sábado, 20 de julho de 2013

O sapato que me faz chorar a vida inteira

— “Oh, Mercês, este sapato me faz chorar toda a hora!” — Até algum tempo antes de completar 105 anos, quando faleceu, minha Vó Maria repetia a frase que, segundo ela e outras pessoas, era a minha exclamação preferida aos cinco anos de idade. A obrigação de usar sapatos meus pais e avós me impunham, justificada numa possível e imaginária fraqueza diante de resfriados. Assim, levei e levo minha vida até agora, sempre com um sapato no pé. Vergonha na cara nunca tive, pois neste momento — sábado à tarde — estou com um sapato que me doi o pé, inapelavelmente.

Abro o parêntesis para dizer que vou subir a escada e tirar essa ofensa que se chama calçado, sapatos, qualquer coisa que me impede a felicidade desde os tempos mais remotos da vida. Vou lá e retorno num minuto. E fecho, agora de chinelos,  para dizer que Mercês é minha tia-irmã. Fui criado com ela, muito na casa de meus avós maternos, por ser o primeiro da fila de uma peble de mais de 60 que viria por aí em seguida. A reclamação soava na cabeça da tia-irmã e até hoje ela a manifesta: “Oh, Mercês, este sapato me faz chorar toda a hora!”

Maldito inventor do sapato! Algum Thomas Edíson da “urucubaca” (na loja de meu pai, em que eu trabalhava como balconista ainda criança, as pessoas chamavam o calçado alpargata ou alpercata de urucubaca). Dá para sentir que o povo da roça tinha um dicionário próprio, com notável terminologia. Sempre quis excomungar os precursores do sapato. Pra quê guardar os pés? — Já fazia essa pergunta na adolescência e ninguém dava resposta.

Muito cedo notei que havia algo errado com meu pé. As pessoas da família diziam que eram altos, jogando a culpa nas “peladas” de rua, a única diversão que havia naqueles bons tempos. Mas um dia descobri o que causa até os dias de hoje a minha aversão ao calçado: joanete. Joanete é um inchaço, geralmente dolorido, da articulação do dedão do pé. Agora parece ter surgido a cura, dizem, possível com o uso de palmilhas. Vamos ver.

Um exemplo de aversão aos sapatos vi com os próprios olhos: um senhor alto, muito gordo, de terno e gravata, tinha vindo de Dores de Guanhães, sua cidade, para fazer parte da recepção a um político da alta cúpula mineira. No antigo Hotel Pousada dos Pinheiros se deu a efeméride de um almoço festivo: todos vestidos com  trajes a rigor e o dorense desfilando a sua particularidade que se mantinha invisível por causa da calça boca larga, a chamada “pantalona”. Até que um repórter de outra cidade me chamou para mostrar o rapaz. Susto total: ele estava, com aquela pompa toda, da cabeça ao chão,  sem sapatos.

O astro da capital perdeu a condição de cena roubada para o seu admirador do interior. Seu pé, muito branco e pequeno para segurar a estrutura pesada do corpo, vez por outra, era mostrado. Mas queria eu uma entrevista de box para fazer uma só pergunta:

— Por que você está sem sapatos? Ele respondeu somente com uma palavra, me enganando completamente, pois achei que teria dito, por exemplo, o nome de uma mulher que lhe traria o calçado.

O sem-sapato disse apenas:

 — Joanete.

"Voando", restou-me a tréplica:
— Mande  um abraço para a Janete ...ou Joanete.
Ele não entendeu e deixei pra lá.

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