sábado, 13 de agosto de 2022

OBRIGADO, FADA DOS DOCES E DA CARIDADE PURA!

Este pequeno capítulo de minha vida pouco tem a ver com a minha vida. Na verdade traz o nome de quem passou imperceptivelmente para muitos pelo meu caminho, deixou uma marca de bondade e hoje partiu do convívio humano. Estou  me referindo a gente  diferente que deixa muita saudade: Maria da Piedade Pessoa Moreira. Na simplicidade, Fada dos Doces, e na intimidade, Dona Maria do Seu Ninico Motta. Ainda esmiuçando-se a identidade:  marido Antônio Motta Moreira e filho Antônio Celso Pessoa Gonçalves Moreira, ex-prfeito de São Sebastião do Rio Preto.


A historinha, valiosa para este escrevinhador, transcorre naquela sexta-feira, 21 de dezembro de 1962, dia chuvoso na região de São Sebastião até Belo Horizonte. Era meia-noite, hora em que Machado de Assis convocava as assombrações e fazia-os desfilar em incontáveis contos e romances. Arrancamo-nos assim da terra natal: um saco de roupa carregando enxoval  reduzido, um guarda-chuva, sapato na sacola, calças arregaçadas e um sanduíche de pernil com um litro de cachaça, além de um pet de guaraná Antárctica. Além de tudo, uns réis de miséria nos bolsos para exatamente pagar as passagens, cujo total perdemos inapelavelmente no percurso.


O fato inesperado atrasara a nossa caminhada até o local chamado Barra Dantas, encruzilhada do município de Passabém com o de Ferros. Discussão entre Zé Flávio e eu, meu eterno companheiro de ideias e de aventuras, inseparável, procura nos entender o que faremos sem dinheiro dentro do ônibus Irmãos Lessa, que faz  a linha Ferros à Capital. Só nos detemos no diálogo rompante, molhados por aquela garoa intermitente, quando chegamos à seguinte conclusão: seremos colocados para fora do busão e viraremos micos de um barraco inesquecível. Com absoluta certeza, nossos pais e nossas famílias saberão detalhes da expulsão e se corarão de vergonha pela vida afora. Do futuro de fome em BH nem cogitamos.


O “cata-jeca”, apelido que arrumaram para o ônibus que carrega  jecas-tatus, e éramos dois deles, parou e entramos de caradura como se fôssemos gente, e nos enfiamos até o fim da carruagem, assentamo-nos nas poltronas 24 e 25. Aí, Zé Flávio resmungou no meu ouvido numa altura acima do normal, diria aos gritos: “Vamos passar vergonha com a Dona Maria do Seu Ninico Motta, aquela senhora ali na frente”. E chega o trocador perguntando, de tabuleta em punho: “Pra onde vão?” Zé Flávio responde: “Pra BH, mas não temos dinheiro, perdemos tudo na estrada”.


O cobrador  para de rabiscar os seus arabescos e nos  olha com cara de porteiro de funerária: “O queeeeê”. E dá sinal de que vai nos pôr para fora do ônibus. Sai  em desabalada correria, atropelando balaios de galinhas e outros apetrechos. Mas é detido por Dona Maria que lhe pergunta: “Ouvi a conversa. Quanto é as passagens deles?” O trocador diz um valor assim que não ouvi e emite dois bilhetes, recebe o pagamento, dá o troco e se diz satisfeito. Imaginei que dissesse: “Salvou a molecada!”


Em seguida, acontece o seguinte: Dona Maria nos chama, dá-nos os bilhetes com as duas passagens e nos encurrala de perguntas, sob olhares de curiosos:

— Vocês são filhos de quem?

—  Estão fugindo de casa?

—  O que vão fazer em Belo Horizonte?

—  Quantos anos têm?

Não deu  folga para respondermos, mas depois aguardou que prestássemos  a devida conta: “Paguei  as passagens porque conheço suas famílias, mas não quero ajudar vocês a cometerem fugas de casa”.


A todas as perguntas respondemos, mas mentimos quando fugimos da fuga de casa. Na verdade, era isso mesmo, e Dona Maria adivinhou. Contudo,  essa escapadela completava a quarta que aprontamos e acho até que meus pais se acostumaram com a arte.


O tempo passou. Agora moro em Itabira. Sou casado e pai de muitos filhos. Dona Maria sai de um carro de luxo, não sei a marca, tem um motorista especial, entra no nosso comércio, Cantinho do Pão de Queijo, e  oferece uma belíssima goiabada, com um rótulo muito bonito e outras informações que atraem os consumidores. Deixa uma dúzia de barras de doces, embalados devidamente, promete retornar “na semana que vem”, sugere um preço. E só. Várias vezes tento abrir a boca e falar sobre o episódio de Barra Dantas, ocorrido há umas três décadas,  agradecer mais uma vez a gentileza das passagens pagas, mas ela parece desconfiar e evita que eu toque no assunto.

 

Levo uma barra de Goiabada de Dona Maria para casa, todos adoram e pedem bis. Torno-me amigo dela, ela sempre evitando falar da ocorrência da beirada de estrada. Ultimamente perco o contato, infelizmente. Só me recordo de quando falamo-nos numa festa em São Sebastião, quando José Aparecido de Oliveira está  lá, em 17 de fevereiro de 2001, fazendo aniversário,  leva o mundo cultural do Brasil à bela Fazenda de Ninico Motta para um almoço inesquecível. Antes, acompanhando aquele momento inesquecível em missa na Igreja Matriz, a cantora lírica Maria Lúcia Godoy entoa “Panis Angelicus”. Dona Maria emocionada tenta enxugar uma lágrima que cai fronte abaixo.


Hoje, 13 de agosto, Dona Maria nos deixa. Uma grande mulher. A Fada dos Doces. A secretária ativa do marido também ativo em todos os instantes nos quais  o acompanhou. Deus a recebe com cânticos dos anjos e uma Ave Maria de Gounod emocionante.  Nós a saudamos daqui da vida passageira terrestre e agradecemos por nos brindar com suas belezas interior e exterior durante 93 anos.


Não tenho a vergonha de repetir o fato que ela tentou esconder: obrigado, Dona Maria, pelas passagens que evitaram a nossa derrocada e pelos doces que revelam a doçura de uma alma também doce.

José Sana

Em 13/08/2022


3 comentários:

  1. Esse Zé do Burro que de burro ñ tem nada, faz agente voltar no tempo. Que Deus na sua misericórdia receba Dona Maria e meus sentimentos aos familiares!

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  2. Caro José Sana,
    Hoje um dia muito triste para todos nós filhos, genros, noras, netos e bisnetos, mas o seu relato e a história contada por um amigo da família nos conforta imensamente.
    Obrigado de coração.

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  3. Excelente!!! Imagino vcs assustados dentro do 108, numero do ônibus que fazia a linha, Ferros a Bh! Dona Maria uma nobre senhora!!!! Talvez, uns 3 ou 4 anos depois, tivemos o conforto de pegar o ônibus do Zé Damasio( vulgo Leitoa), saindo de São Sebastião!

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