Era 1962 quando decidi ficar
em São Sebastião do Rio Preto, depois de alguns anos em Guanhães, Conceição do
Mato Dentro e Belo Horizonte. Fugir da escola, me aperfeiçoar no volante, viver
todas as peraltices da adolescência até me enjoar e cair na realidade – esse
era o meu projeto inconsciente mas firme a se realizar. No final, deu meio
certo, meio errado, fiquei até o fim do ano, só tive que comer o pão que o
diabo amassou antes e depois, como consequência da personalidade irrequieta que
sempre esteve açoitando os meus dias. Mas esse não é o tema deste momento.
Em pauta: Tãozinho do Godó, então
com seus joviais e animados 48 anos,
forte, e como sempre foi um trabalhador
incansável. Toda manhã, carregando baldes rua abaixo ia no sentido do seu terreno,
ex-Retiro do Godó, localizado a 3 km de casa, para a ordenha das vacas. Antes
de 8 horas já tinha feito tudo, regressado, distribuído o leite para a
freguesia, tomado um banho reparador para varrer e desempoeirar as instalações
do Bazar São Geraldo. O Jipe que havia adquirido ficava aos meus cuidados,
naquela época com a “assessoria” de um rapaz de Conceição do Mato Dentro, o
Tony do Zé do Carro, um pouco mais velho que eu e já portador de uma carteira
de motorista. Eu nem idade suficiente somava ainda para ir atrás da habilitação
àquela altura.
Tony, emérito gozador, figura
interessante e de humor refinado. Chamava o meu Pai de Sô Tãozinho, sempre assentando-se numa cadeira na loja ou em casa para contar
ou ouvir causos engraçados. Mas o causo mais estonteante que o Tony passou a narrar, ele próprio
presenciou dentro de nossa casa num daqueles dias de sua permanência como
monitor de motorista.
Meu Pai usava muito espantar os
ladrõezinhos de galinha de seu vasto terreiro com bombas de um tiro, chamadas
também de “espanta coió”. Seu pipocar se assemelha ao barulho de um revólver
calibre 32. E todo mundo na vila sabia que Tãozinho do Godó tinha um 32 bem
carregado para ser disparado na hora em que precisasse. À noite, ao
encerramento do expediente, não se esquecia de encher o bolso das tais bombas
que afugentavam os moleques. Era o que ele queria fazer: assustar apenas as
raposas que avançavam sobre o seu sortido galinheiro.
Quando se levantava, ainda de madrugada,
um de seus bolsos da calça continuava abastecido das tais bombas, as que não
foram disparadas na noite anterior. A esse detalhe nunca se importou: ia ao Retiro
e retornava com o bolso armado das barulhentas armas de artifício. No reinício
do expediente comercial, somente na loja cuidava de repor o estoque para a
prateleira.
Chegou um belo dia e,
apressadamente, agachou-se para
desamarrar a botina atrelada à galocha A casa inteira estava tomada de um
silêncio dominador, parecia uma alta madrugada aquelas 7 horas e poucos minutos
da manhã. De repente, um soar de revólver 32 dentro de casa, retumbando nas
paredes do casarão, seguido de gritos alucinantes de um homem quebram o sossego
do velho sobrado de dois andares. Meu Pai soltava espasmos, completamente fora
de si, saindo palavras desconexas, ninguém entendia o seu linguajar. Tinha uma
conotação de desespero incontido, jamais visto e ouvido. “Atiraram em mim, me
acudam, me ajudem, vou morrer, tomei um tiro.”, eram seus assustados urros.
Corri com o Tony para ver, atrás a Maria Lucinha, nossa Mãe-Negra, bem depois
minha Mãe de olhos esbugalhados. Ninguém entendia nada, mas a preocupação era
geral.
No quarto dele, estirado ao chão,
lá estava Tãozinho do Godó, que jazia
ainda com a ficha suspensa, olhando para a calça furada e queimada na perna
enquanto pronunciava sons incompreensíveis e mantendo o sentido do pânico.
Também no chão, algumas dezenas de bombas e, para explicar todo o enredo e
jogar por terra a desconfiança de meu Pai de que havia sido vítima de uma
tocaia, uma caixa de fósforos. O mais distraído dos mortais deduziria
imediatamente o que se passara naquele quarto havia poucos minutos. Bombas e caixa
de fósforos num bolso apertado, num gesto de esforço para agachar e desatar a
botina, só poderiam dar o resultado de
uma fricção ou atrito e, consequentemente, sair o tiro que surpreendeu a todos naquele instante
dramático.
Horas depois, o velho-jovem de 48
anos estava na loja contando para os fregueses a sua peripécia daquele dia. O
mundo não tinha chegado ainda à época do homem-bomba, nem do terrorismo
profissional, mas alguma coisa dizia que algo iria acontecer no decorrer do
tempo. Meu Pai contava sua inacreditável aventura e, à medida que o tempo
passava, cresciam as gargalhadas sobre o
caso inédito.
Lembro-me de uns dias depois,
então, quando entrei na loja e me assustei com dois homens de baixa estatura
rindo sem parar, aos berros ensurdecedores e dando pulos como cabritos no
telhado. Ele, o Tãozinho do Godó, e seu amigo do peito, Noé do Duca. Não há
como descrever a cena dos dois às gargalhadas. Diria que um ria do outro e
vice-versa, ou ambos achavam graça na cara alheia. Somente após alguns minutos
passados descobri: eles se divertiam com a bomba que arrebentou dentro de casa
e dentro do bolso de meu Pai, acionada por algo inimaginável, uma caixa de
fósforos.
Mas a tal bomba teve o barulho de um estouro
de canhão que nos deixou todos em polvorosa por alguns suficientes e
atordoantes minutos.
Pode publicar o livro. Leio e releio com gosto, viajo em seus textos!!!!!!
ResponderExcluirAparecida, Mais uma vez muito obrigado pela sua honrosa presença em meu mundo. O seu elogio vale um bilhão de sentimentos de incentivo.
ResponderExcluirAinda não sei de livro. Estou aproveitando o ano do centenário do Velho para escrever algumas lembranças que ficaram...