Era uma vez uma cidade que pensava como a gente. E até
hoje continua mantendo o seu rumo, sempre ao alcance de todos. Assim se
comporta o desenvolvimento quando ele não acrescenta uma carroça que tenta dar
um passo à frente dos burros. Não sei se me entendem, estou tentando explicar
mais precisamente a década de 1950, decidida e completamente sem semelhança aos
tempos atuais.
Nesse passado não tão distante, um carro chega a São
Sebastião do Rio Preto uma vez ou outra, acho que de mês em mês, quando não é
a jardineira do Levy Guerra, dirigida pelo Rossil, dos poucos motoristas de
Santa Maria de Itabira, ao lado do inesquecível Jovino Valério Gonçalves. Nesse
ambiente simples e que gerava desejos contidos, sonhava eu com uma bicicleta,
que via nas constantes viagens a cidades maiores, como Belo Horizonte. Com meus
quatro, cinco, seis anos, era, sim, a bicicleta
uma sucessora normal do velocípede, que imaginava em meu poder até com farol
para varar as noites escuras, muitas vezes sem energia elétrica.
José Cândido Ferreira de Almeida, o Zezé do Godó, para mim
o Tio Zezé, era um personagem que todos sabiam onde estava, sempre à tardinha,
com chuva ou sol: assentado na ponta do passeio de sua casa, na Rua do Rosário,
bem ao lado da histórica e barroca
Igreja do Rosário e defronte à outra ermida, a Igreja Matriz de São Sebastião.
E ele nem esperava alguém, seja adulto ou adolescente ou criança, de ambos os
sexos, se assentar. Os convidava para dar uma chegada, acomodar-se ao seu lado
e discutir as novidades de uma paradisíaca aldeia, onde o tempo teimava mais em
passar devagar, ou quase não sair do lugar.
Sempre vinha eu com o velocípede já meio surrado, ou um
carrinho de madeira feito pelo meu Pai, ambos que não mais me satisfaziam. E
ele, que sabia disso, me chamava para trocar algumas palavras ou jogar conversa
fora, como se dizia naqueles saudosos tempos. E sempre proferia a mesma frase,
obsessivamente, olhando ora para cima, o céu, ora para a fachada da também
centenária igreja da Rua de Cima: “Se eu ganhar na loteria, as duas primeiras
coisas que vou fazer: comprar um relógio para pôr todo bonito na parede da
frente da igreja e uma bicicleta pra você; reze pra eu ganhar que você terá uma
bicicleta novinha” - eram as suas
palavras repetidas, imutáveis, obsessivas de todas as tardes. E eu nada dizia,
apenas me fixava naquele pedido: “reze”, sonhando na imaginação com ele
contando o dinheiro e pagando a invenção de John Kemp Starley.
Pulando para minha casa, sabia que um homem de bem como o
Tio Zezé (o meu Pai também era um homem
de bem), figura cada vez mais escassa
àquela altura, tinha mais que merecimento para acertar o primeiro ou
mesmo até o quarto prêmio da Mineira ou da Federal. Aproveitando que em casa
havia uma reunião noturna infalível para se rezar o terço em família, os
meninos ajoelhados com Pai e Mãe num quarto; e já eram cinco os filhos de
Tãozinho do Godó e Itália, já tinha a minha oração decorada. Começando com os
mais velhos, a partir deste escrevinhador de histórias, todos tinham de puxar
um “mistério” e dedicá-lo a uma causa qualquer, ou, em outras palavras, em
louvor ou pedido de algo a Deus ou aos santos.
Naquela noite já estava decidido: faria o meu pedido
especial para ser ouvido e rezado por minha mais íntima família. Então, na hora
das súplicas com fé e esperança, soltei a voz com boa eloquência e sem medo:
“Este mistério tem a final;idade de pedir a Deus e aos santos que façam o Tio
Zezé ganhar na loteria”. A minha voz de menino ressabiado ressoou como uma
bomba, talvez a explosão de Hiroxima, poucos anos depois da bomba verdadeira da
Segunda Guerra Mundial No susto que
levou meu Pai houve a paralisação do ritual do terço. Levantou-se e me arguiu
com veemência, entre o riso e a cobrança: “O Zezé pediu a você que rezasse pra
ele ganhar na loteria?” Respondi com apenas uma palavra: “Sim”. “Olha, depois
que acabarmos o terço vamos conversar” - fechou o pequeno debate.
E depois conversamos. “Amanhã você vai à casa de seu tio e
pergunte a ele se pelo menos tem
comprado algum bilhete de loteria; depois diga a ele que se não comprar não tem como ganhar.” No dia seguinte, não esperei o horário da
tarde, em que ocorria sempre a sessão de filosofia do Tio Zezé, mas resolvi
ir lá cedo para tentar saber a verdade
que me interessava. Ao tomar conhecimento do ocorrido na noite anterior, antes de mim,
pela Tia Luzia, ele não parava de rir.
Quando lá cheguei estava ainda às gargalhadas, se
retorcendo em alegria como se tivesse mesmo faturado um sonhado prêmio. Passou
a mão na minha cabeça depois da
conclusão da sua irmã que era uma autêntica difusora de causos engraçados: “A
partir da reza de hoje, você pede que aconteça o milagre de seu tio comprar um
bilhete e depois reza pra ocorrer outro
milagre e ele ganhar” , disse a tia.
Mas o querido tio acabou me revelando: “Quem compra
bilhete é seu pai, que viaja muito; eu não saio daqui e, portanto, não
compro.” E soltou mais uma de suas
inesquecíveis hilaridades, complementando:
“Quem sabe alguém me dá um bilhete premiado?”
Muito bacana a crônica Sana.
ResponderExcluirComo diz a antiga frase a qual não sei o criador, "Recordar é viver."