Não sei como
começo. Indecisão total. O pior: não sei também o que devo escrever no meio e
no fim. Pior ainda: nada sei. Sem enredo, sem palavras, o leitor, se é que os
tenho, haverá de argumentar: “Não escreva, ora bolas!” E concordo, pois é tão
fácil não escrever. É somente omitir, aquietar-se, parar. No entanto, depois
desta indecisão, sei, direi e provarei que há definições de lugar, paisagem,
clima, beleza e o principal, personagem. Agora rasgo o verbo: na noite de 19
para 20 de junho, sonhei com a minha prima Raimunda Almeida Dias, que viajou
para outro plano de vida exatamente há quatro meses.
Antes de tudo,
quero dizer alguma coisa sobre sonhos. Muito estudado por Sigmund Freud
(1856-1939), o tema tornou-se importante em nossas vidas, até porque foi o
cientista e médico austríaco quem descobriu, embutido no sonho, um importante pilar
da vida humana, o inconsciente. Hoje, o inconsciente é tratado como o dono e o
salvador da vida. Mas esse é outro assunto e não vamos misturar. Só quero
deixar escrito aqui que o sonho não é um acontecimento vulgar como, vez por outra,
o senso comum o trata.
Vamos, então, ao
sonho propriamente dito. Ou não seria um sonho? Tenho o costume de sonhar com
ela sempre Dezenas ou centenas de pessoas têm ciência de nossa profunda amizade
que vem desde a idade média de nossa infância. Ela é — detesto aplicar o verbo
no passado sabendo-se que somos eternos — uma prima dos tempos em que esse grau
de parentesco tinha o sentido de irmandade. Hoje em dia, apenas uma ou outra
família obedece a esse critério. A definição de primo hoje em dia que costumo
ouvir de pessoas especiais é a seguinte: o primo é o irmão com quem não
brigamos.
O sonho, que se
tornou incontestavelmente realidade, considerando a minha consciência plena,
foi assim: de repente estou num lugar diferente, um jardim, um éden, paisagens
floridas e habitada também por faunos inofensivos de todas as espécies. Estou
sozinho? A princípio sim, mas vejo outras pessoas chegando, irreconhecíveis, passarem
por perto de onde eu estava. Alguém me puxa pelo braço e a reconheço imediatamente,
tanto pelo sorriso quanto pelas suas quase palavras, e pelos conhecidos gestos.
Aos poucos aconteceu aquele magnífico encontro, vindo ela no meio de toda
luminosidade que complementava a beleza do ambiente.
Trajava uma roupa
solta que a deixava livre, à vontade. Era um vestido meio longo, laranja claro,
de flores, não reparei mais nada, tal como fazem os colunistas sociais. Sapato
não calçava, sequer chinelo. Como se estivéssemos conversando antes, ou como
aquilo tenha sido uma sequência dos últimos dias em que falamos aqui na Terra, mais
precisamente em São Sebastião do Rio Preto, me ordenou: “Assenta aí!”. Atendi.
O aí era uma grama, o chão macio e acolhedor. Em seguida, pergunta: “Gosta?” E
antes que saísse uma resposta, prolongou com nova pergunta: “Sente o quê?”
Interessante, não
me esperava responder às questões, ia falando, como nunca foi uma
característica de seu jeito educado de ouvir e de sorrir ao mesmo tempo. Nas
minhas vezes de falar não precisava me preocupar, as palavras eram dispensáveis,
minha prima parecia entender antecipadamente o que pensava eu e, quando questionava
isso sentia que tal sintoma denotava a sua finíssima educação. O perfume que
exalava das flores daquele jardim e inundava todo o ambiente e parecia ser uma
energia para a vida. No meio daquele éden corria mansamente um regato que seria
imperceptível não lembrasse os velhos córregos e rio que fizeram parte de nossa
infância e juventude. Ele, o regato, ajudava a difundir um ar diferente no
entorno do jardim. Como prova evidente de que para obter esclarecimentos o
silêncio estava presente, cito o exemplo de uma pergunta que ficou engasgada em
mim durante um bom tempo, surgindo dela uma resposta automática e sem palavras,
porém taxativa. Teria eu tentado arguir: “Quem mora aqui?” E ela, simplesmente,
explicou com um olhar: “Todos os nossos
e muitos outros moram aqui.” E repetiu com uma sequência e veemência
imaginativas: “Nem queira saber pelos nomes, aqui não existem nomes!”
Uma melodia
mansa como uma ópera que tenho ouvido sempre e até sem querer por aí invadiu o
ambiente. Pareciam anjos cantando, vozes uníssonas retumbando, mas em linguagem
inteligível, ressoando suavemente e me fazendo sentir com certeza de que tudo
gerava energias. Eu queria observar mais e ela, a prima, não deixava, queria de
seu ar, sua postura e gestos surgissem todas as respostas que eu procurava. Lembrava-me
de outros que se foram há muito tempo, ela mostrava-os, em explicações sem
dizeres, que vivem na mais pura
tranquilidade e paz. Disse eu pra ela que o pior de todos os mundos era o em que
lutamos sem parar, sofremos sem parar e ainda assim dele não queremos sair. Sem
resposta, apenas um sorriso mostrava a sua concordância plena.
Também havia o
silêncio total, que eu ficava escutando naquele aprazível lugar, sem gestos, sem
mímica. Sim, o silêncio se mostrava tão aprazível que o ouvia perfeitamente. E
sentia que todos o escutavam por todos os cantos. Olhava a prima e ela não
tinha outro repertório a não ser sorrir e gesticular sem agitações. Aquele
quadro era uma sequência aperfeiçoada do que foi a sua passagem por aqui. “Você
está só?” — quis perguntar. E ela respondeu, sem falar: “Aqui não existe
solidão”. “Nem quando se está só?”— uma nova pergunta imaginária e uma resposta
concreta: “Aqui não se funda nem se cria, nem se desenvolve esse sentimento
genuinamente terrestre.”
Voava o tempo e
comecei a sentir uma emoção indizível, e tudo ali era inenarrável. O fato de
entender tudo me emocionava. E, então, como consequência, veio o choro. Tentei
esconder dela as lágrimas. A prima, rapidamente, me trouxe um lenço, ela mesma
deslizou-o pela minha fronte. Disse-lhe — e desta vez foram palavras que saíram
nítidas e retumbantes — : “Não imagina
quanta saudade todos têm de você!” E cadê a sua resposta? Não saiu. Por que não?
Ah, em outras expressões de seu rosto
que brilhava, alegremente, ela sempre repetia um imperativo: “Venha!” E eu ia.
Incrível! Respostas, informações caíam sobre mim como bênçãos que ela buscava naquele paraíso inexplicável.
Mas me intriguei
mais uma vez na minha ignorância terrena, total e condenável: “Será que ela não
sente a nossa falta? Será que não tem saudade de nós? E sequer me perguntara
como vão seu marido, seus irmãos, filhos e netos, ou sobrinhos, tios e primos e ainda
amigos e amigas. Nada!” Uma resposta para esta questão veio em palavras
dosadas, seis sílabas somente: “Aqui é o nosso mundo verdadeiro.” E quis
perguntar pelo primo Sebastião, recém-chegado, pelo Airton Morais e outros, mas
ela deu resposta antecipada com sinais positivos. Já estava com vergonha da
minha ignorância mundana, mas ela descartou, me deu coragem, apontando para
novas poucas palavras: “O planeta limita seus habitantes a ele ligados.”
Entendi e complementei: tratam-se de ligações estreitas dos seres com o
ambiente. O choro, que copiosamente se desenrolara, parou como que por encanto,
mas a despedida estava por vir e houve uma ameaça de recomeço.
Eu ia embora
querendo ficar. Chegava o momento “em que o crepúsculo rola em quedas de
silêncio e de luz”, plagiando o poeta italiano Gabriele D’Annunzio. As mãos da
prima me guiavam até a saída que parecia uma divisória sem portão, uma caminho
sem muro ou cerca, determinadamente livre. E aí, finalmente, falou de bom tom:
“Diga a todos que estou bem, muito bem!” . Completou: “Todos também estão bem.”
E sorriu, sorriu, sorriu sem parar, como sempre era a sua marca.
O sonho termina
no mesmo instante em que acordei, sem interrupção, e me vi estranho diante da realidade deste
mundo. Passei as mãos nos olhos e havia uma enchente descendo fronte abaixo.
Não mais dormi. Fiquei, sim, refletindo
sobre o que se passou, só me restando duas conclusões: naquela data se
completavam quatro meses de sua partida e naquele mês, no dia 26, seria o seu
aniversário, data que desde criança nunca me esqueci.
Para encerrar, o
sonho valeu também ao esquema de minhas buscas incessantes, trazendo
substâncias necessárias a garantirem a
presença de Deus em nós e em tudo. Nunca, jamais, em tempo algum, o mundo seria
uma grande comitiva caminhando para a incerteza, ou uma espécie de estouro da
boiada como muitos imaginam dentro de uma falta de lógica desanimadoral. O
planeta tem um Guia Maior, um Acompanhante, responsável por nossa felicidade,
que tem o momento certo de intervir. Por isso fiquei ainda mais feliz ao
entender o puro sentido da vida.
P.S.: Faltando poucos dias de sua ida para o outro plano de vida, ela, que nunca gostava de ser fotografada, me chamou e me pediu a foto acima. Que cada um reflita sobre esse acontecimento notável e misterioso.
P.S.: Faltando poucos dias de sua ida para o outro plano de vida, ela, que nunca gostava de ser fotografada, me chamou e me pediu a foto acima. Que cada um reflita sobre esse acontecimento notável e misterioso.
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