segunda-feira, 23 de junho de 2014

Tudo foi um sonho. Mas o sonho era real

Não sei como começo. Indecisão total. O pior: não sei também o que devo escrever no meio e no fim. Pior ainda: nada sei. Sem enredo, sem palavras, o leitor, se é que os tenho, haverá de argumentar: “Não escreva, ora bolas!” E concordo, pois é tão fácil não escrever. É somente omitir, aquietar-se, parar. No entanto, depois desta indecisão, sei, direi e provarei que há definições de lugar, paisagem, clima, beleza e o principal, personagem. Agora rasgo o verbo: na noite de 19 para 20 de junho, sonhei com a minha prima Raimunda Almeida Dias, que viajou para outro plano de vida exatamente há quatro meses.

Antes de tudo, quero dizer alguma coisa sobre sonhos. Muito estudado por Sigmund Freud (1856-1939), o tema tornou-se importante em nossas vidas, até porque foi o cientista e médico austríaco quem descobriu, embutido no sonho, um importante pilar da vida humana, o inconsciente. Hoje, o inconsciente é tratado como o dono e o salvador da vida. Mas esse é outro assunto e não vamos misturar. Só quero deixar escrito aqui que o sonho não é um acontecimento vulgar como, vez por outra, o senso comum o trata.

Vamos, então, ao sonho propriamente dito. Ou não seria um sonho? Tenho o costume de sonhar com ela sempre Dezenas ou centenas de pessoas têm ciência de nossa profunda amizade que vem desde a idade média de nossa infância. Ela é — detesto aplicar o verbo no passado sabendo-se que somos eternos — uma prima dos tempos em que esse grau de parentesco tinha o sentido de irmandade. Hoje em dia, apenas uma ou outra família obedece a esse critério. A definição de primo hoje em dia que costumo ouvir de pessoas especiais é a seguinte: o primo é o irmão com quem não brigamos.

O sonho, que se tornou incontestavelmente realidade, considerando a minha consciência plena, foi assim: de repente estou num lugar diferente, um jardim, um éden, paisagens floridas e habitada também por faunos inofensivos de todas as espécies. Estou sozinho? A princípio sim, mas vejo outras pessoas chegando, irreconhecíveis, passarem por perto de onde eu estava. Alguém me puxa pelo braço e a reconheço imediatamente, tanto pelo sorriso quanto pelas suas quase palavras, e pelos conhecidos gestos. Aos poucos aconteceu aquele magnífico encontro, vindo ela no meio de toda luminosidade que complementava a beleza do ambiente.

Trajava uma roupa solta que a deixava livre, à vontade. Era um vestido meio longo, laranja claro, de flores, não reparei mais nada, tal como fazem os colunistas sociais. Sapato não calçava, sequer chinelo. Como se estivéssemos conversando antes, ou como aquilo tenha sido uma sequência dos últimos dias em que falamos aqui na Terra, mais precisamente em São Sebastião do Rio Preto, me ordenou: “Assenta aí!”. Atendi. O aí era uma grama, o chão macio e acolhedor. Em seguida, pergunta: “Gosta?” E antes que saísse uma resposta, prolongou com nova pergunta: “Sente o quê?”

Interessante, não me esperava responder às questões, ia falando, como nunca foi uma característica de seu jeito educado de ouvir e de sorrir ao mesmo tempo. Nas minhas vezes de falar não precisava me preocupar, as palavras eram dispensáveis, minha prima parecia entender antecipadamente o que pensava eu e, quando questionava isso sentia que tal sintoma denotava a sua finíssima educação. O perfume que exalava das flores daquele jardim e inundava todo o ambiente e parecia ser uma energia para a vida. No meio daquele éden corria mansamente um regato que seria imperceptível não lembrasse os velhos córregos e rio que fizeram parte de nossa infância e juventude. Ele, o regato, ajudava a difundir um ar diferente no entorno do jardim. Como prova evidente de que para obter esclarecimentos o silêncio estava presente, cito o exemplo de uma pergunta que ficou engasgada em mim durante um bom tempo, surgindo dela uma resposta automática e sem palavras, porém taxativa. Teria eu tentado arguir: “Quem mora aqui?” E ela, simplesmente, explicou com um olhar: “Todos os nossos  e muitos outros moram aqui.” E repetiu com uma sequência e veemência imaginativas: “Nem queira saber pelos nomes, aqui não existem nomes!”

Uma melodia mansa como uma ópera que tenho ouvido sempre e até sem querer por aí invadiu o ambiente. Pareciam anjos cantando, vozes uníssonas retumbando, mas em linguagem inteligível, ressoando suavemente e me fazendo sentir com certeza de que tudo gerava energias. Eu queria observar mais e ela, a prima, não deixava, queria de seu ar, sua postura e gestos surgissem todas as respostas que eu procurava. Lembrava-me de outros que se foram há muito tempo, ela mostrava-os, em explicações sem dizeres, que  vivem na mais pura tranquilidade e paz. Disse eu pra ela que o pior de todos os mundos era o em que lutamos sem parar, sofremos sem parar e ainda assim dele não queremos sair. Sem resposta, apenas um sorriso mostrava a sua concordância plena.

Também havia o silêncio total, que eu ficava escutando naquele aprazível lugar, sem gestos, sem mímica. Sim, o silêncio se mostrava tão aprazível que o ouvia perfeitamente. E sentia que todos o escutavam por todos os cantos. Olhava a prima e ela não tinha outro repertório a não ser sorrir e gesticular sem agitações. Aquele quadro era uma sequência aperfeiçoada do que foi a sua passagem por aqui. “Você está só?” — quis perguntar. E ela respondeu, sem falar: “Aqui não existe solidão”. “Nem quando se está só?”— uma nova pergunta imaginária e uma resposta concreta: “Aqui não se funda nem se cria, nem se desenvolve esse sentimento genuinamente terrestre.”

Voava o tempo e comecei a sentir uma emoção indizível, e tudo ali era inenarrável. O fato de entender tudo me emocionava. E, então, como consequência, veio o choro. Tentei esconder dela as lágrimas. A prima, rapidamente, me trouxe um lenço, ela mesma deslizou-o pela minha fronte. Disse-lhe — e desta vez foram palavras que saíram nítidas e retumbantes  — : “Não imagina quanta saudade todos têm de você!” E cadê a sua resposta? Não saiu. Por que não? Ah, em outras  expressões de seu rosto que brilhava, alegremente, ela sempre repetia um imperativo: “Venha!” E eu ia. Incrível! Respostas, informações caíam sobre mim como bênçãos que ela  buscava naquele paraíso inexplicável.

Mas me intriguei mais uma vez na minha ignorância terrena, total e condenável: “Será que ela não sente a nossa falta? Será que não tem saudade de nós? E sequer me perguntara como vão seu marido, seus irmãos, filhos e netos, ou sobrinhos,  tios e primos e ainda amigos e amigas. Nada!” Uma resposta para esta questão veio em palavras dosadas, seis sílabas somente: “Aqui é o nosso mundo verdadeiro.” E quis perguntar pelo primo Sebastião, recém-chegado, pelo Airton Morais e outros, mas ela deu resposta antecipada com sinais positivos. Já estava com vergonha da minha ignorância mundana, mas ela descartou, me deu coragem, apontando para novas poucas palavras: “O planeta limita seus habitantes a ele ligados.” Entendi e complementei: tratam-se de ligações estreitas dos seres com o ambiente. O choro, que copiosamente se desenrolara, parou como que por encanto, mas a despedida estava por vir e houve uma ameaça de recomeço.

Eu ia embora querendo ficar. Chegava o momento “em que o crepúsculo rola em quedas de silêncio e de luz”, plagiando o poeta italiano Gabriele D’Annunzio. As mãos da prima me guiavam até a saída que parecia uma divisória sem portão, uma caminho sem muro ou cerca, determinadamente livre. E aí, finalmente, falou de bom tom: “Diga a todos que estou bem, muito bem!” . Completou: “Todos também estão bem.” E sorriu, sorriu, sorriu sem parar, como sempre era a sua marca.

O sonho termina no mesmo instante em que acordei, sem interrupção,  e me vi estranho diante da realidade deste mundo. Passei as mãos nos olhos e havia uma enchente descendo fronte abaixo. Não mais dormi. Fiquei, sim,  refletindo sobre o que se passou, só me restando duas conclusões: naquela data se completavam quatro meses de sua partida e naquele mês, no dia 26, seria o seu aniversário, data que desde criança nunca me esqueci.

Para encerrar, o sonho valeu também ao esquema de minhas buscas incessantes, trazendo substâncias necessárias a garantirem  a presença de Deus em nós e em tudo. Nunca, jamais, em tempo algum, o mundo seria uma grande comitiva caminhando para a incerteza, ou uma espécie de estouro da boiada como muitos imaginam dentro de uma falta de lógica desanimadoral. O planeta tem um Guia Maior, um Acompanhante, responsável por nossa felicidade, que tem o momento certo de intervir. Por isso fiquei ainda mais feliz ao entender o puro sentido da vida. 

P.S.: Faltando poucos dias de sua ida para o outro plano de vida, ela, que nunca gostava de ser fotografada, me chamou e me pediu a foto acima. Que cada um reflita sobre esse acontecimento notável e misterioso.

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