—
“Oh, Mercês, este sapato me faz chorar toda a hora!” — Até algum tempo antes de
completar 105 anos, quando faleceu, minha Vó Maria repetia a frase que, segundo
ela e outras pessoas, era a minha exclamação preferida aos cinco anos de idade.
A obrigação de usar sapatos meus pais e avós me impunham, justificada numa
possível e imaginária fraqueza diante de resfriados. Assim, levei e levo minha
vida até agora, sempre com um sapato no pé. Vergonha na cara nunca tive, pois
neste momento — sábado à tarde — estou com um sapato que me doi o pé,
inapelavelmente.
Abro
o parêntesis para dizer que vou subir a escada e tirar essa ofensa que se chama
calçado, sapatos, qualquer coisa que me impede a felicidade desde os tempos mais
remotos da vida. Vou lá e retorno num minuto. E fecho, agora de chinelos, para dizer que Mercês é minha tia-irmã. Fui
criado com ela, muito na casa de meus avós maternos, por ser o primeiro da fila
de uma peble de mais de 60 que viria por aí em seguida. A reclamação soava na
cabeça da tia-irmã e até hoje ela a manifesta: “Oh, Mercês, este sapato me faz
chorar toda a hora!”
Maldito
inventor do sapato! Algum Thomas Edíson da “urucubaca” (na loja de meu pai, em
que eu trabalhava como balconista ainda criança, as pessoas chamavam o calçado
alpargata ou alpercata de urucubaca). Dá para sentir que o povo da roça tinha um dicionário próprio, com notável terminologia. Sempre quis excomungar os
precursores do sapato. Pra quê guardar os pés? — Já fazia essa pergunta na
adolescência e ninguém dava resposta.
Muito
cedo notei que havia algo errado com meu pé. As pessoas da família diziam que eram
altos, jogando a culpa nas “peladas” de rua, a única diversão que havia
naqueles bons tempos. Mas um dia descobri o que causa até os dias de hoje a
minha aversão ao calçado: joanete. Joanete é um inchaço, geralmente dolorido,
da articulação do dedão do pé. Agora parece ter surgido a cura, dizem, possível
com o uso de palmilhas. Vamos ver.
Um
exemplo de aversão aos sapatos vi com os próprios olhos: um senhor alto, muito
gordo, de terno e gravata, tinha vindo de Dores de Guanhães, sua cidade, para fazer
parte da recepção a um político da alta cúpula mineira. No antigo Hotel Pousada
dos Pinheiros se deu a efeméride de um almoço festivo: todos vestidos com trajes a rigor e o dorense desfilando a sua
particularidade que se mantinha invisível por causa da calça boca larga, a
chamada “pantalona”. Até que um repórter de outra cidade me chamou para mostrar
o rapaz. Susto total: ele estava, com aquela pompa toda, da cabeça ao
chão, sem sapatos.
O
astro da capital perdeu a condição de cena roubada para o seu admirador do interior. Seu pé,
muito branco e pequeno para segurar a estrutura pesada do corpo, vez por outra,
era mostrado. Mas queria eu uma entrevista de box para fazer uma só pergunta:
—
Por que você está sem sapatos? Ele respondeu somente com uma palavra, me
enganando completamente, pois achei que teria dito, por exemplo, o nome de uma
mulher que lhe traria o calçado.
O
sem-sapato disse apenas:
— Joanete.
"Voando", restou-me a tréplica:
— Mande um abraço para a Janete ...ou Joanete.
Ele não entendeu e deixei pra lá.
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