quinta-feira, 27 de março de 2014

CENTENÁRIO DO TÃOZINHO DO GODÓ (8) Meu Pai e Minha Tia Luzia



Desculpem-me os cultos e inteligentes que não estudaram metodologia da história, tenho que fazer um lembrete: uma das lições mais úteis que aprendi no curso de História ocorreu no primeiro dia de aula. Disse de bom tom que o povo da Idade Média era muito atrasado. Quis declarar, conseguintemente, que Pré-História, Antiguidade, até mesmo a Idade Moderna e quase todo o período contemporâneo neles o atraso metia medo.. Minha sorte foi que a professora Márcia Ferreira, que deu o show de aula  mais inesquecível que tive naquele ano na Funcesi, em Itabira,  soltou um berro desses de fazer tremer as pedras do Córrego Seco. E, mais assustado que meus colegas, tremi em cima dos sapatos. Outra sorte pelo grito que vazou nas paredes da faculdade foi que nunca mais precisei que alguém me fizesse não entender a história como deve ser tratada. Cada tempo no seu tempo.Mais adiante, no curso, aprendi a frase que sintetiza tudo: “Ver a Idade Média com os olhos da Idade Média”.

Fiz esse preâmbulo apenas para falar de minha Tia Luzia Cândida Ferreira de Almeida Dias, irmã de meu Pai, nascida em São Sebastião do Rio Preto em 5 de junho de 1917. Quer dizer que estrondeava  na Europa a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e antes de terminá-la, adentrava os céus as trombetas  da Revolução Russa (1917-1924). Sem estudar, sem ler, sem ouvir, Tia Luzia contava casos e causos das guerras e revoluções como se ela estivesse a um rio distante da Europa. Ela era casada com Francisco Dias de Azevedo, o Chico do Padre, com quem teve os filhos José Flávio, Mundica (in memoriam), Maria das Graças e Goreti. Viveu 81 anos, muitos dos quais acometida por terríveis crises asmáticas, as quais enfrentou sem a mínima transparência de sofrimento, talvez distraída pelo entusiasmo ao fazer comunitário.

É bom dizer também que ela tinha os olhos incrivelmente azuis, como o meu Pai. Também como Tãozinho do Godó, sofreu impropérios e humilhações por causa desse hoje considerado privilégio físico, com o fundo do mar desenhado no  rosto. No tempo de sua infância e juventude ela era repudiada como um gato angorá de telhado e caçador de ratos em horas vagas. Veja só. Hoje os olhos azuis são o requinte de uma raça selecionada como as mais belas do planeta. Aí está o “ver a Idade Média com os olhos da Idade Média”. E minha Tia Luzia resumia assim um retrato das nobres inteligências de seu tempo, embora com o seu curso primaríssimo apenas, nem um passo a mais na escola, pois nunca saiu de seu arraial.

Uma mulher de cultura avançada. Uma criatura que enxergava o belo e o que faz bem para além da vida e para além da morte. Sem protocolos, ela criou ao seu redor uma sociedade que caracterizou a vocação cultural de sua terra. Enquanto o pai, Godofredo Cândido D’Almeida, liderava os benefícios  que marcaram o estilo das características são-sebastianenses — fornecia luz e água para todo o povo, mantinha uma banda de música criada por seus avós, executava obras marcantes, como proteção de muros, construção de pontes — Luzia criava manifestações artísticas inéditas no seu tempo.  Além de incentivo a marujos, ela idealizou e tirou não sei de onde a manifestação dos Caboclinhos, vejam que fato estupendo! E sobressaiu-se em tudo o teatro.

Caboclinhos era um grupo de jovens  vestido de índios que protagonizava uma dança folclórica. Hoje se vê que fazia parte do Carnaval de Pernambuco no tempo do Brasil Colônia. Os moços vestidos de aborígenes saíam  com vistosos cocares, adornos de pena na cinta e com uma flecha davam o tom da musicalidade, do ritmo e da dança. Esses belos enfeites chamavam a atenção entre os marujos por reluzir de forma destacada nas ruas da Vila. Joaquim Ribeiro Costa, em seu livro “Conceição do Mato Dentro, fonte da saudade”, até hoje disponível em livrarias de Belo Horizonte, narra as epopéias dos Caboclinhos em São Sebastião do Rio Preto, então distrito conceicionense.

Com o tempo, desapareceram essas manifestações das ruas de São Sebastião, mas a incansável Luzia não parava de dedicar sua vida à comunidade. Nos meus tempos de criança me lembro de sua total doação ao teatro, suas múltiplas e inexplicáveis funções para organizar as peças, convidar os participantes, convencê-los a aceitar o desafio,  dar a cada um o seu papel e, finalmente, mostrar os seus sonhos. Ela tinha, inicialmente, que escrever a história com a fala dos personagens, mostrar a todos como fazer o papel, ensiná-los  a falar de acordo com esse papel, passar o objeto da fala a cada personagem num prazo que fosse o suficiente para o personagem decorar, vesti-los de acordo com o conveniente e conseguir a roupagem de cada um, dirigir as falas, enfim, ser tudo em cada etapa do trabalho feito com amor.

De seus escritos que me chegaram às mãos (uma das últimas ações que consegui com a prima Mundica pouco antes de seu falecimento, um fato incrível),  obtive retalhos de manuscritos dela de uma peça chamada “A violência e a fraternidade”. Que fantástico! Ano de 1950, nem estradas de carro dignas e transitáveis havia nas redondezas, o único meio de comunicação com o mundo eram os  aparelhos de  rádio do Serafim e do pai do Geraldo Basílio, jornais chegavam com atraso e a eles era difícil o acesso. Por seu lado, expressões como “fraternidade” em contraposição a “violência” não eram algo que provocava  uma consciência coletiva. A inexplicável  Luzia  tinha ao seu dispor os mensageiros que iam a cidades mais adiantadas, como Belo Horizonte, Itabira, Sabará e outras, além de alguns minutos  no rádio ouvindo novelas ou histórias de assombrações na Rádio Tupi do Rio de Janeiro, a exemplo de “Incrível, Fantástico, Extraordinário”.

E ela deixou outras pérolas, como a comédia “A Fazendeira”, em que conta fatos de relacionamento patrão com escravos, convivência de familiares, com humor e muito da cultura na época de sua particular idade média. Há também nos seus manuscritos uma outra comédia, “A Fofoqueira” e uma “Representação Dramática do Natal” em que ela mostra religiosidade versus materialismo, uma previsão bem profética da transformação da festa maior da cristandade, hoje mais um acontecimento quase que somente comercial.

Numa de suas peças sem título, folhas de papel que voaram e que nos tempos passados não se encontrava quem as valorizasse, ela deixou escrito praticamente todo o seu drama vivido para falecer, em 1º de junho de 1998, em sua casa. Internada em hospitais da região, ela esboçou uma milagrosa recuperação e recebeu alta em Passabém. Retornou para São Sebastião, despediu-se de todos para o seu recolhimento solitário, viveu os tais momentos íntimos e terríveis pré-agônicos e faleceu na calada da noite. Ela escreveu, quatro décadas antes, numa peça teatral,  um debate de uma velha com um médico e garantiu a ele textualmente, contradizendo as recomendações médicas: “Vou pra minha casa morrer lá”. E foi o que aconteceu na vida real da Tia Luzia.

Imaginem agora: estou falando de meu Pai do seu centenário de nascimento, e me alongo na querida Tia Luzia. Teria que me referir a ele, mas me justifico: grande parte  da tonalidade que têm as informações eram da análise exatamente dele, do seu irmão legítimo e total, irmão em olhos lindos e sofredores. Na prática, irmão e irmã combinavam como gêmeos, sem atropelos no dia a dia. Havia, no entanto, instantes em que se batiam e se debatiam de frente: quando Tia Luzia inventava  beber o seu conhaque ou a sua dose de cachaça. Aí era mostrado  tudo aquilo que o Tãozinho do Godó detestava. Eram coisas de irmãos que se amavam, justifico.

Alguém poderia perguntar se eu participava de suas peças teatrais. Sim e não é a resposta. De tanto ela insistir, aceitei uma participação. E me fizeram  rei numa cena que considerei grotesca, uma majestade que chegava para se casar com uma linda princesa, personagem principal do enredo. Peça cantada, eu apenas cheguei de coroa e bastão, além das vestimentas de cores intensas como azul e vermelho e os tecidos de seda e veludo. De saia,  completo, adentrei  o palco aplaudido pelas professoras e cantineiras  e zombado pelas turmas de colegas, amigos e inimigos de escola.  Durante o ato, que durou alguns minutos de cantarola, corei o rosto como um índio de urucum no rosto. Depois da peça, arranquei a vestimenta e saí chorando tal qual um desesperado, transfigurando-me. E nunca mais aceitei ser um ator nem da Tia Luzia nem do mundo artístico, apenas da vida real.

Tia Luzia e o neto Tiago

Sem nunca deixar de mencionar que a Tia Luzia foi presidente por muitos anos do Clube das Mães de São Sebastião do Rio Preto, por meio da qual entidade se ligava às campanhas e movimentos em prol da sociedade de um modo geral. Ela tomava a frente de cantorias na igreja, em serestas e sempre participava de movimentos comunitários na Vila. 

Antes de concluir, pensei que deveria contar que escrevi uma peça de teatro para que Tia Luzia colocasse em ação. A história é longa, vou tentar resumir. O texto recebeu o nome de “Juízo Final”. Tinha eu dez anos, estava na quarta série primária, era o ensino fundamental de hoje. Ela pegou os meus escritos e resolveu, advertida por alguém que não fiquei sabendo quem,  mostrar ao Padre Raul, o rei do arraial na época, denominado pároco local. O padre leu e  recolheu os escritos, colocou debaixo do braço, atravessou a ponte, entrou na loja do Tãozinho do Godó  e o apresentou a ele o seu filho como o  demônio do momento. A peça foi rasgada inexoravelmente por um dos dois, entrei numa surra de chicote e cabresto, passei um dia ajoelhado na sala de visitas de minha casa e o padre me presenteou com suspensão de dois meses da Congregação Mariana, além de igual tempo para ser coroinha e de receber o sacramento da  comunhão. Conclusão: afastei-me da igreja por um bom tempo e cheguei a amar desenfreadamente o ateísmo, única saída para a minha cabeça de criança. Mas meu Pai chamou Tia Luzia e disse a ela: “Todos erramos, agora cuide dele”.

E a querida e inesquecível tia me curou pela metade. Seu filho e meu primo José Flávio era o carona de seus conselhos. Disse meio a meio foi a cura. E foi também, graças a Deus, quando aprendi, nas suas falas, uma iniciação à educação moral e sexual, pois somente ela quem me ensinou como nascem as crianças. Saudades dela e do meu Pai.

2 comentários:

  1. Muito emocionante....choro, risos, e muitas gargalhadas...obrigada primo por trazer a minha memoria: belas, doces e inesqueciveis momentos com a vovo...meu coracao bate "ofegante" de tanto amor por ela ♡ Ana Paula ♥

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