Chega de chorar a partida de Irmã Miriam! Só não chega de escrever
sobre a sua vida de passagens lindíssimas em várias cidades brasileiras, de
norte a sul de Minas e até do País. É preciso repetir que ela nasceu em São
Sebastião do Rio Preto, onde plantou muitas páginas de religiosidade na
evangelização, e viveu maior parte da vida em Itambacuri, cujo povo a ama
fervorosamente e jamais a esquecerá.
Agora resolvo fazer uma pequena seleção de momentos de júbilo que
ela promoveu em seus quase 100 anos de vida, utilizando sua memória
impressionante. Daria um livro essa existência fecunda e feliz e renderia uma
enciclopédia o transcurso de suas lutas e glórias.
Aviso a todos que a sequência destes capítulos não é cronológica,
embora pareça. Vou tentar pontuar para segurar você, meu ilustre leitor, com
fatos vividos por ela, com a minha complementar presença fofoqueira. Sou
assumido e mereço crédito, modéstia às favas.
AÇÚCAR NA CHUPETA
Tenho uma irmã que se chama Maria das Graças, a
terceira da prole de dez da escadaria fértil de Itália Sana e Tãozinho do Godó.
Chorona quase inconciliável, criada com leite de cabra que ficava
complementando os berros na porta da cozinha, forte pra chuchu, ninguém dava
conta dela quando resolvia choramingar. Na hora de dormir soltava um berreiro
de atropelar ouvidos da pequena Vila São-Sebastianense, ex-Cachoeira Alegre.
Só havia uma pessoa que, em minutos, calava esse choro persistente:
Nenzinha do Godó, ou Raimunda, futura Irmã Miriam da Natividade, depois Irmã
Miriam de Almeida. Meu pai acelerava os passos da Rua de Cima à Rua de Baixo
para buscar a reboque minha Tia Nenzinha, que parecia ter o segredo da mágica que
causava silêncio profundo após sua
chegada e interferência no ambiente ao redor.
A repetição do ato parecia um milagre e tinha certa curiosidade
geral. Anos a fio, Maria das Graças cresceu e o “milagre” de Irmã Miriam se
perpetuou misterioso. Muitos queriam saber, até que meu Pai resolve, um dia, já
tardiamente, a menina já era mocinha, fazer-lhe a pergunta: “Me conta aqui o
que fazia para calar a choradeira de Maria das Graças?” Irmã Miriam, depois da
sua solene gargalhada, disse para todos ouvirem o seguinte: “Nada eu fazia,
apenas mergulhava a chupeta molhada na xícara de açúcar e colocava em sua boca;
era o que bastava para devolver-lhe o sono”. Risos gerais.
UM TAPA NO GINÁSIO SÃO
FRANCISCO
Estamos em pleno ano letivo de 1959, eu aprisionado no Alcatraz de
Conceição do Mato Dentro, ou excelente Ginásio São Francisco, dirigido pelos
Padres Capuchinhos, onde um diploma de Ensino Fundamental equivale a um curso
superior, sem brincadeira. Estou na terceira série. Sou surpreendido por uma
visita inusitada de minha Tia Irmã Miriam, da mesma Congregação dos padres capuchinhos
e do diretor Frei Isaías da Piedade, das Clarissas Franciscanas de São
Francisco de Assis.
Neste momento, estou em sala de aula e um regente me chama à
porta, intimando-me a comparecer na sala da diretoria. É o momento em que a
barriga de qualquer menino de 13 anos gela, ainda mais quando a zombaria geral pode
ser imaginada como admoestações dos freis disciplinadores. Com o coração dando
pedaladas junto de meus passos, disparo-me no rumo da sala do bravo Frei, que
me aplicava sempre boas “cocadas” (coques na cabeça). Ele me detém na antessala
e me diz sorrateiramente: “Sua Tia Irmã Miriam, minha companheira de
Congregação, está aí e quero que você lhe faça uma surpresa; ela não sabe que
você está aqui; só quero que lhe beije a mão como gosto que os alunos façam com
seus mestres superiores, você sabe!”
Prendo a respiração, o medo abrange duas suposições: enfraquece-me
no gesto afetivo e ser repreendido pelo Frei (estava com nota baixa em “procedimento”,
quesito que mantinha o aluno na espécie de “solitária”) ou minha Tia não aprecia
devido à sua costumeira intempestividade e bravura indômita.
Entro e corro para ela, que me reconhece e me abraça. Olho de
lado, Frei Isaías da Piedade me contempla intempestivamente, braços cruzados e
cabeça inclinada, demonstrando nota zero para em comiseração e nega seu
sobrenome. Resta-me a penosa tarefa de lascar um beijo na mão direita de minha
Tia, e sabem o que aconteceu?
Ela me desfere a outra mão, que quase pega o olho, num tapa para
se consagrar e me deixar como autêntico vencedor da parada. Uma doce vingança,
almejada por um menino peralta. A Tia ainda aplica uma freada que me arrepia dos
pés à cabeça, apesar de ser repreensiva a atitude: “Onde você aprendeu isso, menino?
Eu não sou nenhuma rainha!”
Minha felicidade cresce ao olhar a cara do barba-longa e avermelhado
diretor, um capuchinho tido como disciplinador de fazer tremer qualquer rapaz
forte, que supera os outros diretores, menos rigorosos que seu antecessor, o italiano
Frei Gabriel de Melilli e Frei Agatângelo, além do Capelão Frei Manoel. Esse adorava falar sobre capeta e inferno, além de outros padres que moravam ao lado do Santuário de Bom Jesus de Matozinhos e que jogavam futebol com a batina marrom.
O rigor reinante no colégio fazia com que os pais dos alunos para
ali mandassem seus filhos. Eu mesmo fui parar naquele presídio devido ao que
chamavam de vadiagem praticada durante os dois primeiros anos no Ginásio
Estadual de Guanhães, onde tive a vida de reizinho, até apelidado de Cheiroso.
Anos depois minha Tia comentava o fato, reprisado sempre em
momentos de relaxe comuns em nossos encontros. Quando lhe falei que a cerimônia
do beija-mão era ritual de exigência do nobre disciplinador, restou-lhe deixar
vazar, como sempre, a sua irrefreável gargalhada.
CARONA EM ITAMBACURI
Nas minhas muitas idas a Itambacuri, a partir de 15 de dezembro de
2001 (depois conto a história desta viagem) tem uma vez em que estou aí para
presenciar a Festa de Agosto, que agita a cidade. Irmã Miriam me arranca quando
espreguiço no quarto e me diz em voz de autoridade (ela sempre foi muito franca
e nunca guardou rancor, nem amor, é preto no branco), me disse: “Me leve ao
banco?” Pulei da cama, me penteei, prontificando-me a atender as suas benditas
ordens, com muito prazer, é claro.
Entra no carro, puxa o cinto e determina: “Vá direto!”. Sigo as
ruas planas da cidade, passando por barracas da festa e parando em frente ao
Banco do Brasil. Desce e despede-se. Pergunto se devo esperá-la, responde com
um sonoro “não” e explica: “Vou passar também nas barracas e comprar umas
coisinhas; pode voltar para o seu descanso!”.
Retorno e marco no relógio a hora de busca-la: 11h20, antecedendo o
almoço. Penso: “Daqui a pouco vou buscar essa Tia teimosa”. Em 40 minutos, volto
ao local em que ela desceu, estaciono o veículo e percorro as barracas e até
compro uma camisa do Galo, que guardo entre as minhas dezenas do Clube Atlético
Mineiro.
Surpresa e susto: não encontro a querida Tia e fico preocupado, as
ruas estavam repletas de festeiros. Retorno ao Convento. Em lá chegando, ela rezava
para o almoço com as outras irmãs. Em seguida, me reprime: “Procurei você no
quarto e não estava lá; você se perdeu na cidade?” Pergunto: “Como a senhora
veio parar aqui?” Saiu de novo aquela sua tradicional barulhenta, doce e
barulhenta risada. A explicação sai de uma freira muito simpática: “Essa nossa
Irmã Superiora (ela dirige a casa) não anda dez metros a pé em Itambacuri;
todos os motoristas a conhecem, gostam dela e lhe oferecem carona; até de
caminhão costuma chegar aqui e nunca paga um táxi”.
“ATÉ QUANDO VOCÊ PRETENDE FICAR AQUI?”
Chego a Itambacuri. Estamos em 2010. Sou editor de revista, cargo
que carrego durante 20 seguidos anos. Desço do calhambeque, toco a campainha,
portão aberto, subo a rampa que, vez por outra, chamo de ladeira. Encontro três
irmãs, que gentilmente batem palmas e fazem verdadeira “festa”, saudando o
“sobrinho de Irmã Miriam”, como muitas ainda me chamam. A Irmã Superiora me
recebe feliz, me leva para o café, chego na hora certa. Ela pergunta: “Cadê a sua
mala e a Marlete? Não vem dizer que não vai ficar aqui hoje!” Eu, meio
fofoqueiro que sou, apenas aceno, zonzo de fome, devoro um pão sem manteiga, me
apresentam a margarina e, em seguida, me
levanto para buscar os apetrechos que estão no veículo.
São três malas: uma grande, com filmadora e equipamentos de
fotografia; outra menor, com um computador e revistas para distribuir; a
terceira com roupas. Subo de novo a ladeira, empurrando duas e carregando uma,
esta sem rodas. Fecho o trânsito da subida e a Tia amada vem correndo, para, põe
duas mãos na cintura, sapateia e esbraveja logo, com pose de surpresa: “Até
quando você pretende ficar aqui?”. Não lhe dou resposta.
Faço-me de cansado, assento-me, pego um calendário que retiro do
bolso e respondo: “Estamos em agosto (sempre fui lá neste mês)”. Engulo em
seco, mostro o calendário e aponto para os dias: “Vou embora dia 13 ou 14 de
dezembro deste ano de 2010. Dia 12 tenho um compromisso aqui, sou padrinho de
casamento de um funcionário do Convento”!
Sabem o que ela retruca? Nada. Silêncio total. Em seguida
arrebenta o ambiente com a sua ampla e gostosa gargalhada, de marca registrada,
só dela e de mais ninguém.
Mais tarde, chamo-a para ajudar-me a abrir as malas e lhe mostro o
que tem nelas. Ela, que não perde uma viagem, ainda me diz: “Ainda bem, você me
aliviou, mas cadê o terno deste casamento, eu me interesso por esse casório”.
Desta vez quem ri sou eu kkkkk.
José Sana
Em 01/09/2021
(Continua no Capítulo II. E
saibam todos que ela - Ir. Miriam e eu - já reprisamos “n” vezes todas as nossas
trapalhadas).