Conheci Harcy Lage, saudoso pai de Marco Antônio
Lage, esperança do futuro de Itabira, sem vê-lo e sequer ouvi-lo. Eleito
vereador em 1972, tomei posse no ano seguinte. Durante as reuniões do Legislativo Itabirano, Harcy era um nome mágico, fantástico, uma espécie
não sei de quê, acho que uma ópera. Vereadores sempre falavam dele, citavam-no
como responsável por isso, por aquilo, aquiloutro. Conceituei-o, então, como
pauta de reuniões.
De
tanto ouvir “Harcy Lage” daqui, “Harcy
Lage” dali, certa vez resolvi perguntar durante uma reunião: “Senhor
presidente, quem, afinal, é esse tal de Harcy Lage?” Ele foi resumido: “É um
fazendeiro e ex-vereador, muito respeitado de Ipoema”. Tudo bem, pensei comigo,
respeitado já senti que é.
Os
anos passaram e agora chegamos a um dia de fevereiro de 1979. Tinha eu um
jipe, adquirido às pressas, para
enfrentar as enchentes bravas que caíam na
região e fecharam entrada e saída de Itabira durante bom tempo. No veículo, com tração nas quatro rodas,
ia a Belo Horizonte pelo menos uma vez
por semana, via Ipoema, Bom Jesus do Amparo, até pegar a BR 381/262. Em BH
adquiria mercadorias que não eram encontradas em Itabira para a confeitaria
Cantinho do Pão de Queijo, meu ganha-pão na época.
Harcy Lage |
Certa
vez, voltando de BH em companhia de um funcionário, lá pelas dez da noite,
debaixo de chuva torrencial, o potente veículo teve o diferencial agarrado no
barro, em frente à sede da Fazenda da Dona.
Estacionamos, forçados, no meio da estrada e não passou sequer uma alma viva para nos ajudar, só
pelejamos e desistimos. Durante a peleja, vem um funcionário da fazenda e me
orienta: “Você vai ter de esperar até amanhã cedo para que funcionários da
Prefeitura venham arrancar esse carro daí.”
Vivemos
um drama parecido com o das “mil e uma noites”. Antes de pegar no sono, que
durou curtíssima hora, mal-acomodados, é claro, chega de novo o ajudante
da fazenda e diz: “Estão te chamando para dormir lá” — apontou o dedo para o casarão colonial,
de notável valor cultural. Penhoradamente
agradeci.
Cochilos
intercalados pelo barulho da chuva, o dia amanheceu, um funcionário da fazenda vai
a Ipoema e traz uma equipe de trabalhadores municipais que, num instante, com
um trator, puxa o jipe. Ainda recebemos outro convite: “A
dona da casa mandou chamar para o café”. Mais uma vez sou agradecido pelo
segundo convite. Tento contribuir com os operários do socorro, mas eles
rejeitaram todo tipo de gorjeta.
Passados três anos, ou seja, estamos em 1982, eu numa campanha inglória para
deputado estadual. A jornada é árdua, não só nas cidades vizinhas, mas
também nas zonas rural e urbana. Comícios, reuniões, visitas, festas
religiosas, casamentos, batizados, velórios, missas e outros eventos faziam parte das programações. Como praticam
os candidatos, cumprimento um a um os cabos eleitorais e eleitores. Entre conversas,
falam muito de dois fazendeiros
e, não sei por qual razão, no auge de meus trinta e poucos anos, certos nomes
guardo, como Gonçalo e Harcy, mas me fogem da memória as fisionomias.
Num
dos comícios, deparo-me com um desses fazendeiros: aproximo-me e o cumprimento com voz retumbante: “E aí,
senhor Gonçalo, como vai?” Quebrei a cara e foi como cutucar onça com vara
curta. Ele, simplesmente, agarra-me pelos braços e solta um discurso enfático:
“Outra vez?” Vi que estava a um palmo de um puxão de orelhas sem saber o porquê.
Antes
mesmo que desse conta do erro, fixo os
olhos no bolso de sua camisa e lá estava um monte de santinhos. Dava para ver:
“Vote em José Sana, número 1117”. Alívio momentâneo, mas vem a fatal franqueza:
“Olha aqui, seu Sana, candidato a deputado, estou trabalhando para você e você
nunca me pediu; agora vem trocar o meu nome? Pare de me chamar de Gonçalo!”
Estava frente a frente com Harcy Lage.
Nem
sei mais qual foi a réplica. Ou melhor, perdi a voz. Ele continuou: “Olha que
você ainda teve a coragem absurda de
passar uma noite dentro de um carro na porta
de minha casa, rejeitar convite para dormir, nem um simples café aceitou!”Minha voz embargada não emite sequer pedido de desculpas, acho que ele entendeu
o constrangimento.
Poucos
dias depois, noutro comício, aperto a mão do segundo fazendeiro e pronuncio a
seguinte frase: “Como vai, senhor Gonçalo Santana Silveira?” Ele respondeu:
“Onde ficou sabendo meu nome todo?” Desta vez acertei, penso comigo mesmo. Antes
de lhe explicar, surpreende-me também: “Me dá cédulas dessas aí que eu e meu
pessoal de casa vamos todos votar em você. O Harcy me pediu!”
O
tempo voa para 2013, ele já não está mais conosco, leio um belíssimo texto no
Facebook, de autoria de Stael Azevedo, que revela: Harcy Lage foi o pioneiro de
fotografias na velha Aliança. Aí, então, anexo mais dados dele no meu caderno: exímio fotógrafo, ex-vereador, grande chefe
político e professor de política pura, limpa e sincera, das que poucos praticam
hoje em dia, além de pai de 11 filhos, tendo Marco Antônio no meio do time de
craques.
Este
foi apenas um pequeno capítulo de meu
relacionamento com Harcy Lage, passando por Gonçalo Santana. O importante ainda
mais foi que aprendi lições
inesquecíveis, como: não rejeite um teto para dormir, nem um café de cortesia,
quanto menos troque o nome do eleitor. Erros como estes podem custar uma
derrota inapelável. Perdi a eleição para deputado, mas cheguei bem perto, com
15.351 votos num colégio eleitoral de 45 mil eleitores.
José
Sana
26/08/2020