segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

POR QUE SER GALO E POR QUE NÃO SER RAPOSA


Estamos em julho de 1951 e faz um frio de azedar as pontas dos beiços. Esta frase sempre era dita por caipiras de minha terra, São Sebastião do Rio Preto, e de seus arredores. Meu avô e padrinho, Seraphim Sanna, resolveu me agraciar com uma viagem a Ouro Preto, queria me apresentar, com o orgulho de sempre,  aos pais, como o seu primeiro neto. Na nossa comitiva estava também  Alina, minha tia, de quem ele dava a informação na ponta da língua: ela é a que mais parecia com suas irmãs, principalmente  Amandina.


Saímos de São Sebastião de jardineira, que pertencia aos Fernandes. O dono era o Souza. Ele riu de minha “esperteza”  na saída de manhã, quando meu pai me perguntou quanto de dinheiro eu iria precisar. Respondi na ponta da língua: “Um milhão!” Na verdade, por obrigação da época (havia uma ordem expressa dos pais e professores de que a criança só podia aprender as primeiras letras a partir de sete anos), eu era analfabeto, mas sabia que a moeda do momento era o Cruzeiro, dividido em centavos  Ele substituía a monárquica Mil-Réis, que tinha outra avaliação decrescente, o Tostão. Riram de mim, meu pai me deu alguns bons centavos com a desaprovação de meu avô, que repetiu: “As despesas de viagem são por minha conta!”


Até Belo Horizonte de jardineira, depois de reembarcar em Santa Maria de Itabira, chegamos na Capital à noite. Em BH,  permanecemos durante uma semana. Era tudo muito devagar. E num dia qualquer entramos num trem que fazia o trajeto para Ouro Preto. Lá chegamos à noitinha. Da estação ferroviária à Rua do Pilar, onde moravam meus bisavós Giovanni e Maria Antônia, cem por cento italianos, ele descendente de judeus, estamos indo a pé. A cidade dorme. Meu avô pega  uma pedra bem forte e bate pra valer na porta. Meus bisavós repousavam no terceiro andar do velho sobrado, número 24.


A porta se abre. É a minha Bisa, que me carregou e fez festa quando meu avô disse: “Este o primeiro neto”. “Eita ferro!” - respondeu ela.  Vou ao terceiro andar. Lá, o Bisa fuma cachimbo. As janelas do quarto todas fechadas e todos inalando fortes fumaças. Vejo em cima de sua mesa várias marcas de cigarros estampadas: Continental sem filtro, cigarros de palha, fumo por cortar, e picadinho, e outros de quais tipos não me recordo. Eu já tossia freneticamente, de olhos rútilos, quando minha Bisa abre um pouco da janela. O frio lá fora continuava apitando.


Quinze dias em Ouro Preto, visitamos seus museus e igrejas, ouvi histórias e estórias, de Aleijadinho e Tiradentes e até de Filipe dos Santos, que foi morto e decapitado, com o corpo dependurado nas árvores e postes pelas ruas de Vila Rica. E conheci o primeiro sorvete de minha vida, apesar de ser inverno bravo. 

E tive longos papos com o Bisa, autoritário mas calmo, que chamava cada um para ouvi-lo, assentado como manda o figurino. E ele me conta a sua história: que chegara ao Porto de Santos por volta de 1897; que tinha uma filha apenas, de nome Bonária, nascida na Sardenha; que Seraphim nascera em 1903, em Ouro Preto; que deixara grande riqueza no país de origem; que o fascismo foi o grande perseguidor que o obrigou a sair de Cagliari como um pobretão; que o fascismo se aliou ao nazismo, formando o nazifascismo e trouxe  mais rigidez para o objetivo antissemita de eliminar os judeus da face da terra, ordens expressas do italiano Benito Mussolini e do alemão Adolf Hitler.


Muito me interessou a narrativa sobre como tinha ido parar em Ouro Preto. Descera de  navio em Santos; de lá pegou uma embarcação para Belo Horizonte, onde se estabelecera inicialmente; exercia a profissão, na época muito rendosa, de sapateiro; certo dia, resolve procurar a Colônia Italiana radicada na Capital e lá pede informações. De posse de seus documentos, uma pessoa resolve alertá-lo para que não desse “muita sopa” por lá porque a Colônia tinha as ordens de matar os judeus. Vô Giovanni me contou, com lágrimas descendo na fronte, que tremeu em cima dos sapatos. Chegando à casa, cuidou-se de pegar a mulher e a filha e zarpar para Ouro Preto. Por sorte, deu certo porque era um exímio sapateiro, profissão em evidência

Imigração italiana em 1897, Santos: meus bisa-vós estavam aí nessa confusão



Mas, por volta de 1911, com o primogênito completando oito anos de idade, de repente ficara cego e precisou parar de  trabalhar, apesar de já ter conseguido comprar uma casa, aquele sobrado de três andares em que estamos. Com oito anos, Seraphim passa a fazer biscates nas ruas e a ajudar no sustento da família. Pouco mais de mais oito anos passados, Seraphim com 17 para 18 anos, a visão volta a funcionar, Giovanni deixara de ser cego para ganhar de presente de Deus, novamente, a vista perfeita e claríssima. Eu o visito em 1951 com 94 anos. Ele morre aos 97, acho que sim, em 1954.

Mas aí vem o xis da questão: Vô Giovanni (os brasileiros o chamavam de João) tinha pavor da Colônia Italiana. Sempre quando via ou ouvia falar dela, fugia do espaço, a síndrome havia lhe tomado de supetão uma vez para nunca mais acabar. Sabia ele que essa maldita colônia havia criado, em 1921, um clube de futebol chamado Palestra Itália, depois transformado em outros nomes (Palestra Mineiro, Piranguy do Sul, Yale, Ypiranga e Cruzeiro). Ele disse que demorou para  entender o porquê  das alterações feitas. A razão era que os governos nacionalistas brasileiros faziam sérias restrições às empresas e clubes estrangeiros. Deu para notar que a problemática vinha de longa data.

Não era mais necessário perguntar por que seu descendente e meu avô, Seraphim Sanna, torcia para o Clube Atlético Mineiro. E fez os filhos Líbio e Alfeu, seguirem essa preferência desportiva. Consistia apenas numa opção anti-Palestra, ou anti-Cruzeiro. E daí se explica o que ocorreu ontem, dia 8 de dezembro de 2019, quando grande parte da torcida cruzeirense fez por honrar a tradição fascista, ou melhor, nazifascista. E que Benito Mussolini, o grande precursor do fascismo, que queria espalhá-lo pelo mundo, foi o primeiro presidente simbólico do Palestra Itália E. C.

Se não falei, ainda tenho mais balas na agulha. Depois vou contar também por que a maioria Moura Morais é cruzeirense, um equívoco do tamanho da Toca da Raposa, que pegou o meu grande amigo e orientador na vida, Dr. João Rodrigues de Moura, avô de minha companheira, com quem vivo pela graça de Deus há 50 anos, de surpresa e o enganou enquanto viveu. Eu não estava presente para mostrar a ele a origem fascista do time cem por cento italiano.


José Sana
09/12/2019

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