Foi
assim... a onça apareceu e a minha prima Míriam Sana, tremendo da cabeça aos
sapatos, a fotografou. Ela, confiável e muito, viu, mas estremeceu. Com isso a
imprensa chamou a Onça de São Sebastião do Rio Preto de Suposta,
acrescentando-lhe um prenome duvidoso. Ora, a Onça existe e a entrevistei. Com
um pouco menos de medo, meu Sapo preferido, que fica debaixo da ponte e bate
matraca a noite toda, conversou com ela, ajudada por um Gambá que se tornara
amigo da onça de verdade.
O
encontro com esse segundo maior felídeo neotropical do Brasil foi marcado para
o Estádio João Rodrigues de Moura, recentemente reinaugurado, exatamente na
linha divisória do gramado. O horário não tive escolha: às 5 horas da
madrugada, quando mais da metade dos habitantes locais de seres humanos estão
dormindo. Para garantir a minha integridade, o Sapo da Ponte da Rua de Cima e o
Gambá da Rua de Baixo ficaram no meio entre ela e eu. E ela é ela mesmo, do gênero
feminino, que hoje exerce o cargo mais alto de protetora dos últimos selvagens
com o nome simpático de Rainha Onça.
Tudo
pronto, vamos ao bate-papo:
ZÉ
DO BURRO — Querida Onça, que novidade é essa, vocês aparecem aqui em São
Sebastião do Rio Preto?
RAINHA
ONÇA — Não
é novidade. Estávamos nas imediações há muito tempo. Somente agora vocês, muito
lerdos e bobos, estão nos vendo.
ZÉ
DO BURRO — A senhora conhece bem o povo desta cidade?
RAINHA
ONÇA — Claro.
Conhecemos toda a região. Eu, por exemplo, me desloco para uma área de 10 km2 a
40 km². Esta é a nossa característica.
ZÉ
DO BURRO — Mas eu insisto nisto: a senhora andou sumida. Agora está
aparecendo em lugares simultâneos. Isso é planejado pela sua raça?
RAINHA
ONÇA — Sim,
porque o meio ambiente está permitindo. Nós sentimos que o ser humano está mais
acessível e anda nos proporcionando mais espaços. Disseram outro dia, numa
reunião de vocês, que a nossa vida vale mais que a vida dos antigos mandões.
ZÉ
DO BURRO — A sua turma já sabe que todos sabem disso?
RAINHA
ONÇA — Temos
informantes em todos os locais.
ZÉ
DO BURRO — A senhora sabe que o Geraldo Quintão está doido pra fotografar a
senhora?
RAINHA ONÇA — Oh!!! Por
que você não o trouxe? Fale pra ele que estou às ordens. É aquele moço novo mas
da cabeça branca que transporta escolares? Estou à disposição...
ZÉ
DO BURRO — O que mais está facilitando a aproximação de sua turma?
RAINHA
ONÇA — Vamos
citar alguns pontos: vocês não empreendem mais aquela caça terrível; terminaram
com o desmatamento e deixam que a floresta continue descendo para a cidade e
parecem com um pouco menos de medo de nós.
ZÉ
DO BURRO — O IBGONÇA fará um senso “oncígeno”. A sua comunidade pretende
ajudar?
RAINHA
ONÇA — Ainda
não fomos procurados. Logo quando os entrevistadores chegarem aqui tomaremos as
medidas e deixaremos até que uma turma nossa acompanhe vocês nesta
mini-floresta.
ZÉ
DO BURRO — Em que cidade da região a sua população é maior?
RAINHA
ONÇA — Aqui
em São Sebastião, porque temos mais montanhas em volta da cidade. Nas outras
cidades também existimos, mas há outras raças, como a preta e a pintada.
ZÉ
DO BURRO — Vocês se entendem bem entre si — pardas, pretas e pintadas?
RAINHA
ONÇA — Quando
a situação está difícil, a briga é sempre muito acirrada. Neste momento,
estamos nos desentendendo um pouquinho. Contudo, a possibilidade de
reconciliação deve acontecer porque estamos nos infiltrando nessas cidades,
mais compreensivos que são os seus habitantes. Acho que não vai faltar comida
para ninguém.
ZÉ
DO BURRO — A senhora fala da crise econômica do Brasil?
RAINHA
ONÇA — Isso,
a crise está por enquanto começando, ouço esse comentário por aí. Espero que
não vá adiante.
ZÉ
DO BURRO — Alguns idiotas que querem amenizar dizem que vocês são as tais
jaguatiricas, mais parecidas com gatos. Há essas por aí?
RAINHA
ONÇA — (risos)...
Vocês estão vendo... Olhe bem pra mim e veja se tenho alguma coisa de
jaguatirica!...
ZÉ
DO BURRO — Para matar a fome, a senhora já comeu alguém desta região?
RAINHA
ONÇA — Olha,
não posso falar de todas as nossas turmas que estão espalhadas na região, mas
entre Passabém, São Sebastião, Santo Antônio, Morro do Pilar, Itambé do Mato
Dentro, Carmésia e Ferros, temos feito abstinência de carne humana, por enquanto.
ZÉ
DO BURRO — A abstinência vai acabar?
RAINHA
ONÇA — Isso
eu não sei porque temos uma diversidade muito grande de onças famintas. Espero
que a situação não fique difícil demais.
ZÉ
DO BURRO — O que estão comendo?
RAINHA
ONÇA — Cães,
gatos, bezerros, galinhas e pequenos animais similares. Mas existem outras
presas. Somos predadores de 85 espécies de animais diferentes e estamos no topo
da cadeia alimentar. Temos mandíbulas fortes e somos os únicos felinos que
matam suas presas perfurando o crânio com os caninos, podendo até rachar cascos
de tartaruga. A habilidade em nadar está relacionada com a proximidade da água.
Aqui na região temos muitos rios, mas estão praticamente secos. A natureza
morre aos poucos e isso nos prejudica muito.
ZÉ
DO BURRO — A sua turma tem preferência para caçar animais domésticos ou
selvagens, ou humanos?
RAINHA
ONÇA — Com
a fome nós comemos de tudo. Mas podem ficar tranquilos, contribuímos e muito
para o equilíbrio ambiental e de segurança. Acho que as cobras são muito
perigosas para vocês e estamos destruindo uma a uma. Quanto às preferências de
seres humanos, é claro que preferimos os mais gordos. Ninguém entre nós gosta
de gente magricela.
ZÉ
DO BURRO — Uma cunhada que tenho, a Sininha, me disse que na comunidade do
Porto, que ela e sua irmã Magui chamam de capital, vocês estão mandando mais
que a turma de lá. É verdade?
RAINHA ONÇA — Para falar
a verdade, não sei. Estive no Porto somente uma vez, mas lá temos alguns chefes
que comandam. Vou saber deles...
ZÉ
DO BURRO — Por que quem manda agora é a senhora e não a Onça macho?
RAINHA
ONÇA — Vocês
devem ter ouvido falar da expressão “no tempo do onça”, não é? Naquele tempo quem
mandava era a Onça macho. Agora somos nós, as fêmeas.
ZÉ
DO BURRO — A senhora acha que o mundo vai bem?
RAINHA
ONÇA — Na
selva, sim, vai muito bem. Mas entre vocês estamos vendo que tudo está uma
avacalhação muito grande. O Brasil deixou de ser um país sério, no Oriente
estão matando e jogando fora — que desperdício! Ali mesmo em Itabira, o pau
está quebrando. Paramos de ir ali de medo de sermos caçados.
ZÉ
DO BURRO — O símbolo de São Sebastião é o Gambá. A senhora se importa de a
cidade mudar para Onça Parda?
RAINHA
ONÇA — Não
me importo nada, mas não gostaria de desagradar ao meu amigo Gambá. Ele gosta
de cachaça mas eu prefiro a carne. Só se fizermos uma sociedade e isso não
depende de mim. Mas temos outras pendências ainda a resolver.
ZÉ
DO BURRO — Muito obrigado por esta entrevista.
RAINHA ONÇA — De nada.
Estou sempre às ordens. Precisando de mim, falem com o Sapo da Ponte. Ele me
conhece muito bem. Ou com esse Gambá da Rua de Baixo. Em caso de necessidade,
podem procurar o prefeito que é nosso amigo, o Antônio Celso, ou o Zé Eugênio,
gente boa. Zé Eugênio, aliás, seria o último dos habitantes do planeta Terra
que comeríamos, por ser magro demais.
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