Éramos pequenos, nem os primos da
casa de Tio Líbio e Didi tinham nascido. Se já rastejavam pela casa dos
correios, eram somente Marcos, talvez Míriam.
Diante desta verdade incontestável, declaro-me pioneiro perante dez
primos que a chamavam irreverente e amorosamente “Dindinha”.
Ela, na verdade, foi uma de
nossas mães. Vivia cuidando também de minha mãe. Viajava com a gente como se
fosse da família. Belo Horizonte, Santa Maria, Itabira, Conceição do Mato
Dentro. Era a catequista da meninada, dividida entre Lúcia e Conceição Maia. Só
não me ensinaram a chamá-la de Tia nem de Dindinha. Mas era a nossa tia e a
nossa madrinha, já que era possível ter dez afilhados numa casa só.
Lembro-me de uma viagem à Fazenda
das Botas, pra lá de Passabém, a uns 15 quilômetros de São Sebastião. Íamos,
incluindo filhos de Tio Zezé e Tia Ninita, uns oito
por aí, a pé, dedos no chão,
sem reclamar. Parecia uma festa. Tinha eu meus 6 anos e estava bem aos seus
cuidados. O dono da fazenda, Seu Guilherme, da família dos Duarte. Duarte brabo
e cheio de opiniões próprias desde quando nasce.
Na primeira noite me baixou uma
dor de dente bem ao estilo de antigamente, quando os dentistas nem existiam.
Doía sem dó nem piedade e conserto: começou na viagem. Não havia remédio. A
única solução era álcool ou cachaça para bochechos. Mas nem sempre resolviam.
Fui dormir chorando como um bebê desmamado na raça. Gritava tanto que a voz atravessava
o casarão e ia incomodar as galinhas e os patos, no quintal. Disseram-me que
foram dormir cedo porque tirei o prazer deles.
A nossa Dindinha, religiosa ao
extremo, catequista de primeira, sussurrou em meu ouvido que a Madrinha dela,
mãe de Seu Guilherme, uma velhinha que padecia na cama (acho que tinha mais de
100 anos), rezaria por mim e em poucos minutos eu estaria bom. Fui ao quarto,
meio desconfiado, ela depositou as mãos em minha cabeça e sentenciou
infalivelmente: “Vai dormir sem dor, menino”! – encerrou assim a sua
“Ave-Maria”.
O milagre aconteceu. A dor, muito
forte, que me azucrinava sem pausa, desapareceu de uma vez só. Dormi como um
anjo – e vejo hoje que sim – porque não me estarreci, senti a sua fé como
natural, normal, que sentimento puro!. Ficamos mais uma semana na fazenda,
bebendo leite direto dos peitos das vacas, correndo atrás de cabras e
carneiros, galinhas e patos, pegando coelhos para brincar e soltar. Nem ao
dentista precisei ir depois da reza da Dindinha da Dindinha.
Tenho muitas histórias gravadas na memória. Sinto-me, por horas, um
computador de HD de altíssimo poder e resolução. Certa vez no Parque Municipal
de Belo Horizonte – mesmo local da foto em que aparecem meu pai, minha mãe,
Honorinho (filho de Tia Zulmira), ela, Carlos e eu - me soltou montado num carneiro, sozinho, pelo
parque adentro. E ria de minhas perícias porque vinha da roça e me delirava com
brinquedos da roça. Na verdade, fato redundante.
O tempo passou, ela se casou com
o super-ser humano chamado José Ferreira Lage, Zé Somiro para seus
conterrâneos, de humor elevado ao cubo, teve filhos, netos. Mas vivemos um
tanto quando distantes, como o destino nos impõe sempre por suas regras
indecifráveis.
Neste domingo, dia 10 de junho de
2018, curtindo repouso absoluto e forçado, eu, por uma coisinha sem importância a que chamam
de pneumonia, recebo uma mensagem de minha prima Cleyd: “Notícia triste, primo: Dindinha Zica
faleceu”. Era uma mensagem no Whatsapp, mas parecia uma flechada no peito. Sem
poder sair gritando, chorando, chamando por ela, apenas deixei que minha
memória vagasse no passado para chegar às aulas de catecismo em São Sebastião
do Rio Preto: “Estamos no mundo porque Deus nos quer aqui; guardem essa lição
para sempre e serão felizes” – suas autênticas palavras viajaram durante anos e
fio. O meu sistema eletrônico natural guardou para sempre.
Maria Antônia Lage (era o nome
dela), ou melhor Zica, assim carinhosamente tratada! Obrigado por ter curado a incurável
dor de dente e outras dores de tudo, além de incômodos significativos de minha vida.
Deus escolheu que vivêssemos, disse você. Porque Ele é o “espírito
perfeitíssimo” e quis agora levar você. Contrariá-Lo? Ninguém jamais teve, tem e
terá esse poder. Mas isto você pode fazer: peça a Ele para ser a Dindinha de
nossas dores todas e da descrença do mundo. Amém.
Um abraço, querida Zica!
Que história mais linda.
ResponderExcluirSou cunhada do Giovani e tive a honra, o prazer e o privilégio de conhecer essa pessoa, esse anjo na vida de tantos.
Também tenho minhas histórias nestes poucos 25 anos de convivência, mas q teve muito aprendizado, alegrias e reflexões. Senti e estou sentindo a falta da Dona Zica, pois ela tbm cuidou de mim quando grávida pois passava muito mal, sempre me perguntava o que queria comer e fazia e por conta de todo este carinho ao sair da maternidade quis levar minha filha para que fosse a peimwipr a conhecê-la.
Me sinto privilegiada de poder ter vivido esse tempo tão próxima e hj poder lembrar de cada momento com muito carinho.
Os olhos enchem de lágrimas de saudades e o coração tem a certeza de que sua missão foi cumprida, que deixou um legado maravilhoso.
Que possamos todos a manter viva em nossos corações e lembranças porque sua marca registrada era a alegria.
Te amo pra sempre Dona Zica ❤🙏🕊