O relógio da
Fazenda dos Bambus marcava 15 horas e eu arrancava sozinho dali, montando a
Mula Queimada do meu avô Serafim rumo a São Sebastião do Rio Preto. Era fim de
férias e acabava a vida mansa que curtia sempre em Santo Antônio do Rio Abaixo,
muito bem cuidado pelos tios Magda e Antônio do Inhô. Apesar dos meus 11 anos
de idade, naquele tempo os meninos eram mais livres porque não havia banditismo
por aí. Ao sair, recebi as bênçãos dos meus tios e o adeus dos primos Edson, Edir, Edilon, Elair, Edvar, Ernane,
Eliane, Eustáquio, Edésio, Fernando e
Antônio (reparem que, quando o estoque de “E” acabou, passou-se para o “F” e o “A”
foi o ponto final no herdeiro do nome do patriarca).
São 18
quilômetros de percurso, e a boca pequena dizia seis léguas. O tempo normal de
viagem dificilmente passava de três horas. A Mula Queimada, imponente e
respeitável, era o xodó do meu avô, e eu, como neto mais velho o mimo dele, que
tinha o privilégio de fazer o que queria. O tempo fechado para chuva naquele
final de janeiro continha ameaça, não para mim que tinha umacabeça doida de
criança. Mas a chegada rapidamente do toró fez com que, num momento de
tempestade, me aconchegasse dentro do curral da fazenda do lendário Deolindo do
Morro Grande. Vejam como eram pomposos os nomes de antigamente.
E lá ia eu,
corajoso e muito seguro porque a Queimada era um verdadeiro gigante das
estradas, melhor ainda que estava “ferrada” nas quatro patas. Uma pequena
preocupação passou por minha cabeça quando começou a escurecer. Na altura do
Córrego dos Casados, onde me casaria 14 anos depois (o tempo daquela época era
mais vagaroso, como diziam nas grotas e até em cidades grandes), já estava
muito escuro, não tinha o chatérrimo horário de verão, e passava de 18 horas.
Daí pra frente era um pulo, bastava virar o Retiro do Niquito (meu futuro
sogro) para o Retiro do Tãozinho do Godó (meu pai). Mas uma nova tempestade me
pegou no Mato do Chico Lopes, onde morava outro lendário personagem, o Zé
Miguel, de longas barbas, que mais parecia um personagem bíblico, que saudava
todos os que passavam por ali, a cem metros de distância. Para mim, ele gritou
aos super berros: “Ô minino, desce dessa besta que a chuva tá muito dimais da
conta!”
Segui viagem
numa escuridão de fazer medo, mas a Queimada enxergava até vagalume de lâmpada
desligada. De minha parte, só via a estrada quando relampejava. Eram fortes
relâmpagos de alta tensão como no teatro com trovões de batucada no céu, como
as crianças diziam. O grande desafio da viagem estava por chegar. Ao virar o
alto do Morro do Retiro do Tãozinho Godó, depois do Godó, em seguida do Zezé
Godó, vi lá o Rio Preto transbordando, ou bufando, palavra comum do dicionário
daquelas grotas. Neste momento, tive uma passageira tremedeira porque me
lembrei de que a famosa Ponte do Rio Preto estava semidestruída. Digo semi
porque a estrutura dela foi feita de ferro, aço, pedras e cimento, às custas do
meu avô Godofredo. Ele até ficou “quebrado” porque não recebeu do Estado o
pagamento pelo que fez como Conselheiro Municipal. E a estrutura serviu para
apoiar a ponte construída em 1960/61 pelo governador Magalhães Pinto. A opção
era o chamado vau.
Abro um
parêntesis para explicar o que é vau, de acordo com o Aurélio: “É um trecho de
um rio, lago ou mar com profundidade suficientemente rasa para poder passar a
pé, a cavalo ou com um veículo.”
Mas, como disse,
o Rio Preto bufava, ou estava a alguns metros acima de seu nível normal. E eu,
meio tremendo e meio corajoso, pensei
comigo: não tenho alternativa. Voltar para aonde? Para Santo Antônio do Rio
Abaixo, impossível, já fazia mais de 4 horas e meia que estava viajando às
pelejas. Casas, evidentemente há, mas são poucas e eu não tinha liberdade com
ninguém. Um senhor chamado Joaquim Godó, morava atrás, no retiro do meu pai,
mas me sentia tímido para pedir pousada. Decidi: vou atravessar este mar!
Nisso, um morador próximo, de nome João Hermógenes, chamado engraçadamente de
João Imorge, viu aquele quadro, pegou o guarda-chuva e gritou: “Minino, nem
pense em atravessar este rio! Está “bufando”. Volte para algum lugar.”
Que voltar que
nada! Deitei-me na Mula Queimada e me agarrei ao seu pescoço como se fosse um
índio de filme faroeste. Direcionei a
rédea para o local que imaginava mais livre de pedras, pois sabia que o risco
seria o animal tropeçar e cair. Daí para a frente, bambeei o guidão e o
barbicacho...O baixeiro, todo molhado de suor, começou a se encharcar de água
suja de barro do Rio Preto, que corria em violenta correnteza. Eu no pescoço da
mula só pensando em chegar do outro lado. Não medi o tempo, mas calculei horas,
infinitas, eternas. Quando pensava que chegava do outro lado, a correnteza
obrigava o animal a nadar, sem apoio para os pés. Mas, aos trancos e barrancos,
chegamos ao outro lado.
Aliviado,
molhado, tremendo de frio, toquei triunfantemente para a casa do meu avô, onde
desarreei a Mula Queimada aos olhares de Serafim Sana de uma janela e Vó Maria
de outra. Gritavam sem parar e me mandavam esperar a chuva passar. Não esperei
porque a tempestade durava 5 horas de sequência ininterrupta, sem projeto para
parar. Soltei a Queimada no pasto, guardei os arreios e apetrechos e zarpei a
pé para a casa dos meus pais e minha também.
Conversa
nenhuma, papo nenhum, pergunta nenhuma. Um chicote afiado me aguardava
friamente: duas, três lambadas na poupança, outras nas pernas, alguns puchões
de orelha, de castigo, ajoelhado na sala e mais umas duas horas de oferenda a
Deus de um castigo por minha coragem intimorata de enfrentar o rio
transbordante e, mais ainda, a falta de coragem de pedir pousada a um morador
da estrada ou retornar para a Fazenda dos Bambús. Ao ser liberado do castigo,
meu pai me perguntou: “Que tipo de arte você cometeu hoje?” E eu não respondi.
Só tomei mais uns arranques, depois o banho, e fui dormir feliz da vida por não
ter nem morrido e orgulhoso da história doida que vivi.
Dedico este
texto à minha prima Afra Regina Sana, que duvidava ou duvida de que já fui
cavaleiro; a Marcos Paulo Almeida Sá e Myriam Christina, esses dois últimos
amigos de São Sebastião do Rio Preto.
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