Estamos em 5 de agosto de 1946. Três cavaleiros saem de São Sebastião do Rio Preto rumo a Conceição do Mato Dentro, mais precisamente ao internato do Ginásio São Francisco para prosseguimento das aulas no segundo semestre. Os três eram Godofredo Cândido de Almeida Júnior, Domingos Primo de Almeida e um chefe de tropa chamado “Seu Domiro”, negrão forte como um touro e de confiança de meu Avô Godó, ou melhor, Godofredo Cândido d’Almeida.
Domingos Primo de Almeida
A pequena caravana tinha saído de madrugada e agora são dez horas
da manhã. Minha Avó Sinhá carrega nos braços sua oitava netinha, Raimunda
Almeida Dias, nascida em 26 de junho. O nome,
inspirado em Raimunda Cândida
Ferreira de Almeida, nos anos seguintes
passou a ser Irmã Miriam de Almeida. A pequenininha, preservada pela avó, foi a nossa querida prima Mundica.
Vó Sinhá, ou melhor, Maria Natividade Ferreira de Almeida, silenciosamente,
acomoda na cama a frágil menina de apenas
dez dias de vida, depois de um banho cuidadoso. Em seguida, devagarinho, mantém a quietude do ambiente, cai no solo, passando da pré-agonia ao
falecimento. A casa revirou-se em desesperos incontidos ocorrido com aquele
chamado “morrer de repente” e a pequena Vila se abateu em prantos e lamentos,
visto o notável respeito que devotavam a uma mulher religiosa, serena e
carinhosa com pobres e ricos de todas as raças e credos.
Meu Avô Godó, sempre objetivo
e intempestivo, no meio da desolação, ordena
imediatamente a um outro tropeiro
(o nome desse não me foi dito e não tive a curiosidade, infelizmente, de
pesquisar) a ir correndo para deter a jornada que seguia à sede municipal, Conceição. Exatamente na
Serra de Santo Antônio do Rio Abaixo, os filhos órfãos de mãe são detidos e
retornam.
A reação dos filhos estudantes
reflete como um tiro de canhão certeiro no peito, provocando reações
diferentes. Godofredo, o mais velho, desabou-se em choro e gritos, fazendo
perguntas intensas, querendo detalhes; o outro, Domingos, caiu no mais
ensurdecedor silêncio que se pode imaginar,
depois do choro normal do susto, de momentos no velório e no sepultamento. Meu pai, Tãozinho do Godó,
contava que “Domingos não disse uma só palavra durante um mês, fato que muito
preocupou o pai, irmãos, parentes e amigos”.
Fiz este longo
preâmbulo para tentar abrir uma história de vida de meu Tio
Domingos, falecido aos 90 anos, neste último
17 de novembro, a quem eu, particularmente, chamava, nas horas de
descontração, de “O Último dos Moicanos”, em alusão a um filme
e um livro, aquele de James
Fenimore Cooper, romance de 1826, e à obra cinematográfica de Michael Mann, de 1992.
Casamento civil: BH
Durante a guerra entre ingleses e franceses, que culminaria mais
tarde com a Independência dos Estados Unidos, Uncas simbolizaria o “último dos
moicanos”, uma tribo indígena. que participou de épicos anos de luta.
Na época em que foi
publicado o livro, acreditava-se
que os moicanos estivessem em vias de extinção. Desde então, a expressão passou
a significar o último de uma espécie rara e valiosa. Para mim, Tio Domingos foi
um moicano sem flecha e sem cocar.
Era esta uma de minhas brincadeiras com ele. Mas, afinal, tomei
tanto tempo de um eventual ou milagroso leitor e me resta pouco espaço para
contar uma bela história. Vou apenas resumir para que mais tarde possa
complementar e com mais detalhes.
Tio Domingos casou-se em 28 de julho de 1962 com Thereza Rios de Almeida, com quem construiu uma bela família, composta de seis filhos: Álvaro
José, Maurício (meu afilhado de Crisma), Adauton, Ana Cristina, Alexandre e
Karina (tive o prazer de comparecer ao casório). Três netos Tio Domingos deixou em Belo Horizonte .
Minha convivência com ele foi intensa nos tempos de criança,
adolescência e até nos dias atuais. Ele e Ir. Miriam (essa falecida em 30 de
agosto de 2021), muito me falaram dos nossos antepassados, incluindo uma
revelação assustadora: uma das filhas de
meus avós Sinhá e Godó, de 11 anos, foi tragada pelo Córrego das Posses,
situado a poucos metros abaixo da casa entre essa, o engenho e a usina de luz;
a outra informação foi que o casal teve15 filhos, a nossa geração conheceu
apenas sete: Maria Jacintha, José Cândido (Zezé), Sebastião Cândido (Tãozinho),
Luzia, Ir. Miriam, Godofredo e Domingos.
Casamento religioso na Igreja da Pompéia - BH
Alguns tópicos que ainda devo registrar:
— Tio Domingos casou-se aos
31 anos de idade, viveu durante 36 anos ao lado de Thereza, esta falecida em 27
de março de 1998.
— Ele trabalhou durante anos a fio até aposentar-se como funcionário público estadual.
— Enquanto solteiro, morava no edifício localizado entre a Avenida
Amazonas, esquina com Rua dos Tupis, em Belo Horizonte, chamado
vulgarmente de “Balança Mas não Cai”. Aí
vivemos momentos de incrível alegria e suspense nas brincadeiras com a altura
(décimo sétimo andar) e com o elevador que não passava um dia sem um enguiço
qualquer.
— Ainda solteiro, ele ia frequentemente à terra natal, e não
dispensava dar mergulhos no até então límpido e caudaloso Rio Preto. Para lá
levava seus sobrinhos. Meu pai só me autorizava ir banhar-me na companhia dele.
E foi exatamente ele quem me salvou duas vezes de afogamento.
Domingos, dizem seus mais próximos amigos, é um homem de família,
uma voz de pai perfeito, um líder que arrasta tantos seguidores, mesmo na sua
humildade que tentava, até isto, ocultar. Seu jeito de ser, sua postura, suas
palavras mansas, todas essas e outras virtudes foram suas companheiras durante
tanto tempo, como foi instrutivo e sem alarde seus 30 dias de mudez absoluta na
morte de Vó Sinhá, ato demonstrativo de amor incondicional.
Volto ao último dos moicanos só para concluir. Com certeza,
Domingos era o “rapa de tacho” da terceira geração dos Almeida, de
descendência portuguesa. Com segurança,
não carregava os ornamentos de tribo indígena.
Ele me permite agora
arrancar de vez o que sempre quis: do dicionário a expressão “saudade eterna”.
Jamais um ser desta magnitude pode ausentar-se
para sempre de nós. Asseguro que há saudade, sim, mas até quando
Deus determinar. Haverá um dia em
que todos nos reencontraremos para uma eterna, aí sim,
confraternização universal.
José Sana
Em 22/11/2021
Fotos: Maurício Rios de Almeida