Desculpem-me os cultos e inteligentes que não estudaram
metodologia da história, tenho que fazer um lembrete: uma das lições mais úteis
que aprendi no curso de História ocorreu no primeiro dia de aula. Disse de bom
tom que o povo da Idade Média era muito atrasado. Quis declarar, conseguintemente,
que Pré-História, Antiguidade, até mesmo a Idade Moderna e quase todo o período
contemporâneo neles o atraso metia medo.. Minha sorte foi que a professora
Márcia Ferreira, que deu o show de aula
mais inesquecível que tive naquele ano na Funcesi, em Itabira, soltou um berro desses de fazer tremer as
pedras do Córrego Seco. E, mais assustado que meus colegas, tremi em cima dos
sapatos. Outra sorte pelo grito que vazou nas paredes da faculdade foi que
nunca mais precisei que alguém me fizesse não entender a história como deve ser
tratada. Cada tempo no seu tempo.Mais adiante, no curso, aprendi a frase que
sintetiza tudo: “Ver a Idade Média com os olhos da Idade Média”.
Fiz esse preâmbulo apenas para falar de minha Tia Luzia Cândida
Ferreira de Almeida Dias, irmã de meu Pai, nascida em São Sebastião do Rio
Preto em 5 de junho de 1917. Quer dizer que estrondeava na Europa a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918) e antes de terminá-la, adentrava os céus as trombetas da Revolução Russa (1917-1924). Sem estudar, sem ler, sem ouvir, Tia Luzia contava casos e causos das guerras e revoluções como se ela estivesse a um rio distante da Europa. Ela era
casada com Francisco Dias de Azevedo, o Chico do Padre, com quem teve os filhos
José Flávio, Mundica (in memoriam), Maria das Graças e Goreti. Viveu 81 anos,
muitos dos quais acometida por terríveis crises asmáticas, as quais enfrentou
sem a mínima transparência de sofrimento, talvez distraída pelo entusiasmo ao
fazer comunitário.
É bom dizer também que ela tinha os olhos incrivelmente azuis,
como o meu Pai. Também como Tãozinho do Godó, sofreu impropérios e humilhações por
causa desse hoje considerado privilégio físico, com o fundo do mar desenhado
no rosto. No tempo de sua infância e
juventude ela era repudiada como um gato angorá de telhado e caçador de ratos
em horas vagas. Veja só. Hoje os olhos azuis são o requinte de uma raça
selecionada como as mais belas do planeta. Aí está o “ver a Idade Média com os
olhos da Idade Média”. E minha Tia Luzia resumia assim um retrato das nobres
inteligências de seu tempo, embora com o seu curso primaríssimo apenas, nem um passo a mais na escola, pois nunca saiu de seu arraial.
Uma mulher de cultura avançada. Uma criatura que enxergava o
belo e o que faz bem para além da vida e para além da morte. Sem protocolos,
ela criou ao seu redor uma sociedade que caracterizou a vocação cultural de sua
terra. Enquanto o pai, Godofredo Cândido D’Almeida, liderava os benefícios que marcaram o estilo das características
são-sebastianenses — fornecia luz e água para todo o povo, mantinha uma banda
de música criada por seus avós, executava obras marcantes, como proteção de
muros, construção de pontes — Luzia criava manifestações artísticas inéditas no
seu tempo. Além de incentivo a marujos,
ela idealizou e tirou não sei de onde a manifestação dos Caboclinhos, vejam que
fato estupendo! E sobressaiu-se em tudo o teatro.
Caboclinhos era um grupo de jovens vestido de índios que
protagonizava uma dança folclórica. Hoje se vê que fazia parte do Carnaval de
Pernambuco no tempo do Brasil Colônia. Os moços vestidos de aborígenes saíam
com vistosos cocares, adornos de pena na cinta e com uma flecha davam o
tom da musicalidade, do ritmo e da dança. Esses belos enfeites chamavam a atenção entre os marujos por
reluzir de forma destacada nas ruas da Vila. Joaquim Ribeiro Costa, em seu
livro “Conceição do Mato Dentro, fonte da saudade”, até hoje disponível em
livrarias de Belo Horizonte, narra as epopéias dos Caboclinhos em São Sebastião
do Rio Preto, então distrito conceicionense.
Com o tempo, desapareceram essas manifestações das ruas de São
Sebastião, mas a incansável Luzia não parava de dedicar sua vida à comunidade.
Nos meus tempos de criança me lembro de sua total doação ao teatro, suas
múltiplas e inexplicáveis funções para organizar as peças, convidar os
participantes, convencê-los a aceitar o desafio, dar a cada um o seu papel e, finalmente,
mostrar os seus sonhos. Ela tinha, inicialmente, que escrever a história com a
fala dos personagens, mostrar a todos como fazer o papel, ensiná-los a falar de acordo com esse papel, passar o
objeto da fala a cada personagem num prazo que fosse o suficiente para o personagem decorar,
vesti-los de acordo com o conveniente e conseguir a roupagem de cada um,
dirigir as falas, enfim, ser tudo em cada etapa do trabalho feito com amor.
De seus escritos que me chegaram às mãos (uma das últimas ações
que consegui com a prima Mundica pouco antes de seu falecimento, um fato
incrível), obtive retalhos de
manuscritos dela de uma peça chamada “A violência e a fraternidade”. Que
fantástico! Ano de 1950, nem estradas de carro dignas e transitáveis havia nas
redondezas, o único meio de comunicação com o mundo eram os aparelhos de
rádio do Serafim e do pai do Geraldo Basílio, jornais chegavam com
atraso e a eles era difícil o acesso. Por seu lado, expressões como
“fraternidade” em contraposição a “violência” não eram algo que provocava uma consciência coletiva. A inexplicável Luzia
tinha ao seu dispor os mensageiros que iam a cidades mais adiantadas,
como Belo Horizonte, Itabira, Sabará e outras, além de alguns minutos no rádio ouvindo novelas ou histórias de
assombrações na Rádio Tupi do Rio de Janeiro, a exemplo de “Incrível,
Fantástico, Extraordinário”.
E ela deixou outras pérolas, como a comédia “A Fazendeira”, em
que conta fatos de relacionamento patrão com escravos, convivência de
familiares, com humor e muito da cultura na época de sua particular idade
média. Há também nos seus manuscritos uma outra comédia, “A Fofoqueira” e uma
“Representação Dramática do Natal” em que ela mostra religiosidade versus
materialismo, uma previsão bem profética da transformação da festa maior da
cristandade, hoje mais um acontecimento quase que somente comercial.
Numa de suas peças sem título, folhas de papel que voaram e que
nos tempos passados não se encontrava quem as valorizasse, ela deixou escrito
praticamente todo o seu drama vivido para falecer, em 1º de junho de 1998, em
sua casa. Internada em hospitais da região, ela esboçou uma milagrosa
recuperação e recebeu alta em Passabém. Retornou para São Sebastião,
despediu-se de todos para o seu recolhimento solitário, viveu os tais momentos
íntimos e terríveis pré-agônicos e faleceu na calada da noite. Ela escreveu,
quatro décadas antes, numa peça teatral,
um debate de uma velha com um médico e garantiu a ele textualmente,
contradizendo as recomendações médicas: “Vou pra minha casa morrer lá”. E foi o
que aconteceu na vida real da Tia Luzia.
Imaginem agora: estou falando de meu Pai do seu centenário de
nascimento, e me alongo na querida Tia Luzia. Teria que me referir a ele, mas
me justifico: grande parte da tonalidade
que têm as informações eram da análise exatamente dele, do seu irmão legítimo e
total, irmão em olhos lindos e sofredores. Na prática, irmão e irmã combinavam
como gêmeos, sem atropelos no dia a dia. Havia, no entanto, instantes em que se
batiam e se debatiam de frente: quando Tia Luzia inventava beber o seu conhaque ou a sua dose de
cachaça. Aí era mostrado tudo aquilo que
o Tãozinho do Godó detestava. Eram coisas de irmãos que se amavam, justifico.
Alguém poderia perguntar se eu participava de suas peças
teatrais. Sim e não é a resposta. De tanto ela insistir, aceitei uma
participação. E me fizeram rei numa cena
que considerei grotesca, uma majestade que chegava para se casar com uma linda
princesa, personagem principal do enredo. Peça cantada, eu apenas cheguei de
coroa e bastão, além das vestimentas de cores intensas como azul e vermelho e
os tecidos de seda e veludo. De saia,
completo, adentrei o palco
aplaudido pelas professoras e cantineiras e zombado pelas turmas de colegas, amigos e
inimigos de escola. Durante o ato, que durou
alguns minutos de cantarola, corei o rosto como um índio de urucum no rosto.
Depois da peça, arranquei a vestimenta e saí chorando tal qual um desesperado,
transfigurando-me. E nunca mais aceitei ser um ator nem da Tia Luzia nem do
mundo artístico, apenas da vida real.
Tia Luzia e o neto Tiago |
Sem nunca deixar de mencionar que a Tia Luzia foi presidente por
muitos anos do Clube das Mães de São Sebastião do Rio Preto, por meio da qual
entidade se ligava às campanhas e movimentos em prol da sociedade de um modo
geral. Ela tomava a frente de cantorias na igreja, em serestas e sempre
participava de movimentos comunitários na Vila.
Antes de concluir, pensei que deveria contar que escrevi uma
peça de teatro para que Tia Luzia colocasse em ação. A história é longa, vou
tentar resumir. O texto recebeu o nome de “Juízo Final”. Tinha eu dez anos,
estava na quarta série primária, era o ensino fundamental de hoje. Ela pegou os
meus escritos e resolveu, advertida por alguém que não fiquei sabendo
quem, mostrar ao Padre Raul, o rei do
arraial na época, denominado pároco local. O padre leu e recolheu os escritos, colocou debaixo do
braço, atravessou a ponte, entrou na loja do Tãozinho do Godó e o apresentou a ele o seu filho como o demônio do momento. A peça foi rasgada
inexoravelmente por um dos dois, entrei numa surra de chicote e cabresto,
passei um dia ajoelhado na sala de visitas de minha casa e o padre me
presenteou com suspensão de dois meses da Congregação Mariana, além de igual
tempo para ser coroinha e de receber o sacramento da comunhão. Conclusão: afastei-me da igreja por
um bom tempo e cheguei a amar desenfreadamente o ateísmo, única saída para a
minha cabeça de criança. Mas meu Pai chamou Tia Luzia e disse a ela: “Todos
erramos, agora cuide dele”.
E a querida e inesquecível tia me curou pela metade. Seu filho e
meu primo José Flávio era o carona de seus conselhos. Disse meio a meio foi a
cura. E foi também, graças a Deus, quando aprendi, nas suas falas, uma iniciação à educação moral e sexual, pois somente ela quem me ensinou como nascem as
crianças. Saudades dela e do meu Pai.
Muito emocionante....
ResponderExcluirMuito emocionante....choro, risos, e muitas gargalhadas...obrigada primo por trazer a minha memoria: belas, doces e inesqueciveis momentos com a vovo...meu coracao bate "ofegante" de tanto amor por ela ♡ Ana Paula ♥
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