José Cândido Ferreira de Almeida, conhecido como Zezé do Godó,
ou mais resumidamente, Zezé Godó, era o irmão mais velho, exatamente dois anos,
de meu Pai., Tio Zezé era totalmente diferente em gênio e método de vida,
embora com o mesmo senso de religiosidade. Meu Pai, nervoso; meu Tio,
infinitamente calmo; meu Pai, metódico: tudo era escrito, anotado; Tio Zezé,
nada formal, tudo com mais descontração.
Em sua autobiografia inacabada, Tãozinho do Godó escreveu:
“Casei-me com Itália Sana de Almeida no dia 30 de outubro de 1943, data de
aniversário de meu sogro, Serafim Sanna. Um de meus padrinhos seria o mano Zezé
que, no entanto, não pôde comparecer por problema de saúde. Substitui-o o
cunhado Chico do Padre, irmão do Padre Argel, que celebrou o ato”. Durante toda
a vida, Tio Zezé carregou um caso sério de saúde que, na época, quase não se
comentava do mal: o diabetes. Ele tinha uma ferida na perna que nos deixava em
compaixão constante porque nunca se
curava.
Sobre o casamento, curiosamente, anos depois, minha Mãe me
revelava: “O Padre Argel me disse para não me casar com o Tãozinho porque,
segundo ele, era muito nervoso; mas eu não liguei para isso”. A característica
de nervosismo de meu Pai o acompanhou a vida inteira. Acredito até que
antecipou a sua morte, aos 75 anos. A verdade, porém, neste tema particular não
há a mínima lógica: Tio Zezé, mais calmo, mais cordato, viveu 64 anos. No dia
do falecimento dele, meu Pai acompanhou o féretro sozinho, seguindo o esquife,
a que segurou com as mãos; de volta do cemitério, chegou à nossa casa, chamou
os filhos que estavam por perto e anunciou: “O próximo serei eu”. Tremi em cima
dos sapatos diante de sua premonição. Foi mesmo o imediato, embora tenha levado
13 anos o tempo de ocorrer.
Tio Zezé, casado com Semírames Duarte, com ela teve também, a
exemplo de Tãozinho e Itália, um monte de filhos: Sebastião, Maria Geralda,
Dezinho, Godofredo, Maria Cândida ou Dalia, Marta, Inês (in memoriam),
Madalena, Tarcísio, Marília e Clara. Sua esposa, Tia Ninita, como todos a conhecem, foi
professora destacada na Vila. Quando meu Pai me autorizava a passar o dia na
casa dela e brincar com os primos, registrava uma séria recomendação: “Vá, mas
leve os cadernos”. O que ele queria dizer era o seguinte: “Estude com a melhor
professora que existe.” Ela chamava a turma na hora do café e aplicava uma aula
particular. Mas a ida àquela
casa, para mim tinha mais um objetivo: Tio Zezé fabricava e engarrafava soda
limonada. Sobravam alguns copos para todos nós. Que delícia!
Enquanto criança, tive uma afinidade muito grande com Tio Zezé. Ele
se assentava no passeio de sua casa e ali passava os fins de tarde.
Filosofando, na sua calma tocante, dizia
sempre a mim: “Olha, se eu ganhar na loteria, compro um relógio para a
nossa igreja e uma bicicleta para você”. Tanto ele repetiu que levei a sério e
comecei a torcer e rezar para que faturasse a loteria. Não sei se para repetir
sempre a promessa, ele me chamava para conversar. Gostava de contar as suas
histórias. Assim era com outras crianças, filhos dele e de amigos.
Meu pai, todas as noites, reunia os filhos para rezar o terço. E
pedia a cada um de nós que puxasse um “mistério” ou dez ave-marias. No final da reza, cada um era instigado a
fazer um pedido, rogar a favor de alguém, caso precisasse em caso específico,
como viagem, doença, casamento etc. Certa noite, de tanto rezar para a riqueza
de meu Tio, coloquei para fora o sonho. Bradei, em voz alta, uma súplica até
certo ponto esdrúxula: que o Tio Zezé
ganhasse na loteria. Aí, o meu Pai interrompeu as orações: “Por que você está
fazendo esse pedido engraçado, meu filho?” Respondi na ponta da língua: “Ele
vai ganhar e comprar um relógio para a igreja e uma bicicleta para mim”. Meu
Pai e todos riram. Tãozinho concluiu: “Olha, o seu tio nunca comprou um bilhete
de loteria”. No dia seguinte, contei o fato para o Tio Zezé, que riu sem parar.
Na adolescência, comprei uma briga com ele, incrível, me
arrependi, mas foi verdade. Como sempre fazíamos em turma, roubávamos galinha
de muitos e muitos galinheiros da Vila. Na casa do Tio Zezé, as galinhas se
empilhavam em pés de manga e viviam às centenas, praticamente intocáveis. Sempre e sempre éramos surpreendidos pelo Tio
Zezé e o Dezinho, os quais chegavam com lamparina na mão. No entanto, nos
poupavam, não nos faziam mal. Mas a galinha a gente levava de qualquer jeito.
Havia alguns donos que usavam armas de fogo para espantar os ladrõezinhos. Numa
dessas aventuras, Zé Flávio levou um tiro na perna e até hoje cultiva uma bala
22 na panturrilha direita.
Como consequência dessas idas ao galinheiro, acabou que nos
desentendemos. Não ele comigo, mas eu com ele e, certa vez, eu com alguns
primos. Felizmente, a rixa não avançou para os tempos seguintes. No fim da
minha adolescência, reconheci meus erros e, seguindo o exemplo de meu Pai, que
escrevia sempre às pessoas, seja para cobrar contas ou resolver qualquer
assunto, lavrei uma carta explicativa a todos os meus ofendidos “inimigos” e
pedi-lhes desculpas. A influência de meu Pai nisso não era apenas pela
comunicação escrita, mas também o gênio
do arrependimento. Que gratidão tenho a ele por me dar nos exemplos e no DNA
esse senso de amor, justiça, humildade.
Das melhores recordações em família, vale retornar ao tempo da
Banda do Godó. Recheada de netos, filhos e amigos, a corporação musical, criada
pelos avós do meu Avô, era tradicional. No tempo de nossa infância, fomos
conduzidos a aprender música. Seu Godó contratou o maestro José Afonso de
Vasconcelos, vindo de Morro do Pilar, para ensinar a meninada. A Banda do Godó
foi rapidamente formada e tinha plena hegemonia na região, éramos chamados a
vários lugares para abrilhantar festas religiosas. Tio Zezé no Baixo, meu Pai
na Requinta, Sebastião e eu no Bombardino, Carlos, Dezinho, Zé Flávio,
Godofredo, cada um no seu Trombone ou Sax. E outros grandes músicos, como
Alexandre, Otávio, Marçal, Francisco Gomes de Lima, Jovino, Airton Morais,
Afrânio e outros.
Nesse doce ambiente musical e sadio formamos uma família grande e abençoada.
Engraçado, hoje medito sobre o relacionamento de Tio Zezé com o meu Pai: nunca
os vi se divergirem em algum fato. Seria normal se com o meu Avô fosse a mesma
coisa. Pai e filho, Godó e Tãozinho, trocavam bons bilhetes quase sempre quando tinham que
resolver alguma pendenga. Meu Pai, respeitoso, mesmo assim não deixava de protestar, sempre por escrito
contra algum ato do velho Godó. Pelo menos não havia barulhada.
O dia em que Tio Zezé partiu para o outro lado da vida, chorei
como um filho dele, senti que perdi um segundo Pai. Das alegrias que nos
proporcionou, da paciência que tinha contando os causos engraçados e de seu recíproco respeito ao irmão Tãozinho,
aprendi muitas lições para a vida. Se não aproveitei ou deixo de aproveitar, paciência,
que a vida continua, ainda chego lá.
Festa em SSRP, 1955, Zezé e Tãozinho na Banda do Godó |
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