O ser humano tem que ser
transparente. Sua alma precisa mostrar seus defeitos e suas virtudes. Ninguém
deve esconder os sentimentos. O pensamento, quanto mais alto sair de nosso
íntimo para a boca, melhor. Segredos só para a maldade, a birra, a perversidade,
a iniquidade. Assim pensava Sebastião Cândido Ferreira de Almeida, o Tãozinho
do Godó, também conhecido pelos íntimos como um perfeccionista. Se era
perfeito, acredito que não; mas que teimava em sê-lo, tenho absoluta certeza que
sim.
Maria Jacinta, sua irmã mais velha, era para ele um modelo de
personalidade. Ela sofrera um terrível baque na vida. Na sua adolescência, a dor indefinível lhe agrediu a
alma. Foi o seguinte: ela levava uma irmã de 11 anos para o engenho que ficava
do lado de lá do córrego, no fundo da casa-fazenda do Godó. O córrego não era o
de hoje, mas, sim tão caudaloso quanto o Rio Santo Antônio. Havia uma pinguela no meio
do caminho. A menina, cujo nome prometo revelar em outra ocasião, caiu da
pinguela. Maria Jacinta não a alcançou e ela se foi, só resgatada sem vida,
mais tarde, pelos empregados e agregados do complexo do Godó.
Agora, imaginem o que se passou na pequena vila. Reflitam sobre o desespero do
meu Vô Godó, que já tinha sinais fortes de arrebatamento em seu espírito, e o sofrimento de minha Vó Sinhá, uma mulher
admirada por todo o povoado. Ponto. Não vou falar mais nisto, por
enquanto. Só vou lembrar que uma
adolescente de 15 anos, minha tia, carregou na vida um drama interno e que
guardava somente para si. E não sei por que cargas d’água, o fato ficou
totalmente esquecido para as gerações seguintes. Houve um silêncio sepulcral
lançado para o futuro.Somente há dois anos fiquei sabendo do fato.
Tia
Jacinta, profissão costureira (costurava para fora, como dizem nas
cidadezinhas) era casada com o oficial do cartório local Noé
Augusto de Souza e não teve filhos. Talvez por causa disso, se dedicou
muito
aos sobrinhos. Para se ter uma ideia, ela criou a nossa prima Raymunda
Almeida
Dias, a Mundica, que nos deixou há poucos dias. E nos afagava com muito
carinho. Também implicava com os nossos defeitos. Certa vez, contrariada
com as
minhas peraltices de adolescente, invadiu meu quarto onde me enxugava
depois do
banho. Pegou a minha toalha e me bateu com ela enroscada.
Depois desse, só vou contar outro fato que marcou a vida de meu
Pai com ela e a minha própria existência no meio para ser testemunha e réu ao mesmo tempo. A triangulação serve para
garantir um episódio inédito na história do Tãozinho do Godó. Foi no dia em que
ela me bateu com uma toalha que, a seguir, meu pai adentrou também o quarto. Eu
resmungava e não me conformava em ser maltratado. Enquanto meu Pai seguia na
admoestação, eis que cobrei dele: “Olha,
o senhor disse que só posso apanhar do senhor e da Mamãe, agora deixa uma tia
me bater?” Ele retrucou energicamente e me deu a seguinte resposta: “Sua Tia
Jacinta é uma santa e temos que aceitar o que ela faz; tudo o que ela faz vem de Deus”.
Aceitei, é claro. Já havia pensado nisso, apesar de tudo, mesmo
um pouco cético àquela altura do tempo. E guardei aquelas palavras, decorando “santa” para sempre. Um dia estava em Belo
Horizonte desempregado, ano de 1965, quando vem a Tia Jacinta aparecer de novo em
meu caminho. Abro um parênteses para informar que o desemprego dos anos 1960
era o que mais massacrou a minha geração. José Flávio, de quem já falei, era o
meu primo-colega de vagabundagem na capital dos mineiros. Durante o dia,
saíamos atrás de uma vaga em algum lugar e à noite nos encontrávamos no centro
da boemia para as nossas aventuras, atrás do que comer e beber. Fecho o parênteses.
E foi assim: José Flávio
tinha arrumado um plantão numa empresa de ônibus. Ele era o manobrista na
garagem, depois o ronda. Encontramo-nos na rua Guaicurus, onde, segundo Roberto
Drummond, em Hilda Furacão (livro e filme), Belo Horizonte acontecia nas
madrugadas. Apareceu o peralta aos gritos e berros diante de mim, me agredindo
com uma notícia assustadora e massacrante: “Tia Jacinta morreu!” Nada retruquei,
não tinha uma sílaba para soltar, só me bambeei da cabeça aos pés, sentei-me no meio-fio e comecei a chorar. Tive saudade
imensa dos pitos e raios, dos puxões de orelha dolorosos que sofria e, com
destaque, daquele dia em que me espancou
com uma toalha de banho enrolada como um rocambole.
Em seguida, José Flávio me deixou só na Avenida Santos Dumont e
se dirigiu ao emprego que era apenas um “bico”, um quebra-galho. Continuei na solidão
de uma amargura comum em todas as
noites, desta vez incomum por causa da
morte inesperada da tia. Com fome e
sentindo frio, só tinha duas coisas pela frente: a noite de BH e a fome em BH.
Andando a esmo pela
avenida, de repente assentei-me de novo, lembrei-me das palavras do meu Pai:
“Sua tia é uma santa”. E, então, não querendo colocar no paredão da vida a
santidade de Tia Jacinta, mas acreditando com todas as forças de que naquele
dia tinha partido para o Além uma Serva de Deus, fiz uma oração cheia de muita
fé por ela. E apelei a ela com o seguinte pedido: “Mate minha fome, minha Tia!”
Estava em frente uma empresa comercial que era fornecedora da loja de meu Pai.
Abri os olhos, levantei-me do meio-fio e...
... de repente, olhei para o chão e lá estava um pequeno pacote.
Afoito, apertei-o contra o peito. Ninguém perto de mim, a madrugada já entrara
para mais horas de agonia que me assolaram durante quase dois anos. A avenida
completamente erma, tomada de um paradeiro próprio daquele horário. Desatei o maço e constatei sofregamente que
era mesmo dinheiro. Que é isso? Dinheiro
vindo do Céu?. Olhei, pasmo, e chorei de novo, agora mais copiosamente do que
antes. Não podia acreditar naquilo que estava acontecendo. Era um atendimento ao pedido que acabara
de fazer. Não tive dúvida nenhuma.
Saí em desabalada correria no rumo da Rua do Bonfim reencontrar o meu primo. Ele me
recebeu de olhos arregalados, fez o “Nome
do Pai”, agradeceu à Tia Jacinta, encerrou o expediente e seguiu para jantar comigo
no Restaurante Santos Dumont. Antes de pedir o chamado “prato sortido” (arroz,
bife, ovos, salada, tropeiro) contamos a grana do pacote, com valor suficiente
para comer, beber, dormir e até vestir-se durante um mês. Até paguei um mês de
aluguel adiantado no Bairro Coração de Jesus, onde dormíamos num quarto
acanhado e sem banheiro.
É claro que tive pena de quem perdeu aquele pacote de notas,
mas conclui de mim para mim que não
estava fazendo falta a ninguém, já que me apareceu por obra e arte sagradas.
Estava, para José Flávio e eu, naquela madrugada, ou naquele dia, canonizada
uma santa de minha família, a inesquecível Tia Jacinta.
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