quinta-feira, 27 de março de 2014

CENTENÁRIO DO TÃOZINHO DO GODÓ (8) Meu Pai e Minha Tia Luzia



Desculpem-me os cultos e inteligentes que não estudaram metodologia da história, tenho que fazer um lembrete: uma das lições mais úteis que aprendi no curso de História ocorreu no primeiro dia de aula. Disse de bom tom que o povo da Idade Média era muito atrasado. Quis declarar, conseguintemente, que Pré-História, Antiguidade, até mesmo a Idade Moderna e quase todo o período contemporâneo neles o atraso metia medo.. Minha sorte foi que a professora Márcia Ferreira, que deu o show de aula  mais inesquecível que tive naquele ano na Funcesi, em Itabira,  soltou um berro desses de fazer tremer as pedras do Córrego Seco. E, mais assustado que meus colegas, tremi em cima dos sapatos. Outra sorte pelo grito que vazou nas paredes da faculdade foi que nunca mais precisei que alguém me fizesse não entender a história como deve ser tratada. Cada tempo no seu tempo.Mais adiante, no curso, aprendi a frase que sintetiza tudo: “Ver a Idade Média com os olhos da Idade Média”.

Fiz esse preâmbulo apenas para falar de minha Tia Luzia Cândida Ferreira de Almeida Dias, irmã de meu Pai, nascida em São Sebastião do Rio Preto em 5 de junho de 1917. Quer dizer que estrondeava  na Europa a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e antes de terminá-la, adentrava os céus as trombetas  da Revolução Russa (1917-1924). Sem estudar, sem ler, sem ouvir, Tia Luzia contava casos e causos das guerras e revoluções como se ela estivesse a um rio distante da Europa. Ela era casada com Francisco Dias de Azevedo, o Chico do Padre, com quem teve os filhos José Flávio, Mundica (in memoriam), Maria das Graças e Goreti. Viveu 81 anos, muitos dos quais acometida por terríveis crises asmáticas, as quais enfrentou sem a mínima transparência de sofrimento, talvez distraída pelo entusiasmo ao fazer comunitário.

É bom dizer também que ela tinha os olhos incrivelmente azuis, como o meu Pai. Também como Tãozinho do Godó, sofreu impropérios e humilhações por causa desse hoje considerado privilégio físico, com o fundo do mar desenhado no  rosto. No tempo de sua infância e juventude ela era repudiada como um gato angorá de telhado e caçador de ratos em horas vagas. Veja só. Hoje os olhos azuis são o requinte de uma raça selecionada como as mais belas do planeta. Aí está o “ver a Idade Média com os olhos da Idade Média”. E minha Tia Luzia resumia assim um retrato das nobres inteligências de seu tempo, embora com o seu curso primaríssimo apenas, nem um passo a mais na escola, pois nunca saiu de seu arraial.

Uma mulher de cultura avançada. Uma criatura que enxergava o belo e o que faz bem para além da vida e para além da morte. Sem protocolos, ela criou ao seu redor uma sociedade que caracterizou a vocação cultural de sua terra. Enquanto o pai, Godofredo Cândido D’Almeida, liderava os benefícios  que marcaram o estilo das características são-sebastianenses — fornecia luz e água para todo o povo, mantinha uma banda de música criada por seus avós, executava obras marcantes, como proteção de muros, construção de pontes — Luzia criava manifestações artísticas inéditas no seu tempo.  Além de incentivo a marujos, ela idealizou e tirou não sei de onde a manifestação dos Caboclinhos, vejam que fato estupendo! E sobressaiu-se em tudo o teatro.

Caboclinhos era um grupo de jovens  vestido de índios que protagonizava uma dança folclórica. Hoje se vê que fazia parte do Carnaval de Pernambuco no tempo do Brasil Colônia. Os moços vestidos de aborígenes saíam  com vistosos cocares, adornos de pena na cinta e com uma flecha davam o tom da musicalidade, do ritmo e da dança. Esses belos enfeites chamavam a atenção entre os marujos por reluzir de forma destacada nas ruas da Vila. Joaquim Ribeiro Costa, em seu livro “Conceição do Mato Dentro, fonte da saudade”, até hoje disponível em livrarias de Belo Horizonte, narra as epopéias dos Caboclinhos em São Sebastião do Rio Preto, então distrito conceicionense.

Com o tempo, desapareceram essas manifestações das ruas de São Sebastião, mas a incansável Luzia não parava de dedicar sua vida à comunidade. Nos meus tempos de criança me lembro de sua total doação ao teatro, suas múltiplas e inexplicáveis funções para organizar as peças, convidar os participantes, convencê-los a aceitar o desafio,  dar a cada um o seu papel e, finalmente, mostrar os seus sonhos. Ela tinha, inicialmente, que escrever a história com a fala dos personagens, mostrar a todos como fazer o papel, ensiná-los  a falar de acordo com esse papel, passar o objeto da fala a cada personagem num prazo que fosse o suficiente para o personagem decorar, vesti-los de acordo com o conveniente e conseguir a roupagem de cada um, dirigir as falas, enfim, ser tudo em cada etapa do trabalho feito com amor.

De seus escritos que me chegaram às mãos (uma das últimas ações que consegui com a prima Mundica pouco antes de seu falecimento, um fato incrível),  obtive retalhos de manuscritos dela de uma peça chamada “A violência e a fraternidade”. Que fantástico! Ano de 1950, nem estradas de carro dignas e transitáveis havia nas redondezas, o único meio de comunicação com o mundo eram os  aparelhos de  rádio do Serafim e do pai do Geraldo Basílio, jornais chegavam com atraso e a eles era difícil o acesso. Por seu lado, expressões como “fraternidade” em contraposição a “violência” não eram algo que provocava  uma consciência coletiva. A inexplicável  Luzia  tinha ao seu dispor os mensageiros que iam a cidades mais adiantadas, como Belo Horizonte, Itabira, Sabará e outras, além de alguns minutos  no rádio ouvindo novelas ou histórias de assombrações na Rádio Tupi do Rio de Janeiro, a exemplo de “Incrível, Fantástico, Extraordinário”.

E ela deixou outras pérolas, como a comédia “A Fazendeira”, em que conta fatos de relacionamento patrão com escravos, convivência de familiares, com humor e muito da cultura na época de sua particular idade média. Há também nos seus manuscritos uma outra comédia, “A Fofoqueira” e uma “Representação Dramática do Natal” em que ela mostra religiosidade versus materialismo, uma previsão bem profética da transformação da festa maior da cristandade, hoje mais um acontecimento quase que somente comercial.

Numa de suas peças sem título, folhas de papel que voaram e que nos tempos passados não se encontrava quem as valorizasse, ela deixou escrito praticamente todo o seu drama vivido para falecer, em 1º de junho de 1998, em sua casa. Internada em hospitais da região, ela esboçou uma milagrosa recuperação e recebeu alta em Passabém. Retornou para São Sebastião, despediu-se de todos para o seu recolhimento solitário, viveu os tais momentos íntimos e terríveis pré-agônicos e faleceu na calada da noite. Ela escreveu, quatro décadas antes, numa peça teatral,  um debate de uma velha com um médico e garantiu a ele textualmente, contradizendo as recomendações médicas: “Vou pra minha casa morrer lá”. E foi o que aconteceu na vida real da Tia Luzia.

Imaginem agora: estou falando de meu Pai do seu centenário de nascimento, e me alongo na querida Tia Luzia. Teria que me referir a ele, mas me justifico: grande parte  da tonalidade que têm as informações eram da análise exatamente dele, do seu irmão legítimo e total, irmão em olhos lindos e sofredores. Na prática, irmão e irmã combinavam como gêmeos, sem atropelos no dia a dia. Havia, no entanto, instantes em que se batiam e se debatiam de frente: quando Tia Luzia inventava  beber o seu conhaque ou a sua dose de cachaça. Aí era mostrado  tudo aquilo que o Tãozinho do Godó detestava. Eram coisas de irmãos que se amavam, justifico.

Alguém poderia perguntar se eu participava de suas peças teatrais. Sim e não é a resposta. De tanto ela insistir, aceitei uma participação. E me fizeram  rei numa cena que considerei grotesca, uma majestade que chegava para se casar com uma linda princesa, personagem principal do enredo. Peça cantada, eu apenas cheguei de coroa e bastão, além das vestimentas de cores intensas como azul e vermelho e os tecidos de seda e veludo. De saia,  completo, adentrei  o palco aplaudido pelas professoras e cantineiras  e zombado pelas turmas de colegas, amigos e inimigos de escola.  Durante o ato, que durou alguns minutos de cantarola, corei o rosto como um índio de urucum no rosto. Depois da peça, arranquei a vestimenta e saí chorando tal qual um desesperado, transfigurando-me. E nunca mais aceitei ser um ator nem da Tia Luzia nem do mundo artístico, apenas da vida real.

Tia Luzia e o neto Tiago

Sem nunca deixar de mencionar que a Tia Luzia foi presidente por muitos anos do Clube das Mães de São Sebastião do Rio Preto, por meio da qual entidade se ligava às campanhas e movimentos em prol da sociedade de um modo geral. Ela tomava a frente de cantorias na igreja, em serestas e sempre participava de movimentos comunitários na Vila. 

Antes de concluir, pensei que deveria contar que escrevi uma peça de teatro para que Tia Luzia colocasse em ação. A história é longa, vou tentar resumir. O texto recebeu o nome de “Juízo Final”. Tinha eu dez anos, estava na quarta série primária, era o ensino fundamental de hoje. Ela pegou os meus escritos e resolveu, advertida por alguém que não fiquei sabendo quem,  mostrar ao Padre Raul, o rei do arraial na época, denominado pároco local. O padre leu e  recolheu os escritos, colocou debaixo do braço, atravessou a ponte, entrou na loja do Tãozinho do Godó  e o apresentou a ele o seu filho como o  demônio do momento. A peça foi rasgada inexoravelmente por um dos dois, entrei numa surra de chicote e cabresto, passei um dia ajoelhado na sala de visitas de minha casa e o padre me presenteou com suspensão de dois meses da Congregação Mariana, além de igual tempo para ser coroinha e de receber o sacramento da  comunhão. Conclusão: afastei-me da igreja por um bom tempo e cheguei a amar desenfreadamente o ateísmo, única saída para a minha cabeça de criança. Mas meu Pai chamou Tia Luzia e disse a ela: “Todos erramos, agora cuide dele”.

E a querida e inesquecível tia me curou pela metade. Seu filho e meu primo José Flávio era o carona de seus conselhos. Disse meio a meio foi a cura. E foi também, graças a Deus, quando aprendi, nas suas falas, uma iniciação à educação moral e sexual, pois somente ela quem me ensinou como nascem as crianças. Saudades dela e do meu Pai.

terça-feira, 18 de março de 2014

Centenário do Tãozinho do Godó (7) - Meu Pai e seu Irmão Zezé



José Cândido Ferreira de Almeida, conhecido como Zezé do Godó, ou mais resumidamente, Zezé Godó, era o irmão mais velho, exatamente dois anos, de meu Pai., Tio Zezé era totalmente diferente em gênio e método de vida, embora com o mesmo senso de religiosidade. Meu Pai, nervoso; meu Tio, infinitamente calmo; meu Pai, metódico: tudo era escrito, anotado; Tio Zezé, nada formal, tudo com mais descontração.

Em sua autobiografia inacabada, Tãozinho do Godó escreveu: “Casei-me com Itália Sana de Almeida no dia 30 de outubro de 1943, data de aniversário de meu sogro, Serafim Sanna. Um de meus padrinhos seria o mano Zezé que, no entanto, não pôde comparecer por problema de saúde. Substitui-o o cunhado Chico do Padre, irmão do Padre Argel, que celebrou o ato”. Durante toda a vida, Tio Zezé carregou um caso sério de saúde que, na época, quase não se comentava do mal: o diabetes. Ele tinha uma ferida na perna que nos deixava em compaixão  constante porque nunca se curava.

Sobre o casamento, curiosamente, anos depois, minha Mãe me revelava: “O Padre Argel me disse para não me casar com o Tãozinho porque, segundo ele, era muito nervoso; mas eu não liguei para isso”. A característica de nervosismo de meu Pai o acompanhou a vida inteira. Acredito até que antecipou a sua morte, aos 75 anos. A verdade, porém, neste tema particular não há a mínima lógica: Tio Zezé, mais calmo, mais cordato, viveu 64 anos. No dia do falecimento dele, meu Pai acompanhou o féretro sozinho, seguindo o esquife, a que segurou com as mãos; de volta do cemitério, chegou à nossa casa, chamou os filhos que estavam por perto e anunciou: “O próximo serei eu”. Tremi em cima dos sapatos diante de sua premonição. Foi mesmo o imediato, embora tenha levado 13 anos o tempo de ocorrer.

Tio Zezé, casado com Semírames Duarte, com ela teve também, a exemplo de Tãozinho e Itália, um monte de filhos: Sebastião, Maria Geralda, Dezinho, Godofredo, Maria Cândida ou Dalia, Marta, Inês (in memoriam), Madalena, Tarcísio, Marília e Clara. Sua esposa, Tia Ninita, como todos a conhecem, foi professora destacada na Vila. Quando meu Pai me autorizava a passar o dia na casa dela e brincar com os primos, registrava uma séria recomendação: “Vá, mas leve os cadernos”. O que ele queria dizer era o seguinte: “Estude com a melhor professora que existe.” Ela chamava a turma na hora do café e aplicava uma aula particular.  Mas  a  ida àquela casa, para mim tinha mais um objetivo: Tio Zezé fabricava e engarrafava soda limonada. Sobravam alguns copos para todos nós. Que delícia!

Enquanto criança, tive uma afinidade muito grande com Tio Zezé. Ele se assentava no passeio de sua casa e ali passava os fins de tarde. Filosofando, na sua calma tocante, dizia  sempre a mim: “Olha, se eu ganhar na loteria, compro um relógio para a nossa igreja e uma bicicleta para você”. Tanto ele repetiu que levei a sério e comecei a torcer e rezar para que faturasse a loteria. Não sei se para repetir sempre a promessa, ele me chamava para conversar. Gostava de contar as suas histórias. Assim era com outras crianças, filhos dele e de amigos.

Meu pai, todas as noites, reunia os filhos para rezar o terço. E pedia a cada um de nós que puxasse um “mistério” ou  dez  ave-marias.  No final da reza, cada um era instigado a fazer um pedido, rogar a favor de alguém, caso precisasse em caso específico, como viagem, doença, casamento etc. Certa noite, de tanto rezar para a riqueza de meu Tio,  coloquei para fora o  sonho. Bradei, em voz alta, uma súplica até certo ponto esdrúxula:  que o Tio Zezé ganhasse na loteria. Aí, o meu Pai  interrompeu as orações: “Por que você está fazendo esse pedido engraçado, meu filho?” Respondi na ponta da língua: “Ele vai ganhar e comprar um relógio para a igreja e uma bicicleta para mim”. Meu Pai e todos riram. Tãozinho concluiu: “Olha, o seu tio nunca comprou um bilhete de loteria”. No dia seguinte, contei o fato para o Tio Zezé, que riu sem parar.

Na adolescência, comprei uma briga com ele, incrível, me arrependi, mas foi verdade. Como sempre fazíamos em turma, roubávamos galinha de muitos e muitos galinheiros da Vila. Na casa do Tio Zezé, as galinhas se empilhavam em pés de manga e viviam às  centenas, praticamente intocáveis.  Sempre e sempre éramos surpreendidos pelo Tio Zezé e o Dezinho, os quais chegavam com lamparina na mão. No entanto, nos poupavam, não nos faziam mal. Mas a galinha a gente levava de qualquer jeito. Havia alguns donos que usavam armas de fogo para espantar os ladrõezinhos. Numa dessas aventuras, Zé Flávio levou um tiro na perna e até hoje cultiva uma bala 22 na panturrilha direita.

Como consequência dessas idas ao galinheiro, acabou  que  nos desentendemos. Não ele comigo, mas eu com ele e, certa vez, eu com alguns primos. Felizmente, a rixa não avançou para os tempos seguintes. No fim da minha adolescência, reconheci meus erros e, seguindo o exemplo de meu Pai, que escrevia sempre às pessoas, seja para cobrar contas ou resolver qualquer assunto, lavrei uma carta explicativa a todos os meus ofendidos “inimigos” e pedi-lhes desculpas. A influência de meu Pai nisso não era apenas pela comunicação escrita, mas também  o gênio do arrependimento. Que gratidão tenho a ele por me dar nos exemplos e no DNA esse senso de amor, justiça, humildade.

Das melhores recordações em família, vale retornar ao tempo da Banda do Godó. Recheada de netos, filhos e amigos, a corporação musical, criada pelos avós do meu Avô, era tradicional. No tempo de nossa infância, fomos conduzidos a aprender música. Seu Godó contratou o maestro José Afonso de Vasconcelos, vindo de Morro do Pilar, para ensinar a meninada. A Banda do Godó foi rapidamente formada e tinha plena hegemonia na região, éramos chamados a vários lugares para abrilhantar festas religiosas. Tio Zezé no Baixo, meu Pai na Requinta, Sebastião e eu no Bombardino, Carlos, Dezinho, Zé Flávio, Godofredo, cada um no seu Trombone ou Sax. E outros grandes músicos, como Alexandre, Otávio, Marçal, Francisco Gomes de Lima, Jovino, Airton Morais, Afrânio e outros.

Nesse  doce  ambiente  musical e sadio  formamos uma família grande e abençoada. Engraçado, hoje medito sobre o relacionamento de Tio Zezé com o meu Pai: nunca os vi se divergirem em algum fato. Seria normal se com o meu Avô fosse a mesma coisa. Pai e filho, Godó e Tãozinho, trocavam  bons bilhetes quase sempre quando tinham que resolver alguma pendenga. Meu Pai, respeitoso, mesmo assim não  deixava de protestar, sempre por escrito contra algum ato do velho Godó. Pelo menos não havia barulhada.
O dia em que Tio Zezé partiu para o outro lado da vida, chorei como um filho dele, senti que perdi um segundo Pai. Das alegrias que nos proporcionou, da paciência que tinha contando os causos engraçados  e de seu recíproco respeito ao irmão Tãozinho, aprendi muitas lições para a vida. Se não aproveitei ou deixo de aproveitar, paciência, que a vida continua, ainda chego lá.


Festa em SSRP, 1955, Zezé e Tãozinho na Banda do Godó


quarta-feira, 12 de março de 2014

CENTENÁRIO DO TÃOZINHO DO GODÓ (6) (Meu Pai e Minha Tia Jacinta)

O ser humano tem que ser transparente. Sua alma precisa mostrar seus defeitos e suas virtudes. Ninguém deve esconder os sentimentos. O pensamento, quanto mais alto sair de nosso íntimo para a boca, melhor. Segredos só para a maldade, a birra, a perversidade, a iniquidade. Assim pensava Sebastião Cândido Ferreira de Almeida, o Tãozinho do Godó, também conhecido pelos íntimos como um perfeccionista. Se era perfeito, acredito que não; mas que teimava em sê-lo, tenho absoluta certeza que sim.

Maria Jacinta, sua irmã mais velha, era para ele um modelo de personalidade. Ela sofrera um terrível baque na vida. Na sua  adolescência, a dor indefinível lhe agrediu a alma. Foi o seguinte: ela levava uma irmã de 11 anos para o engenho que ficava do lado de lá do córrego, no fundo da casa-fazenda do Godó. O córrego não era o de hoje, mas, sim tão caudaloso quanto o  Rio Santo Antônio. Havia uma pinguela no meio do caminho. A menina, cujo nome prometo revelar em outra ocasião, caiu da pinguela. Maria Jacinta não a alcançou e ela se foi, só resgatada sem vida, mais tarde, pelos empregados e agregados do complexo do Godó.

Agora, imaginem o que se passou na  pequena vila. Reflitam sobre o desespero do meu Vô Godó, que já tinha sinais fortes de arrebatamento em seu espírito, e o sofrimento de minha Vó Sinhá, uma mulher admirada por todo o povoado. Ponto. Não vou falar mais nisto, por enquanto.   Só vou lembrar que uma adolescente de 15 anos, minha tia, carregou na vida um drama interno e que guardava somente para si. E não sei por que cargas d’água, o fato ficou totalmente esquecido para as gerações seguintes. Houve um silêncio sepulcral lançado para o futuro.Somente há dois anos fiquei sabendo do fato.

Tia Jacinta, profissão costureira (costurava para fora, como dizem nas cidadezinhas) era casada com o oficial do cartório local Noé Augusto de Souza e não teve filhos. Talvez por causa disso, se dedicou muito aos sobrinhos. Para se ter uma ideia, ela criou a nossa prima Raymunda Almeida Dias, a Mundica, que nos deixou há poucos dias. E nos afagava com muito carinho. Também implicava com os nossos defeitos. Certa vez, contrariada com as minhas peraltices de adolescente, invadiu meu quarto onde me enxugava depois do banho. Pegou a minha toalha e me bateu com ela enroscada.

Depois desse, só vou contar outro fato que marcou a vida de meu Pai com ela e a minha própria existência  no meio para ser testemunha e réu  ao mesmo tempo. A triangulação serve para garantir um episódio inédito na história do Tãozinho do Godó. Foi no dia em que ela me bateu com uma toalha que, a seguir, meu pai adentrou também o quarto. Eu resmungava e não me conformava em ser maltratado. Enquanto meu Pai seguia na admoestação, eis que cobrei  dele: “Olha, o senhor disse que só posso apanhar do senhor e da Mamãe, agora deixa uma tia me bater?” Ele retrucou energicamente e me deu a seguinte resposta: “Sua Tia Jacinta é uma santa e temos que aceitar o que ela faz;  tudo o que ela faz vem de Deus”.

Aceitei, é claro. Já havia pensado nisso, apesar de tudo, mesmo um pouco cético àquela altura do tempo.  E guardei  aquelas palavras, decorando  “santa” para sempre. Um dia estava em Belo Horizonte desempregado, ano de 1965, quando vem a Tia Jacinta aparecer de novo em meu caminho. Abro um parênteses para informar que o desemprego dos anos 1960 era o que mais massacrou a minha geração. José Flávio, de quem já falei, era o meu primo-colega de vagabundagem na capital dos mineiros. Durante o dia, saíamos atrás de uma vaga em algum lugar e à noite nos encontrávamos no centro da boemia para as nossas aventuras, atrás do que comer e  beber. Fecho o parênteses.

E  foi assim: José Flávio tinha arrumado um plantão numa empresa de ônibus. Ele era o manobrista na garagem, depois o ronda. Encontramo-nos na rua Guaicurus, onde, segundo Roberto Drummond, em Hilda Furacão (livro e filme), Belo Horizonte acontecia nas madrugadas. Apareceu o peralta aos gritos e berros diante de mim, me agredindo com uma notícia assustadora e massacrante: “Tia Jacinta morreu!” Nada retruquei, não tinha uma sílaba para soltar, só me bambeei da cabeça aos pés, sentei-me  no meio-fio e comecei a chorar. Tive saudade imensa dos pitos e raios, dos puxões de orelha dolorosos que sofria e, com destaque, daquele dia em que me  espancou com uma toalha de banho enrolada como um rocambole.

Em seguida, José Flávio me deixou só na Avenida Santos Dumont e se dirigiu ao emprego que era apenas um “bico”, um quebra-galho. Continuei na solidão de uma  amargura comum em todas as noites, desta vez incomum  por causa da morte inesperada da tia.  Com fome e sentindo frio, só tinha  duas coisas  pela frente: a noite de BH e a fome em BH. 

Andando  a esmo pela avenida, de repente assentei-me de novo, lembrei-me das palavras do meu Pai: “Sua tia é uma santa”. E, então, não querendo colocar no paredão da vida a santidade de Tia Jacinta, mas acreditando com todas as forças de que naquele dia tinha partido para o Além uma Serva de Deus, fiz uma oração cheia de muita fé por ela. E apelei a ela com o seguinte pedido: “Mate minha fome, minha Tia!” Estava em frente uma empresa comercial que era fornecedora da loja de meu Pai. Abri os olhos, levantei-me do meio-fio e...

... de repente, olhei para o chão e lá estava um pequeno pacote. Afoito, apertei-o contra o peito. Ninguém perto de mim, a madrugada já entrara para mais horas de agonia que me assolaram durante quase dois anos. A avenida completamente erma, tomada de um paradeiro próprio daquele horário.  Desatei o maço e constatei sofregamente que era  mesmo dinheiro. Que é isso? Dinheiro vindo do Céu?. Olhei, pasmo, e chorei de novo, agora mais copiosamente do que antes. Não podia acreditar naquilo que estava acontecendo.  Era um atendimento ao pedido que acabara de  fazer. Não tive dúvida nenhuma.
  
Saí em desabalada correria no rumo da  Rua do Bonfim reencontrar o meu primo. Ele me recebeu de olhos arregalados,  fez o “Nome do Pai”, agradeceu à Tia Jacinta, encerrou o expediente e seguiu para jantar comigo no Restaurante Santos Dumont. Antes de pedir o chamado “prato sortido” (arroz, bife, ovos, salada, tropeiro) contamos a grana do pacote, com valor suficiente para comer, beber, dormir e até vestir-se durante um mês. Até paguei um mês de aluguel adiantado no Bairro Coração de Jesus, onde dormíamos num quarto acanhado e sem banheiro. 

É claro que tive pena de quem perdeu aquele pacote de notas, mas  conclui de mim para mim que não estava fazendo falta a ninguém, já que me apareceu por obra e arte sagradas. Estava, para José Flávio e eu, naquela madrugada, ou naquele dia, canonizada uma santa de minha família, a inesquecível Tia Jacinta.

segunda-feira, 3 de março de 2014

CENTENÁRIO DO TÃOZINHO DO GODÓ (5) (UM HOMEM-BOMBA DENTRO DE CASA)

Era 1962 quando decidi ficar em São Sebastião do Rio Preto, depois de alguns anos em Guanhães, Conceição do Mato Dentro e Belo Horizonte. Fugir da escola, me aperfeiçoar no volante, viver todas as peraltices da adolescência até me enjoar e cair na realidade – esse era o meu projeto inconsciente mas firme a se realizar. No final, deu meio certo, meio errado, fiquei até o fim do ano, só tive que comer o pão que o diabo amassou antes e depois, como consequência da personalidade irrequieta que sempre esteve açoitando os meus dias. Mas esse não é o tema deste momento.

Em pauta: Tãozinho do Godó, então com seus joviais  e animados 48 anos, forte, e como sempre foi um  trabalhador incansável. Toda manhã, carregando baldes rua abaixo ia no sentido do seu terreno, ex-Retiro do Godó, localizado a 3 km de casa, para a ordenha das vacas. Antes de 8 horas já tinha feito tudo, regressado, distribuído o leite para a freguesia, tomado um banho reparador para varrer e desempoeirar as instalações do Bazar São Geraldo. O Jipe que havia adquirido ficava aos meus cuidados, naquela época com a “assessoria” de um rapaz de Conceição do Mato Dentro, o Tony do Zé do Carro, um pouco mais velho que eu e já portador de uma carteira de motorista. Eu nem idade suficiente somava ainda para ir atrás da habilitação àquela altura.

Tony, emérito gozador, figura interessante e de humor refinado. Chamava o meu Pai de Sô Tãozinho, sempre assentando-se numa cadeira na loja ou em casa para contar ou ouvir causos engraçados. Mas o causo mais estonteante  que o Tony passou a narrar, ele próprio presenciou dentro de nossa casa num daqueles dias de sua permanência como monitor de motorista.

Meu Pai usava muito espantar os ladrõezinhos de galinha de seu vasto terreiro com bombas de um tiro, chamadas também de “espanta coió”. Seu pipocar se assemelha ao barulho de um revólver calibre 32. E todo mundo na vila sabia que Tãozinho do Godó tinha um 32 bem carregado para ser disparado na hora em que precisasse. À noite, ao encerramento do expediente, não se esquecia de encher o bolso das tais bombas que afugentavam os moleques. Era o que ele queria fazer: assustar apenas as raposas que avançavam sobre o seu sortido galinheiro.

Quando se levantava, ainda de madrugada, um de seus bolsos da calça continuava abastecido das tais bombas, as que não foram disparadas na noite anterior. A esse detalhe nunca se importou: ia ao Retiro e retornava  com o bolso armado das  barulhentas armas de artifício. No reinício do expediente comercial, somente na loja cuidava de repor o estoque para a prateleira.

Chegou um belo dia e, apressadamente, agachou-se  para desamarrar a botina atrelada à galocha A casa inteira estava tomada de um silêncio dominador, parecia uma alta madrugada aquelas 7 horas e poucos minutos da manhã. De repente, um soar de revólver 32 dentro de casa, retumbando nas paredes do casarão, seguido de gritos alucinantes de um homem quebram o sossego do velho sobrado de dois andares. Meu Pai soltava espasmos, completamente fora de si, saindo palavras desconexas, ninguém entendia o seu linguajar. Tinha uma conotação de desespero incontido, jamais visto e ouvido. “Atiraram em mim, me acudam, me ajudem, vou morrer, tomei um tiro.”, eram seus assustados urros. Corri com o Tony para ver, atrás a Maria Lucinha, nossa Mãe-Negra, bem depois minha Mãe de olhos esbugalhados. Ninguém entendia nada, mas a preocupação era geral.

No quarto dele, estirado ao chão, lá estava Tãozinho do Godó,  que jazia ainda com a ficha suspensa, olhando para a calça furada e queimada na perna enquanto pronunciava sons incompreensíveis e mantendo o sentido do pânico. Também no chão, algumas dezenas de bombas e, para explicar todo o enredo e jogar por terra a desconfiança de meu Pai de que havia sido vítima de uma tocaia, uma caixa de fósforos. O mais distraído dos mortais deduziria imediatamente o que se passara naquele quarto havia poucos minutos. Bombas e caixa de fósforos num bolso apertado, num gesto de esforço para agachar e desatar a botina, só poderiam dar o  resultado de uma fricção ou atrito e, consequentemente, sair o tiro que  surpreendeu a todos naquele instante dramático.

Horas depois, o velho-jovem de 48 anos estava na loja contando para os fregueses a sua peripécia daquele dia. O mundo não tinha chegado ainda à época do homem-bomba, nem do terrorismo profissional, mas alguma coisa dizia que algo iria acontecer no decorrer do tempo. Meu Pai contava sua inacreditável aventura e, à medida que o tempo passava, cresciam as  gargalhadas sobre o caso inédito.

Lembro-me de uns dias depois, então, quando entrei na loja e me assustei com dois homens de baixa estatura rindo sem parar, aos berros ensurdecedores e dando pulos como cabritos no telhado. Ele, o Tãozinho do Godó, e seu amigo do peito, Noé do Duca. Não há como descrever a cena dos dois às gargalhadas. Diria que um ria do outro e vice-versa, ou ambos achavam graça na cara alheia. Somente após alguns minutos passados descobri: eles se divertiam com a bomba que arrebentou dentro de casa e dentro do bolso de meu Pai, acionada por algo inimaginável, uma caixa de fósforos.


 Mas a tal bomba teve o barulho de um estouro de canhão que nos deixou todos em polvorosa por alguns suficientes e atordoantes minutos.