segunda-feira, 13 de novembro de 2017

COMO UM SURDO SOBREVIVE?

Um surdo é um sujeito qualquer, um cidadão que tem importância, sim, se você precisa dele. Tal sujeito pode lhe emprestar uns quebrados nas horas amargas ou lhe fazer favores que ninguém faz. Trata-se de quem tem mais tendência a ser prestimoso, pois quase sempre um surdo procura afirmação e o faz ajudando, contribuindo, sendo solidário.

Um surdo tem a chatice de querer ouvir o que a turma está falando. Aproxima-se muito,  e sempre mais, chega de mãos encubando as orelhas, você percebe, vê aquilo como desagradável, mas fazer o quê? O pior, você nunca fala para ele, fixa os olhos em outra pessoa, pois sente que não quer perder tempo. Você acaba de cometer um crime inafiançável perante as leis naturais.

Um surdo é, ao mesmo tempo, um chato, chamado de “mala”, que fala muito. E fala porque não pode, quase sempre, ouvir. Você não percebe o porquê de ele ser tagarela. Mas saiba agora: fala demais porque detesta a marginalização e no pleno direito de participar. Um detalhe maior: quando você enxergar um surdo caladão, recuado, isolado, quieto, saiba que ele tem a seguinte doença grave: depressão.

Da depressão, aliada a um trauma acumulado através dos tempos, o surdo, quando não tem preparação religiosa, ou espiritual, ou reflexiva, sempre planeja um suicídio, principalmente se tiver pequena experiência de vida. Isso ocorre porque é marginalizado. É fácil saber como um surdo, principalmente o mais jovem, enfrenta as torpezas da sociedade: cada vez mais desanimado, aturdido, desapontado, triste, soturno, decepcionado.

A escola nunca, jamais, em tempo algum, caso continue remando contra a correnteza, entenderá o que é ser surdo. Especialistas em Educação Inclusiva admitem o não ouvir, a falta de barulho, a existência de um terrível silêncio na vida de seu cliente. O surdo, tira tudo isso de letra, consegue driblar, não tem medo algum de peitar em sua vida cotidiana e escolar. O que dói é o que foi escrito acima: o pouco caso, a marginalização, o abandono, o tratamento de forte desprezo. Sem carinho, somente com um meio paralelo de viver — religião, conhecimento, estudos, meditação e reflexão — é possível enfrentar o mundo com esperança de vitória. Quantas oportunidades de sucesso ele não perde sempre?

Ainda para a escola, o canal de percepção do cidadão surdo é a visão. O corpo em movimento é seu instrumento de “fala”, mesmo quando usa aparelhos. Contudo, para facilitar, se o surdo faz uma pergunta a quem quer que seja e você é esse quem quer que seja, responda “sim” ou “não”. Não faça nenhum rodeio, vá direto ao assunto. A expectativa dele é de positivo ou negativo. Intimamente, zanga-se com os verborrágicos, os que ficam como determinados políticos, isto é, a turma do  “muito antes pelo contrário”.

Há o surdo que faz uso de próteses, carrega um aparelho pendurado nas orelhas. Tal procedimento hoje em dia é normal. Até os que fizeram implantes. Só que o aparelho auditivo aumenta a capacidade de captar sons, mesmo da mais moderna tecnologia. Aí, o surdo é acometido de terríveis agressões. Imagine-o como um cão que, todos sabem, não tolera a agressividade das cidades grandes, do trânsito incontrolável, das motos que parecem verdadeiras trombetas em altos volumes de decibéis, o roncar dos caminhões, o tiroteio de fogos de artifício, enfim, o barulho de verdadeiras bombas atômicas. O aparelho eletrônico, muito aperfeiçoado, ainda não conseguiu definir para quem o usa a origem do som. Daí o seguinte: o seu usuário precisa ser muito e muito e muito atencioso para identificar de onde vem, em que lugar é produzido.


Diante de tudo isso e da pergunta que é o título deste texto — Como sobrevive um surdo? — eu me candidato a dar mais alguns conselhos, usando a minha experiência de 60 anos nas lides com a sociedade cruel e massacrante:  1 - Um surdo merece mais atenção porque ele pode ser portador de boas ideias; 2 — Se você quer dizer que é humano, considere a surdez como a cegueira, ou seja, ninguém ri de um cego;  3 — Ajude um surdo a viver não gritando com ele e também não falando baixinho no ouvido de outro como que para ele não ouvir, e não o discrimine numa conversa em grupo; 4 — apenas mais um conselho: cuidado no modo de agir nas rodas com pessoas de baixa audição,  porque a percepção dessas é infinitamente superior a de quem ouve muito ou vê muito. 

Deus abençoa os surdos, dá-lhes muita percepção e, consequentemente, derrama-lhes torrenciais chuvas de bênçãos e lhes ensina a amar muito mais. A bondade pode ser o seu ponto de partida para superar a violência do mundo incutida no desprezo e na demonstração horrorosa do pouco caso. Amém para quem já conhece essas regras, mesmo tendo audição normal. Volto depois. Abraço.


domingo, 12 de novembro de 2017

Enem surdo, mudo e cego. Mas foi o primeiro passo

Prezados, não sei como são escolhidos e eleitos os temas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio, o popularíssimo Enem. Provavelmente, há uma ou mais reuniões de especialistas nas quais colocam em pauta propostas atuais, importantes e abrangentes. A ideia, com certeza, vem de um lugar não sei qual; que Stephen  Hawing, o maior cientista da atualidade, define como Cosmos; aterrissa na mente de um, que sopra para quatro ou cinco; todos discutem, mexem, alteram, aceitam e proclamam.

Este ano o Enem balançou o coreto brasileiro de norte a sul, leste a oeste. Antes de conhecer a ideia dos mestres, declaro desconhecer a razão — ressonância, intuição, coincidência, ou sei lá o quê — porque produzi a minha redação particular, descompromissada, e a publiquei no site www.defatoonline.com.br antes de ser anunciado seu título para redação dos pleiteantes: “Desafios para Formação Educacional de Surdos no Brasil”.

A repercussão foi uma quase bomba nacional. Digo: bomba do Enem e não da antecipação deste simplório escriba. Vi e ouvi professores protestando e tentando justificar que seria mais interessante que se preferisse o tema surdo acrescido de mudo e cego. Li também alguns comentários de articulistas — professores, médicos, fonoaudiólogos, sociólogos. Todos abordaram o assunto com cautela e bons olhos, fazendo valer um louvável espírito humano e comunitário. Houve um texto, muito compartilhado nas redes sociais, no qual o autor preferiu enfatizar metáforas sobre a surdez como se fosse uma situação de negligência e ociosidade de nossos governantes.

Teoricamente, o mundo inteiro pode falar e escrever sobre o surdo e a surdez sem ser questionado ou incomodado. Os quatro milhões de candidatos que prestaram as provas tiveram a oportunidade. Na prática, todavia, quem conhece o surdo sabe de sua saga, seus dissabores, suas agruras, seu sofrimento pessoal, é somente ele, o deficiente auditivo. O conceito do cidadão, professor, especialista, quem quer que seja, é apenas este: surdo é a pessoa que não ouve, não escuta, e ponto final. É muito vago. Anotem a real e inquestionável definição de quem carrega tal problema: surdo é o humilhado, discriminado, pisoteado, que sofre bulliyng com tapas nas orelhas e zombarias cruéis e inimagináveis. Padece como se tivesse culpa disso. O sinônimo de surdo para a sociedade é tolo, idiota, besta.

Para evitar exatamente o bulliyng, o surdo tenta se manter firme no seu dia a dia desafiador, bancando até o herói, mas o herói-otário. Eis o que ele faz: oculta o problema ao grau máximo de tolerância que consegue ou “per omnia saecula saeculorum, amen”. Aí entro com a minha e outras experiências de vida: conheço muitos casos assim e eu próprio tive não sei se a proeza ou a burrice de me esticar durante 30 anos nos quais ocultei o sério problema de não ouvir e, ao mesmo tempo, tentar exercitar outras percepções, porque é verdade que Deus nos tira uma faculdade e a substitui por outra e outras.

A Educação Inclusiva, disciplina que futuros professores estudam em Licenciatura Plena, tenta ensinar à nova geração como enfrentar o desafio de lidar com o surdo e o surdo-mudo, e ser-lhe útil. Mas a missão do mestre precisa, no meu entender, ir muito além da didática e da metodologia escolar. Primeiro desafio: descobrir quem, realmente, carrega a falta de ouvir sons pela vida afora. Em segundo lugar, denunciar aos cegos e também aos surdos órgãos públicos que a destruição do ambiente engloba a zoeira integralmente e condena os novos cidadãos do planeta. Em terceiro plano, a paciência que os moucos sofredores, sem drama, requerem por sua condição humana. Ludwig van Beethoven, compositor e pianista alemão do período de transição entre o Classicismo e o Romantismo, era surdo. Como ser uma celebridade dessa envergadura, um músico notabilíssimo e não conhecer sequer o rufar dos tambores? Alguém precisa de mais um exemplo de como superar o sério desafio?


E ainda quero dizer: depois de três décadas de silêncio profundo no mundo em que vivi e muitos outros vivem, mesmo debaixo de caminhões com motores portentosos que arrebentam tímpanos de elefante, consegui vencer pelo caminho de desenvolver novas percepções, sem usar o sistema Libras. No lugar dele o tapa na cara, nas orelhas, o deboche crudelíssimo, a pregação da estima estilhaçada. Prezados, só quero agora enaltecer o Enem surdo, surdo-mudo e cego, que fez com que o Brasil desse o primeiro passo no rumo do respeito ao cidadão. Por hoje é só.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O mundo acabou. Então, fechem os hospitais

Em toda a vida em que  me entendo como gente já tremi em cima dos sapatos algumas vezes, principalmente, quando ouvia ou lia o seguinte assunto: o hospital tal, tal e tal corre o risco de fechamento. O motivo é sempre o mesmo: falta de verbas, falta de recursos, falta de tudo. A ameaça pesa como uma carga de pedras em burro magro.

Imediatamente após o tenebroso anúncio, a comunidade em que a casa de saúde está inserida, mobiliza-se e cai na rua pedindo socorro. Em pouco tempo ocorre uma novidade exuberante: o hospital não vai mais ser fechado porque a maioria da população impediu, fez o que pôde e a pátria foi salva. A comunidade, de repente, espalha a boa nova e volta a dormir tranquila e feliz.

Os fatos já ocorreram incontáveis vezes com o Hospital Nossa Senhora das Dores, de Itabira, fundado e dirigido pela irmandade do mesmo nome, em 1867. Algumas personalidades salvadoras apareceram para liderar o resgate da história e colocar a entidade em ordem. Cito dois exemplos de baluartes da existência do HNSD: Dom Mário Teixeira Gurgel, de saudosa memória, e Márcio Antônio Labruna, que vive aí entre nós, esbanjando energia e motivação.

O Hospital Padre Estevam, de Santa Maria de Itabira, já tirou a calma e a alegria de viver de muita gente só com ameaças. Essas nunca foram produzidas externamente, mas arquitetadas por problemas técnicos e administrativos. Graças à presença constante do santa-mariense, “garrucheiro”, por obra de coragem intimorata nas suas determinações, o pior já passou. Felizmente, aí está o valente Padre Estevam desafiando os pessimistas e os profetas das nuvens negras.

O Hospital Regional de Guanhães é mais um antigo cliente das crises momentâneas. Já esteve no CTI várias vezes, com maus agouros de fim de atividades. Com todas as forças que são possíveis ser sugadas — participação do povo, entrada de políticos em ação e mobilização dos próprios funcionários — o esteio guanhanense tem se sustentado. No meio de uma de suas dificuldades, acabou dando um salto fenomenal: deixou de ser uma casa de saúde apenas de Guanhães para expandir-se regionalmente.

Todos esses lembretes fiz porque não tenho palavras, compreensão e entendimento para absorver a estupefata notícia: a Câmara Municipal de Morro do Pilar reuniu-se no último dia 30 de outubro e decretou, pela decisão de 5 votos a 4, que está sumariamente extinta a Fundação Hospitalar Joaquim Bento de Aguiar, que se agigantou como mantenedora do hospital do mesmo nome durante 39 anos.

Em 1978,  como presidente da Câmara Municipal de Itabira, fui convidado a participar da inauguração da casa de saúde de Morro do Pilar. Recordo-me as salvas de fogos, os aplausos dos morrenses, as bênçãos do Padre Tarcísio Nogueira, os discursos dos políticos — dentre os quais do prefeito Geraldo Matos e de deputados. Está vivo em minha memória um trecho do pronunciamento do deputado José Machado Sobrinho. Ele soltou, parecia, uma bomba atômica no meio das palavras eloquentes: “Este hospital é uma prova de que Deus não existe”. Engoliu uma seca saliva, ergueu um copo d’água, consumiu o líquido, e arrancou gritos da expectativa da multidão que se acotovelava no meio da via pública: “Repito que Deus não existe;  Deus é, simplesmente é!” — fez o verbo retumbar-se sua abaixo e rua acima.

Em sua metáfora retumbante, o deputado quis e conseguiu provar que aquele empreendimento tinha, sim, o timbre sagrado de obra do Criador. E foi ovacionado até o fim da festa. Então, aí está um óbvio que ressoa como uma benção desde aquela ocasião: o Hospital Joaquim Bento de Aguiar, também prestigiado pelos prefeitos que governaram no tempo sequente, e idolatrado pelo povo como uma obra de Deus, repito, sobreviveu às intempéries de amarguras que assolam praticamente todas as casas de saúde brasileiras.

Mas, eis que um fato surpreendeu todos: em plena atividade, esse hospital recebe uma punhalada nas costas ao ser declarado extinto. Contudo, crime covarde não atinge os maiorais que são gatos pingados, mas em cheio a gente trabalhadora e sofrida. A reação vai acontecer? Acredito que sim. Creio que os nobres vereadores morrenses, pelo menos um dos cinco que foram ludibriados pela sensação de fazer o certo e correto e agiram em sentido contrário da maioria do povo, vai rever o seu posicionamento.

A esperança se reacende na mobilização que começa a ganhar vulto por meio do   Ministério Público Estadual. Sentindo a decisiva manifestação de cidadãos da cidade nas redes sociais, deve buscar, em primeiro lugar, a anulação da sessão fatídica e espúria de segunda-feira passada; depois, se preciso for, graças à vontade popular, transformar os 5 a 4 em, quem sabe, num contundente 9 a 0.

Não há o que discutir mais. Um comentarista da notícia postada na internet disse o seguinte: “Uai, o povo de Morro do Pilar não adoece mais?” A resposta seria nada mais, nada menos a seguinte: “O povo morrense agora é de aço. Esse aço está fabricando seres imortais, com a volta triunfal ao Morro de Gaspar Soares do empreendedorismo. E estamos em 1809, a terra é administrada por  Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá, o Intendente Câmara”. Não há justificativa para, numa sessão legislativa, ser tratado um assunto  tão lúgubre, ao invés de algo promissor. Para justificar o ato só mesmo o seguinte: o mundo acaba de acabar agora.