sábado, 7 de junho de 2014

A BANDA DO GODÓ (1)

— Lá vem a Furiosa...
— E lá vem a Banda do Godó...
Contam que, quando as duas se encontravam, tudo podia acontecer. Mas quando vinham, também, as marujadas do Engenho, Cauís e Banqueta, e, ainda mais, os Caboclinhos da Luzia do Chico do Padre, a paz reinava porque a barulhada era infernal. Os foguetes completavam a zoeira. Imperava o ambiente ensurdecedor de cada um arrancar seus tímpanos. Isso inibia qualquer possibilidade de realização de uma luta armada entre a Banda do Marciano e a Banda do Godó , lendárias rivais.

Agora entro no páreo da Banda do Godó, que é, em parte, do meu tempo. Dela participei nas décadas de 1950, 60 até 70. De 8 ou 9 a quase 30 anos de idade. Alguém pergunta: “— Desde quando existe a Banda do Godó?” — E a resposta sai muito vaga, quase não sai. Faz parte de minha pesquisa encontrar o tempo exato de início de funcionamento dessa riqueza cultural que preenche bons capítulos da história de nossa terra. Já chegamos aos anos do Cônego Manoel Ferreira Madureira, no final do século XIX. Naquela alcançável época, era o dono da corporação musical o meu bisavô José Francisco de Almeida Leite, conhecido como Zé Grande, que aparece numa foto de 1923, em que estão ainda meu pai, com 9 anos, Tio Zezé, com 11 e o Vô Godó já quarentão.

Na época extravagante da chegada da imagem do “santo” protetor de meu Avô, São Godofredo, exatamente em 1923, segundo narrativa do saudoso José Lucas Ferreira, o Zezé de Dona Maricas do Sótão do Padre (reparem que as pessoas tinham os nomes ligados às suas origens), a Banda do Zé Grande começava a funcionar e, então, arrastava a família Almeida. Nasceu ao lado dela, no antigo arraial do Porto, a seis quilômetros, a Furiosa, Banda de Música do Marciano Moura. Mais tarde, inimigos entre si, Godó e Marciano cuidavam em curtir as suas rixas ao som de dobrados, marchas e valsas, quando marujadas, caboclinhos e foguetes não fechavam os ouvidos da multidão.

Quando tinha meus 8 pra 9 anos, chegava a São Sebastião o maestro José Afonso de Vasconcelos, vindo de Morro do Pilar, contratado por Godofredo Cândido D’Almeida para ensinar música aos meninos (naqueles tempos, não se admitiam meninas tocando em bandas de música)

Esta a Banda do Zé Grande, pai de Seu Godó, em 1923
Carlos, meu irmão de um ano de deiferença e eu entramos para as aulas. O maestro, gente boa, criou uma certa antipatia por mim e o primo Zé Flávio, não tanto porque éramos sapecas, mas no meu caso porque fazia parte do lado chamado de “rico” dos netos do Godó. Zé Flávio tinha a marca de encapetado também, porque nascera assim. 

No dia de fazer exames dos alunos da banda que teriam um instrumento, Carlos e eu levamos “bomba”. O maestro, ao me avaliar, disse ao meu ouvido: “São poucos os instrumentos da banda e seu pai pode comprar pra você”. E comprou mesmo: um trombone para o meu irmão e um bombardino que me acompanha até hoje, embora mudo a esta altura, guardado como uma relíquia valorosa Para retribuir “gentileza” do Zé Afonso, colocamos um ratinho ainda vivo dentro de seu saxofone. Foi um “Deus nos acuda”. Todo mundo gostou, menos ele, é claro. E como não conseguiram descobrir os autores da trapalhada, enfiamos outro rato (havia ratazanas sobrando na velha casa) no Pé de Mamão do nosso Vô, que tinha um título e medalhas concedidos pelo governo como coronel. No seu dia a dia, Zé Afonso trabalhava incansavelmente, compondo peças musicais antológicas, algumas que até hoje são lembradas, como Saudade de São Sebastião, o nosso hino, e o dobrado Padre Raul de Melo. Esse era o tempo que na minha extensa e  privilegiada, memória, modéstia à parte, denomino belle époque.


E a banda prosperou. E com tanta energia que não pode ser sustentada para sempre. Tinha um cartaz de boa fama na região. Assim chegou o dia da grande prova para o público e esse foi o 7 de Setembro de 1953, quando encantamos a cidade no desfile em marcha, a pose ereta e solene ao executar o Hino Nacional e ainda mais a adesão dos velhos da antiga corporação — meu Pai, Tio Zezé, Alexandre, Marçal, Otávio, mais tarde Francisco Gomes de Lima, Airton Morais Fernandes e Jovino Valério Gonçalves. Quando da formação do grupo, meu Avô fez questão de convidar todos os meninos do arraial, além de seus netos, esses obrigados a integrar o grupo. Lembro-me do Enes do Alexandre, Tião e Didi do Roque, Neide do Nhanhá, entre outros. A partir da primeira apresentação, as coberturas das festas na região eram religiosamente cumpridas em todos os lugares onde não existia uma banda.

As viagens a Brejaúba ou Santo Antônio do Rio Abaixo eram incríveis e nos atingiam com incomparável entusiasmo. A Brejaúba as jornadas feitas a cavalo nos detinham às margens do encontro de dois rios, na chamada Barra dos Rios Preto e Santo Antônio. Lá havia uma barca que transportava as pessoas, os animais e as cargas, era uma verdadeira festa, pena que não houvesse uma máquina fotográfica para registrar a grande epopéia. A barca, que pertencia a Zé Augusto da Barra, deslizava mansamente pelos rios caudalosos que pareciam um mar em seu solene encontro e nos divertia na travessia deliciosa. E era tocada por burros acoplados a um imenso cabo de aço. Não me lembro se havia pagamento do transporte.

Tentando aguçar a mente arredia, ouso lembrar dos componentes da Banda do Godó no naquela tempo áureo: Seu Godó, que tocava Ophiclides, (ou Pé de Mamão, como apelidamos o seu instrumento), Zezé (Baixo), Tãozinho (Riquinta), Alexandre (Trombone), Otávio (Trombone), Marçal (Piston), Francisco (Piston), Pereira (Baixo), Jovino (Trombone de Vara), Airton (Saxofone),  Sebastião Duarte (Bombardino), Eu (Bombardino), Carlos (Trombone), Dezinho (Sax Si Bemol), Zé Flávio (Sax Mi Bemol), Tião do Roque (Sax Si Bemol), Zezé da Maricas (Sax Si Bemol), Enes do Alexandre (Sax Si Bemol), Godofredo (Sax Mi Bemol), Neide do Nhanhá (Sax Si bemol), Sebastião Sana ou Zé Quinquim (Prato), Toninho do Roque ou Tony do Somiro (Tarol), Salvador (Bombo).

Aí está um grupo que levanta a história de São Sebastião do Rio Preto ao nível cultural mais significativo, mesmo tendo ficado apenas na memória mas mostra de onde vem a super vocação do povo para promover festas e recepcionar visitantes. Desponta ainda e sempre os são-sebastianeses de fibra. Seu Godó, o chefe maior, aparece como alguém que jamais existiu em tempos recentes: além de doar uma banda na bandeja para a sua terra, distribuía energia elétrica a todas as casas, quase de graça. Ousava, sim, mandar cobrança para todos num bilhete manuscrito em que se lia: “Conta de luz. Valor: 1 mil reis. Se não puder pagar, ignorar este aviso. Obrigado, Godó.”

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