segunda-feira, 22 de novembro de 2021

"O ÚLTIMO DOS MOICANOS"

Estamos em 5 de agosto de 1946. Três cavaleiros saem de São Sebastião do Rio Preto rumo a Conceição do Mato Dentro, mais precisamente ao internato do Ginásio São Francisco  para prosseguimento das aulas no segundo semestre. Os três eram Godofredo Cândido de Almeida Júnior, Domingos Primo de Almeida e um chefe de tropa chamado  “Seu Domiro”, negrão forte como um touro e de confiança de meu Avô Godó, ou melhor,  Godofredo Cândido d’Almeida.


               Domingos Primo de Almeida


A pequena caravana tinha saído de madrugada e agora são dez horas da manhã. Minha Avó Sinhá carrega nos braços sua oitava netinha, Raimunda Almeida Dias, nascida em 26 de junho. O nome,  inspirado em  Raimunda Cândida Ferreira de Almeida, nos anos seguintes  passou a ser Irmã Miriam de Almeida. A pequenininha,  preservada pela avó, foi a nossa querida  prima Mundica.

Vó Sinhá, ou melhor, Maria Natividade Ferreira de Almeida, silenciosamente, acomoda na cama a frágil menina de apenas  dez dias de vida, depois de um banho cuidadoso.  Em seguida, devagarinho, mantém  a quietude do ambiente, cai  no solo, passando da pré-agonia ao falecimento. A casa revirou-se em desesperos incontidos ocorrido com aquele chamado “morrer de repente” e a pequena Vila se abateu em prantos e lamentos, visto o notável respeito que devotavam a uma mulher religiosa, serena e carinhosa com pobres e ricos de todas as raças e credos.

Meu  Avô Godó, sempre objetivo e intempestivo, no meio da desolação, ordena  imediatamente a um  outro tropeiro (o nome desse não me foi dito e não tive a curiosidade, infelizmente, de pesquisar) a ir correndo para deter a jornada que seguia à  sede municipal, Conceição. Exatamente na Serra de Santo Antônio do Rio Abaixo, os filhos órfãos de mãe são detidos e retornam.

A reação dos filhos estudantes  reflete como um tiro de canhão certeiro no peito, provocando reações diferentes. Godofredo, o mais velho, desabou-se em choro e gritos, fazendo perguntas intensas, querendo detalhes; o outro, Domingos, caiu no mais ensurdecedor silêncio que se pode imaginar,  depois do choro normal do susto, de momentos no velório e  no sepultamento. Meu pai, Tãozinho do Godó, contava que “Domingos  não disse  uma só palavra durante um mês, fato que muito preocupou o pai, irmãos, parentes e amigos”.

Fiz este  longo preâmbulo  para tentar  abrir uma história de vida de meu Tio Domingos, falecido aos 90 anos, neste último  17 de novembro, a quem eu, particularmente, chamava, nas horas de descontração, de “O Último dos Moicanos”, em alusão a  um filme  e  um livro, aquele de James Fenimore Cooper, romance de 1826, e à obra cinematográfica  de Michael Mann, de 1992. 



                                 Casamento civil: BH

Durante a guerra entre ingleses e franceses, que culminaria mais tarde com a Independência dos Estados Unidos, Uncas simbolizaria o “último dos moicanos”, uma tribo indígena. que participou de épicos anos  de luta.  Na época em que foi  publicado  o livro, acreditava-se que os moicanos estivessem em vias de extinção. Desde então, a expressão passou a significar o último de uma espécie rara e valiosa. Para mim, Tio Domingos foi um moicano sem flecha e sem cocar.

Era esta uma de minhas brincadeiras com ele. Mas, afinal, tomei tanto tempo de um eventual ou milagroso leitor e me resta pouco espaço para contar uma bela história. Vou apenas resumir para que mais tarde possa complementar e com mais detalhes.

 Tio Domingos casou-se em 28 de julho de 1962  com Thereza Rios de Almeida, com  quem construiu uma  bela família, composta de seis filhos: Álvaro José, Maurício (meu afilhado de Crisma), Adauton, Ana Cristina, Alexandre e Karina (tive o prazer de comparecer ao casório). Três netos Tio Domingos deixou em Belo Horizonte .

Minha convivência com ele foi intensa nos tempos de criança, adolescência e até nos dias atuais. Ele e Ir. Miriam (essa falecida em 30 de agosto de 2021), muito me falaram dos nossos antepassados, incluindo uma revelação assustadora: uma das filhas de  meus avós Sinhá e Godó, de 11 anos, foi tragada pelo Córrego das Posses, situado a poucos metros abaixo da casa entre essa, o engenho e a usina de luz; a outra informação foi que o casal teve15 filhos, a nossa geração conheceu apenas sete: Maria Jacintha, José Cândido (Zezé), Sebastião Cândido (Tãozinho), Luzia, Ir. Miriam, Godofredo e Domingos.


Casamento religioso na Igreja da Pompéia - BH


Alguns tópicos que ainda devo registrar:

— Tio  Domingos casou-se aos 31 anos de idade, viveu durante 36 anos ao lado de Thereza, esta falecida em 27 de março de 1998.

— Ele trabalhou durante anos a fio até aposentar-se  como funcionário público estadual.

— Enquanto solteiro, morava no edifício localizado entre a Avenida Amazonas,  esquina com  Rua dos Tupis, em Belo Horizonte, chamado vulgarmente  de “Balança Mas não Cai”. Aí vivemos momentos de incrível alegria e suspense nas brincadeiras com a altura (décimo sétimo andar) e com o elevador que não passava um dia sem um enguiço qualquer.

— Ainda solteiro, ele ia frequentemente à terra natal, e não dispensava dar mergulhos no até então límpido e caudaloso Rio Preto. Para lá levava seus sobrinhos. Meu pai só me autorizava ir banhar-me na companhia dele. E foi exatamente ele quem me salvou duas vezes de afogamento.

Domingos, dizem seus mais próximos amigos, é um homem de família, uma voz de pai perfeito, um líder que arrasta tantos seguidores, mesmo na sua humildade que tentava, até isto, ocultar. Seu jeito de ser, sua postura, suas palavras mansas, todas essas e outras virtudes foram suas companheiras durante tanto tempo, como foi instrutivo e sem alarde seus 30 dias de mudez absoluta na morte de Vó Sinhá, ato demonstrativo de amor incondicional.

Volto ao último dos moicanos só para concluir. Com certeza, Domingos era o “rapa de tacho” da terceira geração dos Almeida, de descendência  portuguesa. Com segurança, não carregava os ornamentos de tribo indígena.

Ele me permite  agora arrancar de vez o que sempre quis: do dicionário a expressão “saudade eterna”. Jamais um ser desta magnitude pode ausentar-se  para sempre de nós. Asseguro que há saudade, sim, mas até quando Deus  determinar. Haverá um dia em que  todos nos  reencontraremos para uma eterna, aí sim, confraternização universal.

José Sana

Em 22/11/2021

Fotos: Maurício Rios de Almeida

Um comentário:

  1. Não me lembro de um texto in memorian, causar em mim tanta emoção.
    Também devo confessar, que desde o dia 17 deste, data em que o tio Domingos partiu, estou remoendo um sentimento que finalmente, a partir do que foi relatado sobre a sua passagem aqui na Terra, consegui começar a compreender.
    A sensação que fluidicamente insistia em me inquietar, era: "alguém assim, tão diferenciado, tem que ser eterno".
    Sabemos que eternos todos somos em energia, mas existem filhos de DEUS, que justificam através de sua grandeza e luz, a passagem material.
    Eu, falando assim, parece estranho, pq convivi pouco com ele.
    Esse amor verdadeiro que sinto por ele,além da minha própria percepção, também deve-se à herança do irmão, meu pai, Sebastião Cândido, o Tãozinho do Godó, que o amava exarcerbadamente.

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