comunicação via SMS, MSN, Zap seria para marcar um encontro, acertar agendas e só. A conversa mesmo tem que ser pessoal.
E até se diz revoltada porque as pessoas estão falando pouco uma com a outra, usando mais o celular. Na sua caminhada diária pela avenida que existe perto de sua casa, só é cumprimentada em gestos. A maioria dos cidadãos fica ouvindo músicas, alguns usando fone de ouvido maior que a orelha. “Eita mundo insensível isso tá virando!” — exclama e reclama a todo o instante. E repara que ninguém está disponível para uma conversa, seja no grupo da caminhada ou mesmo nos pontos de ônibus, nas lojas.

Verdade absoluta. Ana conta o que se passa em seu colégio. O professor, na sala de aula, não consegue mais proibir o uso de aparelho celular. Alguns alunos colocam o aparelho no bolso e um fone pequeno no ouvido. Passam o tempo de toda aula ouvindo a música que querem ouvir e alheios totalmente à matéria ministrada. Vez por outra, o professor flagra um nessa concentração distante, longe do mundo. Se tem a coragem de inquirir o aluno, arrepende-se sempre porque o seu pupilo prefere mesmo o smarthphone à sua aula 50 minutos de falatório.

Por ironia, olho no olho, como Karen prefere, o seu casamento sofre um baque complicado quando menos se espera. Por razões que a própria razão desconhece, marido e mulher, Enéias e Karen, se enfrentam e há uma mudança quase radical, digamos, nesse ínterim, de acontecimentos. Separam-se, depois de uma discussão acalorada. Um pouco alterada mas dentro dos conformes segundo o gênio calmo dos dois, principalmente do marido. As regras seguem como diz um padre da Igreja do Alto da Boa Vista, em Cata-Prego, “no dia do casório noivo e noiva parecem acertar a separação, como se o matrimônio fosse apenas uma passagem relâmpago de tempo de vida ou um contrato de empréstimos de corpos”.

Mas somente, como diz a expressão usada juridicamente “de corpos” aconteceu na casa do casal. Um para um quarto, outro para outro quarto, a exemplo do que muitos psicólogos aconselham aos casais para melhorar o relacionamento. Só que nesse caso de Karen-Enéias não tinha o intermediário namorisco receitado pelo especialista em análise de personalidade. Apesar disso, tudo continuou aparentemente sem alguém de fora perceber. Apenas para uma ou outra amiga íntima Karen confessou: “Estou dando uma oportunidade ao meu marido de me reconquistar”.

Agora ela está no trabalho, na loja se viam clientes até pendurados no lustre e o telefone toca:

— Alô!!! Quem fala? — Karen atende.
Adivinhe!     — Responde rompante a voz masculina do lado de lá.
— Meu Deus, não sei quem pode ser!...
— Você não viu o meu número no seu bina?
— Perdoe-me, não vi — Karen é taxativa.
— Aqui é o Marcos Aurélio, amigo de Antonieta.
— Oi, tudo bem?
— Você não se importa por eu te ligar, não, né? — Tenta se sair bem o mancebo que está longe, mas longe mesmo, lá em João Pessoa, na Paraíba, bem no Nordeste do Brasil.
—  De forma alguma. Só pediria a você que me ligasse em outro horário porque estou no trabalho.
—  OK. Que horas posso te ligar?
— Me ligue às 10 e meia da noite, ou amanhã cedo, por favor!
—  Tudo bem, desculpe-me. Amanhã te ligo às 10 horas da manhã. Certo?
— Certo. Obrigada.

E assim se deu uma primeira ligação, conferida logo a seguir por Karen, com o prefixo, ou código, 83, de João Pessoa. E ela, consigo mesma: “Meu Deus, continuo não entendendo o que interessa ter um amigo na Paraíba!” Mas se conteve: quem sabe é Deus que me está guiando a esse amigo? Não seria ele um caminho para uma justa oportunidade empreendedora? E concluiu: “Não vou mais questionar. Deixa correr! Nós, humanos, quase sempre recebemos uma chance na vida de alcançar algo e nem prestamos a atenção. Vou correr o risco. Serei mais amiga, mais cautelosa com esse tal de Marcos Aurélio”.

E, mais uma vez chega tarde em casa, depois de novo dia de grande esforço físico e intelectual. Agora parece saber o que se passa em sua cabeça, assim pensa Quem sabe a oportunidade empreendedora? E decidiu: “Vou perguntar a esse nortista se tem um negócio bom para que eu me decida ir ao Nordeste ganhar muito dinheiro e voltar completamente independente. Assim vale a pena!”