domingo, 12 de novembro de 2017

Enem surdo, mudo e cego. Mas foi o primeiro passo

Prezados, não sei como são escolhidos e eleitos os temas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio, o popularíssimo Enem. Provavelmente, há uma ou mais reuniões de especialistas nas quais colocam em pauta propostas atuais, importantes e abrangentes. A ideia, com certeza, vem de um lugar não sei qual; que Stephen  Hawing, o maior cientista da atualidade, define como Cosmos; aterrissa na mente de um, que sopra para quatro ou cinco; todos discutem, mexem, alteram, aceitam e proclamam.

Este ano o Enem balançou o coreto brasileiro de norte a sul, leste a oeste. Antes de conhecer a ideia dos mestres, declaro desconhecer a razão — ressonância, intuição, coincidência, ou sei lá o quê — porque produzi a minha redação particular, descompromissada, e a publiquei no site www.defatoonline.com.br antes de ser anunciado seu título para redação dos pleiteantes: “Desafios para Formação Educacional de Surdos no Brasil”.

A repercussão foi uma quase bomba nacional. Digo: bomba do Enem e não da antecipação deste simplório escriba. Vi e ouvi professores protestando e tentando justificar que seria mais interessante que se preferisse o tema surdo acrescido de mudo e cego. Li também alguns comentários de articulistas — professores, médicos, fonoaudiólogos, sociólogos. Todos abordaram o assunto com cautela e bons olhos, fazendo valer um louvável espírito humano e comunitário. Houve um texto, muito compartilhado nas redes sociais, no qual o autor preferiu enfatizar metáforas sobre a surdez como se fosse uma situação de negligência e ociosidade de nossos governantes.

Teoricamente, o mundo inteiro pode falar e escrever sobre o surdo e a surdez sem ser questionado ou incomodado. Os quatro milhões de candidatos que prestaram as provas tiveram a oportunidade. Na prática, todavia, quem conhece o surdo sabe de sua saga, seus dissabores, suas agruras, seu sofrimento pessoal, é somente ele, o deficiente auditivo. O conceito do cidadão, professor, especialista, quem quer que seja, é apenas este: surdo é a pessoa que não ouve, não escuta, e ponto final. É muito vago. Anotem a real e inquestionável definição de quem carrega tal problema: surdo é o humilhado, discriminado, pisoteado, que sofre bulliyng com tapas nas orelhas e zombarias cruéis e inimagináveis. Padece como se tivesse culpa disso. O sinônimo de surdo para a sociedade é tolo, idiota, besta.

Para evitar exatamente o bulliyng, o surdo tenta se manter firme no seu dia a dia desafiador, bancando até o herói, mas o herói-otário. Eis o que ele faz: oculta o problema ao grau máximo de tolerância que consegue ou “per omnia saecula saeculorum, amen”. Aí entro com a minha e outras experiências de vida: conheço muitos casos assim e eu próprio tive não sei se a proeza ou a burrice de me esticar durante 30 anos nos quais ocultei o sério problema de não ouvir e, ao mesmo tempo, tentar exercitar outras percepções, porque é verdade que Deus nos tira uma faculdade e a substitui por outra e outras.

A Educação Inclusiva, disciplina que futuros professores estudam em Licenciatura Plena, tenta ensinar à nova geração como enfrentar o desafio de lidar com o surdo e o surdo-mudo, e ser-lhe útil. Mas a missão do mestre precisa, no meu entender, ir muito além da didática e da metodologia escolar. Primeiro desafio: descobrir quem, realmente, carrega a falta de ouvir sons pela vida afora. Em segundo lugar, denunciar aos cegos e também aos surdos órgãos públicos que a destruição do ambiente engloba a zoeira integralmente e condena os novos cidadãos do planeta. Em terceiro plano, a paciência que os moucos sofredores, sem drama, requerem por sua condição humana. Ludwig van Beethoven, compositor e pianista alemão do período de transição entre o Classicismo e o Romantismo, era surdo. Como ser uma celebridade dessa envergadura, um músico notabilíssimo e não conhecer sequer o rufar dos tambores? Alguém precisa de mais um exemplo de como superar o sério desafio?


E ainda quero dizer: depois de três décadas de silêncio profundo no mundo em que vivi e muitos outros vivem, mesmo debaixo de caminhões com motores portentosos que arrebentam tímpanos de elefante, consegui vencer pelo caminho de desenvolver novas percepções, sem usar o sistema Libras. No lugar dele o tapa na cara, nas orelhas, o deboche crudelíssimo, a pregação da estima estilhaçada. Prezados, só quero agora enaltecer o Enem surdo, surdo-mudo e cego, que fez com que o Brasil desse o primeiro passo no rumo do respeito ao cidadão. Por hoje é só.

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