quarta-feira, 15 de julho de 2015

VIDAS ABENÇOADAS ENTRE NÓS. VIVA NÓS!

Foi assim...Estava com a mente em São Sebastião do Rio Preto mas, na verdade, morando em Belo Horizonte e ainda comendo o pão que o diabo fermentou, amassou e assou mal-assado. Mas o que me importa se a festa era de minha tia Maria das Mercês Sana? Ou melhor, devo consertar a tempo: de minha dileta irmã, pois ela sempre foi a mana que até cuidava de mim. Sim, cuidava sempre e sempre. Em  casa ou em Guanhães, onde moramos juntos. Para provar isso, tenho uma frase eternizada por minha Vó Maria, mãe dela, que viveu 105 anos e até os seus últimos minutos dizia, ao me encontrar: “Oh, Mercês, este sapato me faz chorar toda hora!” E não é preciso dizer que até hoje detesto sapatos.

Chegava o dia 16 de julho de 1965. Minha Vó faria 66 anos de idade. Ela e meu Vô Serafim (63) casariam a filha mais nova, minha verdadeira irmã, Mercês, com José Vanderlei Duarte Morais. O romance  dos dois daria um livro e, juntado ao meu envolvimento como pessoa ativa da família, somaria dois compêndios de 500 páginas. Para compensar a nossa proximidade de irmãos e quase gêmeos, diria, Mercês não me convidou para ser seu padrinho. Deveria ter pensado nisso, no meu entender, mas abusando de nossa intimidade, o que fiz eu? Tomei a escolha que ela fez de meu irmão Carlos e assumi o bastão de substituto dele por pura trapaça, conspiração que me fez apropriar do terno dele. Querem uma demonstração de amor fraternal maior que essa?

Para compensar o que ela fez — me abandonou nas suas escolhas — recebi a incumbência que guardo na lembrança com muita honra: levei-a, em Belo Horizonte, ao salão de beleza. E com uma notoriedade: não entrei, fiquei fazendo ronda nas imediações da Praça Sete com Avenida Amazonas. Quando ela saiu dos cuidados de beleza que lhe dedicaram, apresentou-se a mim, na porta do salão, quando fiquei perplexo: quem seria esta moça? Levei infinitos cinco minutos para reconhecê-la. Que bom! Estava mais linda ainda, já pensaram?

Era  a antevéspera. Partimos para a terra natal, onde aconteceria o chamado enlace matrimonial. Ah, aguardem aí. Tenho várias recordações da data, mas adianto que nem dá para contar um milésimo dos fatos porque este texto não é um livro de 500 páginas. Vamos, então, ao que interessa. Estamos na igreja matriz de São Sebastião, toda ornamentada. Vem o padre — sou muito amigo de muitos padres, mas esse meu xará não me deixou saudades —  e arranca todas as flores e fitas e cachos de orquídeas que ornamentavam os bancos. Estava lindo, até eu, na minha ignorância floral, admirava aquela linda paisagem sagrada. Mas fiquei sem entender. Quem não ficou sem ter raiva foi o meu Vô que quase parte para a goela daquele José, que esteja em bom lugar, nem sei se aqui ou em outro mundo. Ele surtou totalmente e pregou as suas lombrigas em nossas caras e contra a exuberância do ambiente. Que tenha sido perdoado por Deus!

A raiva de Serafim, segundo filho de italianos não passava. Até que, no meio da festa, depois de alguns licores e vinhos, vi-o num ato que jamais tinha contemplado na vida, mesmo quase morando no seu sobradão colonial e na sua Pharmácia (com PH mesmo). O que fazia o meu Vô? Ninguém pode imaginar! Gordo mas de porte atlético, bonito como diziam, alto, forte, tímido, ele se transformou e começou a dançar sozinho. Para mim foi um espetáculo inesquecível. Nem precisava ser filmado e  nem fotos foram feitas. Algumas pessoas riam e se deliciavam. Lembro-me do tio Lilito às gargalhadas.. Eu não ria, apenas acionava o poderio de minha memória. Disse a essa memória: “Por favor, registre, guarde, arquive, nunca perca este inesquecível instante!”

Não me perguntem se vou me lembrar de outros detalhes porque foram muitos. Foi um casamento que muito me orgulhou. Por quê? — alguém me perguntaria. Por ele, ou o convívio, foi e é regulada a minha amizade com o Vander, marido da Mercês. Essa amizade oscilava entre o namoro dos dois, ou seja, quando tudo ia bem, nos entendíamos e quando azedava o clima, éramos inimigos ferrenhos. Até que, finalmente, nos tornamos irmãos para sempre. Confesso que devo ao Vander o favor de ter adquirido uma casa antes de me casar. Ele foi um verdadeiro gerente de minhas economias, tomando-me tudo o que recebia de salário da Vale. Além de confiscar os meus centavos, ainda pagava juros. Esses valores acumulados e rendendo atualizações quase dera, para adquirir o imóvel. Posso esquecer?

O tempo passou e, neste 16 de julho de 2015, eles fazem 50 anos de feliz união. É um prêmio a Boda de Ouro, principalmente pela vida que tiveram e têm. Cinco lindos filhos (empatados comigo) e 11 netinhos (me vencem com dois de frente). O melhor de toda a história: todos os filhos bem-encaminhados na vida (empataram comigo) e gratos por terem pais de excelentes virtudes.

Só nos resta recordar que em 16 de julho de 1965 caiu uma estrela em São Sebastião do Rio Preto e iluminou uma família inteira. Vovó Maria, com os seus exagerados carinhos, fez as bonificações se estenderem a uma imensa família. Vovô Serafim, de quem sou suspeito de dizer uma só palavra — nunca me passou um só “pito”, mesmo tendo sido eu sempre um menino peralta — foi um baluarte, quem não sabe? Sua reprovação aos meus frequentes atos de rebeldia se davam com os olhos e com eles vinham também a compreensão, o apoio, a mansidão em confortar nos momentos difíceis e como foi e é difícil uma adolescência!

Neste texto falei mais da família em si. Mas para mim, o casamento é uma união de família. Vander e Mercês são exemplos de como se constroem bons exemplos e como se unem para o futuro. Nos percalços da vida dos filhos e netos, vão construindo o caminho de todos. Por saber de tantas alegrias que triunfam,  não me cabe mais pedir júbilo para os anos que virão. Pedir a Deus? Parece um ato de injustiça, porque sempre disse que Deus sabe o que faz. Temos, então, todos juntos, todos mesmo, de fazer o seguinte: AGRADECER. E amém.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

O FIM DA COMUNICAÇÃO

Nos últimos tempos, falam muito em fim. “O fim do Brasil” é o título de um livro que estou lendo, do mestre em finanças Felipe Miranda. Fim dos tempos ouve-se de religiosos, carolas ou fanáticos e fundamentalistas de doutrinas e seitas. Fim de linha —  linha férrea, anzol,  vara,  pensamento, sonho. Rua sem fim — o que mais existe em cidades feitas na marra no período quase medieval. Fim do mundo — o que os pessimistas aguardam ansiosamente. Finalmente, o fim da comunicação, tema que me assalta as ideias neste exato momento.

Indiferente ao fim de outras coisas, a comunicação está chegando ao seu inadiável limite. E desponta, para explicar isso, ou tornar ainda mais difícil a explicação, o desenvolvimento de muitos e muitos canais, muitos e muitos estudos, muitas e muitas formas. O ser humano inventou o telégrafo, a imprensa, o rádio, a televisão, a internet. À medida que esses poderosos recursos foram aparecendo na face da Terra, foi e vai se extinguindo a comunicação.

Antigamente o homem se comunicava por tambores e/ou fumaça. Conta a história que um aviso à distância era naturalmente transmitido e entendido por quem quer que fosse. Houve uma época, mais recente, em que presenciei o recado para fulano, sicrano e beltrano. Se fosse complicada, a mensagem corria o risco de chegar truncada ou mudada, mas em regra não, seguia inteira e original. Lembro-me muito bem quando os recadeiros diziam que “a notícia boa corre e a má notícia voa”. Ela corria  e voava de boca a boca.

Hoje em dia, ninguém mais dá recado. “Pode deixar que falo com ele” — essa forma inteiriça de resposta a um pedido de transmissão de lembrete se constituía na única atenção dada pelo interlocutor. Ou mesmo, um “podexá”.Nunca, nunca, nunca! Ninguém mais dá recado. Quando ocorre uma esporádica transmissão de mensagem, o destino não crê na veracidade desse aviso. O muito que pode fazer para que tudo corra bem é ligar diretamente para o remetente, mesmo que com muita dificuldade.

Dentro de minha roda de amigos e profissionais, não podendo voltar nem à fumaça nem ao tambor, envio um e-mail. Mas sei que esse não será lido. Então, segue um torpedo (SMS) ou mensagem via MSN ou o chamado via WhatsApp, ou todos juntos. Costumo também ligar que mandei e-mail, SMS, MSN e WhathsApp. Com todos esses recursos, vez por outra sou obrigado a ir pessoalmente ao endereço do destinatário para ver se recebeu todas as tentativas de mensagens. E ele, normalmente, diz: “Não tive tempo!”

Duro de roer ou entender a era em que entramos. Diria que James Watt, com a  máquina a vapor; Samuel Morse, o telégrafo; Alexander Graham Bell,  o telefone; Karl Bens, o primeiro veículo a gasolina; Guglielmo Marcon, o rádio;  Johann Gutenberg, a imprensa; Santos Dumont, o avião; Vannevar Bush, o computador analógico; Frank Whittle, o avião a jato; Telstar I, o primeiro satélite de comunicação; e com objetivos militares, foi criada a rede Arpanet que daria origem à Internet — toda essa trajetória de descobertas ou criações foi absolutamente dispensável porque a chamada nova e desenvolvida geração de hoje chuta o balde e sai dele derramando o leite do progresso.

É o fim. Quer saber o que fazer? Não leia ninguém, não ouça nenhum pé-rapado nem lambedor de rapadura. Não se comunique. Faça o contrário do que sugeria Abelardo Barbosa, o inesquecível Chacrinha: “Trumbique-se!” ou “Dane-se!”

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Uma história verdadeira e de arrepiar

O relógio da Fazenda dos Bambus marcava 15 horas e eu arrancava sozinho dali, montando a Mula Queimada do meu avô Serafim rumo a São Sebastião do Rio Preto. Era fim de férias e acabava a vida mansa que curtia sempre em Santo Antônio do Rio Abaixo, muito bem cuidado pelos tios Magda e Antônio do Inhô. Apesar dos meus 11 anos de idade, naquele tempo os meninos eram mais livres porque não havia banditismo por aí. Ao sair, recebi as bênçãos dos meus tios e o adeus dos primos  Edson, Edir, Edilon, Elair, Edvar, Ernane, Eliane,  Eustáquio, Edésio, Fernando e Antônio (reparem que, quando o estoque de “E” acabou, passou-se para o “F” e o “A” foi o ponto final no herdeiro do nome do patriarca).

São 18 quilômetros de percurso, e a boca pequena dizia seis léguas. O tempo normal de viagem dificilmente passava de três horas. A Mula Queimada, imponente e respeitável, era o xodó do meu avô, e eu, como neto mais velho o mimo dele, que tinha o privilégio de fazer o que queria. O tempo fechado para chuva naquele final de janeiro continha ameaça, não para mim que tinha umacabeça doida de criança. Mas a chegada rapidamente do toró fez com que, num momento de tempestade, me aconchegasse dentro do curral da fazenda do lendário Deolindo do Morro Grande. Vejam como eram pomposos os nomes de antigamente.

E lá ia eu, corajoso e muito seguro porque a Queimada era um verdadeiro gigante das estradas, melhor ainda que estava “ferrada” nas quatro patas. Uma pequena preocupação passou por minha cabeça quando começou a escurecer. Na altura do Córrego dos Casados, onde me casaria 14 anos depois (o tempo daquela época era mais vagaroso, como diziam nas grotas e até em cidades grandes), já estava muito escuro, não tinha o chatérrimo horário de verão, e passava de 18 horas. Daí pra frente era um pulo, bastava virar o Retiro do Niquito (meu futuro sogro) para o Retiro do Tãozinho do Godó (meu pai). Mas uma nova tempestade me pegou no Mato do Chico Lopes, onde morava outro lendário personagem, o Zé Miguel, de longas barbas, que mais parecia um personagem bíblico, que saudava todos os que passavam por ali, a cem metros de distância. Para mim, ele gritou aos super berros: “Ô minino, desce dessa besta que a chuva tá muito dimais da conta!”

Segui viagem numa escuridão de fazer medo, mas a Queimada enxergava até vagalume de lâmpada desligada. De minha parte, só via a estrada quando relampejava. Eram fortes relâmpagos de alta tensão como no teatro com trovões de batucada no céu, como as crianças diziam. O grande desafio da viagem estava por chegar. Ao virar o alto do Morro do Retiro do Tãozinho Godó, depois do Godó, em seguida do Zezé Godó, vi lá o Rio Preto transbordando, ou bufando, palavra comum do dicionário daquelas grotas. Neste momento, tive uma passageira tremedeira porque me lembrei de que a famosa Ponte do Rio Preto estava semidestruída. Digo semi porque a estrutura dela foi feita de ferro, aço, pedras e cimento, às custas do meu avô Godofredo. Ele até ficou “quebrado” porque não recebeu do Estado o pagamento pelo que fez como Conselheiro Municipal. E a estrutura serviu para apoiar a ponte construída em 1960/61 pelo governador Magalhães Pinto. A opção era o chamado vau.

Abro um parêntesis para explicar o que é vau, de acordo com o Aurélio: “É um trecho de um rio, lago ou mar com profundidade suficientemente rasa para poder passar a pé, a cavalo ou com um veículo.”
Mas, como disse, o Rio Preto bufava, ou estava a alguns metros acima de seu nível normal. E eu, meio tremendo e meio  corajoso, pensei comigo: não tenho alternativa. Voltar para aonde? Para Santo Antônio do Rio Abaixo, impossível, já fazia mais de 4 horas e meia que estava viajando às pelejas. Casas, evidentemente há, mas são poucas e eu não tinha liberdade com ninguém. Um senhor chamado Joaquim Godó, morava atrás, no retiro do meu pai, mas me sentia tímido para pedir pousada. Decidi: vou atravessar este mar! Nisso, um morador próximo, de nome João Hermógenes, chamado engraçadamente de João Imorge, viu aquele quadro, pegou o guarda-chuva e gritou: “Minino, nem pense em atravessar este rio! Está “bufando”. Volte para algum lugar.”

Que voltar que nada! Deitei-me na Mula Queimada e me agarrei ao seu pescoço como se fosse um índio de filme faroeste.  Direcionei a rédea para o local que imaginava mais livre de pedras, pois sabia que o risco seria o animal tropeçar e cair. Daí para a frente, bambeei o guidão e o barbicacho...O baixeiro, todo molhado de suor, começou a se encharcar de água suja de barro do Rio Preto, que corria em violenta correnteza. Eu no pescoço da mula só pensando em chegar do outro lado. Não medi o tempo, mas calculei horas, infinitas, eternas. Quando pensava que chegava do outro lado, a correnteza obrigava o animal a nadar, sem apoio para os pés. Mas, aos trancos e barrancos, chegamos ao outro lado.

Aliviado, molhado, tremendo de frio, toquei triunfantemente para a casa do meu avô, onde desarreei a Mula Queimada aos olhares de Serafim Sana de uma janela e Vó Maria de outra. Gritavam sem parar e me mandavam esperar a chuva passar. Não esperei porque a tempestade durava 5 horas de sequência ininterrupta, sem projeto para parar. Soltei a Queimada no pasto, guardei os arreios e apetrechos e zarpei a pé para a casa dos meus pais e minha também.

Conversa nenhuma, papo nenhum, pergunta nenhuma. Um chicote afiado me aguardava friamente: duas, três lambadas na poupança, outras nas pernas, alguns puchões de orelha, de castigo, ajoelhado na sala e mais umas duas horas de oferenda a Deus de um castigo por minha coragem intimorata de enfrentar o rio transbordante e, mais ainda, a falta de coragem de pedir pousada a um morador da estrada ou retornar para a Fazenda dos Bambús. Ao ser liberado do castigo, meu pai me perguntou: “Que tipo de arte você cometeu hoje?” E eu não respondi. Só tomei mais uns arranques, depois o banho, e fui dormir feliz da vida por não ter nem morrido e orgulhoso da história doida que vivi.

  

Dedico este texto à minha prima Afra Regina Sana, que duvidava ou duvida de que já fui cavaleiro; a Marcos Paulo Almeida Sá e Myriam Christina, esses dois últimos amigos de São Sebastião do Rio Preto.