terça-feira, 29 de julho de 2014

MEUS PERSONAGENS DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO PRETO (2) (Zé Loriano)

José Loriano, ou Zé Loriano, ou Zé Gambá — um nome muito conhecido em passado não tão distante de minha terra. Ele era um senhor alto, forte, de cor morena, desgastado pela sua insistente parceria com a danada da cachaça e também com a enxada que enfrentava de sol a pino. Mas não fugia do padrão de filósofo, tal como João Lagoa e outros nascidos na terrinha abençoada. Seu jeitão dominava no aspecto geral, ou no contexto da vida do arraial e nem me lembro se da cidade também. Só sei que ele não tinha limite nas doses. Quando estava entre a primeira virada e a décima golada, as pérolas reluziam no idioma pátrio como se ele fosse mesmo um discípulo de Rui Barbosa que pelo menos tentava imitar.
                   
Homem da zona rural, completamente irreconhecível quando não bebia a sua caninha, trabalhador, certa vez, eu com meus 15 anos, recém-saído do curso ginasial, fazendo trabalho extra de férias, ou o censo escolar, encontrei-o na estrada. Perguntei-lhe por seus filhos, ele declinou todos os nomes e mencionou uma menina, criada com um fazendeiro. “Eu passei os documentos pro compadre João do Olímpio” — informou com segurança.

Quando o sol se punha no horizonte, ele mal esperava a chegada da noite. Aparecia na pequena vila fazendo “via-sacra” morro acima, com ponto em todos os botecos, a partir da venda do Raimundo do Tó, o primeiro da fileira, seguido  pelo João Paulo, Luiz de Almeida, Fio do Roque, até o último da Vila Bom Jesus. Em cada parada, um espetáculo especial, fazendo a aJosé Loriano, ou Zé Loriano, ou Zé Gambá — um nome muito conhecido em passado não tão distante de minha terra. Ele era um senhor alto, forte, de cor morena, desgastado pela sua insistente parceria com a danada da cachaça e também com a enxada que enfrentava de sol a pino. Mas não fugia do padrão de filósofo, tal como João Lagoa e outros nascidos na terrinha abençoada. Seu jeitão dominava no aspecto geral, ou no contexto da vida do arraial e nem me lembro se da cidade também. Só sei que ele não tinha limite nas doses. Quando estava entre a primeira virada e a décima golada, as pérolas reluziam no idioma pátrio como se ele fosse mesmo um discípulo legria da meninada e soltando as suas frases bombásticas. Na saída para Passabém, encerrava a caminhada, quando tinha o costume de cair e dormir ao relento, banhado de poeira.

Os primeiros que lhe provocavam eram os meninos, adolescentes e até os jovens mais velhos. Zé Gambá, o seu legítimo apelido, a sua cara, roubado do próprio arraial, não lhe agradava de jeito nenhum. Mas ele não era dado a soltar palavrões como reação, a exemplo, do Godozinho, o velho de cabeça de algodão, cuja especialidade era uma cópia do Bocage. Fazia uma parada no seu soluço natural de pinguço e olhava para os lados: “Um gambá morto vale mil contos”. Em seguida, dava uma espantada na turma, ameaçando pegar um ou outro.

Mas tinha o sangue de homem de paz, da concórdia. Não queria confusão. Naqueles tempos de muito puritanismo, nada de palavrões, ele se continha. Certa vez, depois de mergulhar-se num gole de pinga na Venda do João Paulo, entrou em discussão pacífica com umas mocinhas. Essas o acusavam de estar andando com a braguilha desabotoada. Mesmo “chapado”, ele virava para o canto, abotoava a calça e comentava com sotaque ao estilo de arranhões na linguagem: “Essas moças de São Sebastião num têm regra!”

E eu os apreciava com todas as suas filosofias. Mas, como praticamente o único motorista que sobrava na cidade, sem carteira e  menor de idade (17 anos), fui chamado, certa vez para socorrê-lo. Ele caiu da Ponte do Alexandre, no Córrego das Posses e perdeu a mão esquerda. Levado ao meu avô Serafim, farmacêutico, esse me pediu que corresse com ele até Itabira, porque perdia litros e mais litros de sangue. Assentado no banco de passageiros do jipe, em companhia do Zé Reis, o Teia, ele estendia o braço num balde, que transbordava de sangue quando chegamos ao Hospital Nossa Senhora das Dores. Durante a viagem, além de seus gemidos que tinham um som de pré-agonia, Loriano balbuciava um pedido que só me fazia acelerar mais para chegar mais rapidamente ao socorro médico.

Internado a nosso pedido e exibindo aquele quadro não muito agradável, ou seja, acompanhado por um balde sanguinário, ele se recuperou no hospital e, em alguns dias estava de volta aos botecos de sua aldeia, mas agora sem a mão esquerda, que lhe fez falta até a sua partida definitiva alguns anos depois. Minha participação e do Teia livrou-o da morte prematura. Então, ele passou a nos devotar uma gratidão incomparável e comovente. Sempre quando me via, escapava-lhe da boca, acompanhada por uma baba elástica que escorria, a frase: “Eu devo a vida esse minino!” Numa dessas declarações sempre repetidas, aproveitei a sua aproximação e lhe fiz a pergunta crucial, aquilo que me incomodava sempre: “Oi, Zé Loriano, por que você bebe tanto?” E a sua resposta sem vacilo: “Oh, minino que quer ficar sabido, eu bebo pra ficar alegre, pobre só fica alegre quando bebe!”

E nas minhas visagens desajeitadas de jovem querendo ser poeta, ou nada disso, apenas um plagiador de melodias  que frequentavam as paradas de sucesso, escrevi algo adaptado a Bat Masterson, interpretada por Carlos Gonzaga. Bat Masterson um irlandês, caçador de búfalos, batedor do exército, jogador, delegado de fronteira, delegado federal, sei lá mais o quê. Eis o plágio:

Zé Loriano

Em São Sebastião ele nasceu,
E entre farras ele se criou,
Seu nome lenda se tornou,
Zé Loriano, Zé Loriano.

Sempre ao lado do Augusto,
Sempre o amigo da cachaça
Foi da caninha um defensor.
Zé Loriano, Zé Loriano.

Em toda canção contava,
Sua fama de pinguço,
Em toda canção falava
De uma garrafa bem cheia de cachaça

É o mais famoso dos pinguços,
Que o nosso lugar conheceu,
Fez do seu nome uma canção,
Zé Loriano, Zé Loriano.

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