Prezados, não
sei como são escolhidos e eleitos os temas de redação do Exame Nacional do
Ensino Médio, o popularíssimo Enem. Provavelmente, há uma ou mais reuniões de
especialistas nas quais colocam em pauta propostas atuais, importantes e
abrangentes. A ideia, com certeza, vem de um lugar não sei qual; que
Stephen Hawing, o maior cientista da
atualidade, define como Cosmos; aterrissa na mente de um, que sopra para quatro
ou cinco; todos discutem, mexem, alteram, aceitam e proclamam.
Este ano o Enem
balançou o coreto brasileiro de norte a sul, leste a oeste. Antes de conhecer a
ideia dos mestres, declaro desconhecer a razão — ressonância, intuição,
coincidência, ou sei lá o quê — porque produzi a minha redação particular,
descompromissada, e a publiquei no site www.defatoonline.com.br
antes de ser anunciado seu título para redação dos pleiteantes: “Desafios para
Formação Educacional de Surdos no Brasil”.
A repercussão
foi uma quase bomba nacional. Digo: bomba do Enem e não da antecipação deste
simplório escriba. Vi e ouvi professores protestando e tentando justificar que
seria mais interessante que se preferisse o tema surdo acrescido de mudo e
cego. Li também alguns comentários de articulistas — professores, médicos,
fonoaudiólogos, sociólogos. Todos abordaram o assunto com cautela e bons olhos,
fazendo valer um louvável espírito humano e comunitário. Houve um texto, muito
compartilhado nas redes sociais, no qual o autor preferiu enfatizar metáforas sobre
a surdez como se fosse uma situação de negligência e ociosidade de nossos
governantes.
Teoricamente, o
mundo inteiro pode falar e escrever sobre o surdo e a surdez sem ser
questionado ou incomodado. Os quatro milhões de candidatos que prestaram as
provas tiveram a oportunidade. Na prática, todavia, quem conhece o surdo sabe
de sua saga, seus dissabores, suas agruras, seu sofrimento pessoal, é somente
ele, o deficiente auditivo. O conceito do cidadão, professor, especialista,
quem quer que seja, é apenas este: surdo é a pessoa que não ouve, não escuta, e
ponto final. É muito vago. Anotem a real e inquestionável definição de quem
carrega tal problema: surdo é o humilhado, discriminado, pisoteado, que sofre
bulliyng com tapas nas orelhas e zombarias cruéis e inimagináveis. Padece como
se tivesse culpa disso. O sinônimo de surdo para a sociedade é tolo, idiota,
besta.
Para evitar
exatamente o bulliyng, o surdo tenta se manter firme no seu dia a dia
desafiador, bancando até o herói, mas o herói-otário. Eis o que ele faz: oculta
o problema ao grau máximo de tolerância que consegue ou “per omnia saecula saeculorum, amen”. Aí entro com a minha e
outras experiências de vida: conheço muitos casos assim e eu próprio tive não
sei se a proeza ou a burrice de me esticar durante 30 anos nos quais ocultei o
sério problema de não ouvir e, ao mesmo tempo, tentar exercitar outras
percepções, porque é verdade que Deus nos tira uma faculdade e a substitui por
outra e outras.
A Educação
Inclusiva, disciplina que futuros professores estudam em Licenciatura Plena,
tenta ensinar à nova geração como enfrentar o desafio de lidar com o surdo e o
surdo-mudo, e ser-lhe útil. Mas a missão do mestre precisa, no meu entender, ir
muito além da didática e da metodologia escolar. Primeiro desafio: descobrir
quem, realmente, carrega a falta de ouvir sons pela vida afora. Em segundo
lugar, denunciar aos cegos e também aos surdos órgãos públicos que a destruição
do ambiente engloba a zoeira integralmente e condena os novos cidadãos do planeta.
Em terceiro plano, a paciência que os moucos sofredores, sem drama, requerem
por sua condição humana. Ludwig van Beethoven, compositor e pianista alemão do
período de transição entre o Classicismo e o Romantismo, era surdo. Como ser uma
celebridade dessa envergadura, um músico notabilíssimo e não conhecer sequer o
rufar dos tambores? Alguém precisa de mais um exemplo de como superar o sério
desafio?
E ainda quero
dizer: depois de três décadas de silêncio profundo no mundo em que vivi e
muitos outros vivem, mesmo debaixo de caminhões com motores portentosos que
arrebentam tímpanos de elefante, consegui vencer pelo caminho de desenvolver
novas percepções, sem usar o sistema Libras. No lugar dele o tapa na cara, nas
orelhas, o deboche crudelíssimo, a pregação da estima estilhaçada. Prezados, só
quero agora enaltecer o Enem surdo, surdo-mudo e cego, que fez com que o Brasil
desse o primeiro passo no rumo do respeito ao cidadão. Por hoje é só.
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