— E lá vem a Banda do Godó...
Contam que, quando as duas se encontravam, tudo podia acontecer.
Mas quando vinham, também, as marujadas do Engenho, Cauís e Banqueta, e, ainda
mais, os Caboclinhos da Luzia do Chico do Padre, a paz reinava porque a
barulhada era infernal. Os foguetes completavam a zoeira. Imperava o ambiente ensurdecedor
de cada um arrancar seus tímpanos. Isso inibia qualquer possibilidade de realização de
uma luta armada entre a Banda do Marciano e a Banda do Godó , lendárias rivais.
Agora entro no páreo da Banda do Godó, que é, em parte, do meu
tempo. Dela participei nas décadas de 1950, 60 até 70. De 8 ou 9 a quase
30 anos de idade. Alguém pergunta: “— Desde quando existe a Banda do Godó?” — E
a resposta sai muito vaga, quase não sai. Faz parte de minha pesquisa encontrar
o tempo exato de início de funcionamento dessa riqueza cultural que preenche
bons capítulos da história de nossa terra. Já chegamos aos anos do Cônego
Manoel Ferreira Madureira, no final do século XIX. Naquela alcançável época,
era o dono da corporação musical o meu bisavô José Francisco de Almeida Leite,
conhecido como Zé Grande, que aparece numa foto de 1923, em que estão ainda meu
pai, com 9 anos, Tio Zezé, com 11 e o Vô Godó já quarentão.
Na época extravagante da chegada da imagem do “santo” protetor
de meu Avô, São Godofredo, exatamente em 1923, segundo narrativa do saudoso
José Lucas Ferreira, o Zezé de Dona Maricas do Sótão do Padre (reparem que as
pessoas tinham os nomes ligados às suas origens), a Banda do Zé Grande começava
a funcionar e, então, arrastava a família Almeida. Nasceu ao lado dela, no
antigo arraial do Porto, a seis quilômetros, a Furiosa, Banda de Música do
Marciano Moura. Mais tarde, inimigos entre si, Godó e Marciano cuidavam em
curtir as suas rixas ao som de dobrados, marchas e valsas, quando marujadas,
caboclinhos e foguetes não fechavam os ouvidos da multidão.
Quando tinha meus 8 pra 9 anos, chegava a São Sebastião o
maestro José Afonso de Vasconcelos, vindo de Morro do Pilar, contratado por
Godofredo Cândido D’Almeida para ensinar música aos meninos (naqueles tempos,
não se admitiam meninas tocando em bandas de música)
Esta a Banda do Zé Grande, pai de Seu Godó, em 1923 |
No dia de fazer exames dos alunos da banda que teriam um
instrumento, Carlos e eu levamos “bomba”. O maestro, ao me avaliar, disse ao
meu ouvido: “São poucos os instrumentos da banda e seu pai pode comprar pra
você”. E comprou mesmo: um trombone para o meu irmão e um bombardino que me
acompanha até hoje, embora mudo a esta altura, guardado como uma relíquia valorosa
Para retribuir “gentileza” do Zé Afonso, colocamos um ratinho ainda vivo dentro
de seu saxofone. Foi um “Deus nos acuda”. Todo mundo gostou, menos ele, é
claro. E como não conseguiram descobrir os autores da trapalhada, enfiamos
outro rato (havia ratazanas sobrando na velha casa) no Pé de Mamão do nosso Vô,
que tinha um título e medalhas concedidos pelo governo como coronel. No seu dia
a dia, Zé Afonso trabalhava incansavelmente, compondo peças musicais
antológicas, algumas que até hoje são lembradas, como Saudade de São Sebastião,
o nosso hino, e o dobrado Padre Raul de Melo. Esse era o tempo que na minha
extensa e privilegiada, memória,
modéstia à parte, denomino belle époque.
E a banda prosperou. E com tanta energia que não pode ser
sustentada para sempre. Tinha um cartaz de boa fama na região. Assim chegou o
dia da grande prova para o público e esse foi o 7 de Setembro de 1953, quando
encantamos a cidade no desfile em marcha, a pose ereta e solene ao executar o
Hino Nacional e ainda mais a adesão dos velhos da antiga corporação — meu Pai,
Tio Zezé, Alexandre, Marçal, Otávio, mais tarde Francisco Gomes de Lima, Airton
Morais Fernandes e Jovino Valério Gonçalves. Quando da formação do grupo, meu
Avô fez questão de convidar todos os meninos do arraial, além de seus netos,
esses obrigados a integrar o grupo. Lembro-me do Enes do Alexandre, Tião e Didi
do Roque, Neide do Nhanhá, entre outros. A partir da primeira apresentação, as
coberturas das festas na região eram religiosamente cumpridas em todos os
lugares onde não existia uma banda.
As viagens a Brejaúba ou Santo Antônio do Rio Abaixo eram
incríveis e nos atingiam com incomparável entusiasmo. A Brejaúba as jornadas
feitas a cavalo nos detinham às margens do encontro de dois rios, na chamada
Barra dos Rios Preto e Santo Antônio. Lá havia uma barca que transportava as
pessoas, os animais e as cargas, era uma verdadeira festa, pena que não
houvesse uma máquina fotográfica para registrar a grande epopéia. A barca, que
pertencia a Zé Augusto da Barra, deslizava mansamente pelos rios caudalosos que
pareciam um mar em seu solene encontro e nos divertia na travessia deliciosa. E
era tocada por burros acoplados a um imenso cabo de aço. Não me lembro se havia
pagamento do transporte.
Tentando aguçar a mente arredia, ouso lembrar dos componentes da
Banda do Godó no naquela tempo áureo: Seu Godó, que tocava Ophiclides, (ou Pé
de Mamão, como apelidamos o seu instrumento), Zezé (Baixo), Tãozinho
(Riquinta), Alexandre (Trombone), Otávio (Trombone), Marçal (Piston), Francisco
(Piston), Pereira (Baixo), Jovino (Trombone de Vara), Airton (Saxofone), Sebastião Duarte (Bombardino), Eu
(Bombardino), Carlos (Trombone), Dezinho (Sax Si Bemol), Zé Flávio (Sax Mi
Bemol), Tião do Roque (Sax Si Bemol), Zezé da Maricas (Sax Si Bemol), Enes do
Alexandre (Sax Si Bemol), Godofredo (Sax Mi Bemol), Neide do Nhanhá (Sax Si
bemol), Sebastião Sana ou Zé Quinquim (Prato), Toninho do Roque ou Tony do
Somiro (Tarol), Salvador (Bombo).
Aí está um grupo que levanta a história de São Sebastião do Rio
Preto ao nível cultural mais significativo, mesmo tendo ficado apenas na
memória mas mostra de onde vem a super vocação do povo para promover festas e
recepcionar visitantes. Desponta ainda e sempre os são-sebastianeses de fibra.
Seu Godó, o chefe maior, aparece como alguém que jamais existiu em tempos
recentes: além de doar uma banda na bandeja para a sua terra, distribuía
energia elétrica a todas as casas, quase de graça. Ousava, sim, mandar cobrança
para todos num bilhete manuscrito em que se lia: “Conta de luz. Valor: 1 mil
reis. Se não puder pagar, ignorar este aviso. Obrigado, Godó.”
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