quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

HISTÓRIA VERÍDICA DO INACREDITÁVEL (Capítulo 2)

Em clima de desconfiança e incerteza

Rodoviária cheia, passagem na mão para Belo Horizonte, Antonieta dá um pulo ali pertinho e vai buscar um “quebra-galho” para acalmar o estômago. Eram quase 18 horas e tinha saído da casa de Nancy sem o café da tarde. Trouxe pasteis e refrigerante, mostrando, num rodopio de saia e uma meia pose de alguém que quer mostrar disposição, que o recreio era para todos. Seria a festa de despedida? Abre o saquinho plástico cheio de guloseimas e o coloca em cima do banco forrado, dando sinal para a turma vir comer a pequena refeição, enquanto deixa os copos recicláveis ao alcance de todos: Karen, Aninha, Adília e Wilton, além de Nancy e de sua filha Karla, a comitiva que foi despedir-se dela. Em um minuto, cada um estava meio lambrecado de gordura, que pingava como goteiras e com os lábios untados também de coca-cola, bom para desinfetar, dizem os maldosos e sem maldade.

Para agradar a turma, desta vez é Karen quem busca outra rodada de pastel de queijo e carne e uma embalagem dupla de guaraná, aí, sim, acredita que todos estarão de estômago forrado. Mais gordura, mais tempo para a despedida, mas, finalmente, a farra acaba depressa. Hora da saída do “cata-jecas”, apelido dado pelo espertinho caçula de Karen, o Wiltinho, ao ônibus até certo ponto confortável. Tem até banheiro dentro dele.

— Não gosto de pegar ônibus nesta rodoviária, Karen! — reclamou Antonieta, que já estava acostumada com a cidade e achava que tinha o direito de colocar defeitos nela. E resmunga  numa de suas muitas repetições, com voz arranhada (ela tem uma voz de taquara rachada, sempre diz Karen):
— Em minha cidade é bem melhor. Por isso quero levar vocês todos para morar lá... (rsrsrsrsrsrs).
Nancy tentou dar razão à amiga:

— Contam que essa espelunca (essa pode falar porque nasceu na terra) foi inaugurada em 1965, quando Cata-Prego não tinha sequer 50 mil habitantes. Agora, com mais de 100 mil, as obras que aqui fazem são meras gambiarras. Pequena, sem conforto e até ofensiva ao potencial da cidade. O pior: nem prometem construir outra. Triste, minha amiga — concluiu, complementando: — Mas fazer o quê? Os políticos vivem um momento de extrema falta de inspiração nesses tempos. Nielsen fala sempre na rádio (ele tem um programa numa emissora da cidade).

— O pior exemplo de politicagem vem de Brasília. Os de lá são bem piores! — ajudou Karen.
— Que nada! — exaltou a paranaense, petista até debaixo d’água — vamos mudar de assunto?
Antonieta recebeu e concedeu muitos abraços e beijos, lágrimas saíram e caíram nos panos e guardanapos e até se misturaram à gordura dos pasteis. Entrou no ônibus e se foi de Santana do Cata-Prego para Belo Horizonte, de onde partiria à noite para São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba. De BH até Curitiba, viagem noturna que ela adora quando não vai de avião. Quando o ônibus virou a última esquina, primeiro gritos múltiplos de “tchau” e, em seguida, o aceno com uma das mãos do adeus e até Karen que, por dentro parece uma pessoa muito forte, deixou que pelo menos  duas gotas de lágrimas rolassem fronte abaixo, cada uma brotando em seus castanhos olhos.

Enquanto Antonieta elaborava planos para um novo mundo, graças à amizade que construiu com Karen, essa pensava alguma coisa da amiga de quase última hora que fizera nesses últimos dias. Ela chegara a comentar com a sua filha mais velha, Ana, sobre ter gostado muito de Antonieta, achou-a muito interessada em sua vida, atenciosa, gentil, participativa, simpática, mas para o seu gosto um tanto quanto pegajosa. Só isso de defeito, imagina e resmunga, falando por falar. 

Daqui para a frente os assuntos seriam outros, parecia a  preocupação acerca do início das aulas dos filhos no segundo semestre e de seu trabalho bem puxado, como sempre. Não é à toa que ela ganha um bom dinheiro, precisa ajudar o marido a estudar os filhos que entram numa fase difícil de preparação para a vida. Como todos já sabem, Karen é vendedora em uma loja na cidade. E vendedora que ganha prêmio todo mês e todo ano, A Vendedora do Mês. Ou do Ano.

Quando o ônibus já estava fora da cidade, Antonieta, um pouco golpeada pela emoção da despedida, pega o celular para enviar a primeira mensagem via WhatsApp ou Zap-Zap, como dizem popularmente: “Mto prazer, amiga, em te conhecer e em manter contigo essa linda amizade. A convivência nossa foi e é um luxo. Bjus”. A resposta demorou um pouco. Antonieta já confere a cor azul, ou seja, sinal de que havia chegado ao destino a mensagem. Karen deixou passar mais um pouco, estava ocupada, mas acabou dando a sua resposta: “Oh... o prazer foi td meu, bjus”. Ao receber a primeira mensagem, ainda na estrada rumo a Belo Horizonte, Antonieta não se conteve e voltou a entrar no assunto em que ela tanto estava interessada: “Karen, não se esqueça de que vai conhecer o Marcos”. Desta vez não teve resposta. Mas, sim, um comentário de mãe para filha:

— Não sei por que Antonieta deseja tanto que eu faça amizade com um amigo dela.
— Isso é veneta dela, mãe!. Não se incomode! — suspirou a filha mais velha, demonstrando claramente que está amadurecendo e pode aconselhar a própria mãe.

A viagem para o Sul não teve contatos. Nem quando Antonieta chega à Rodoviária de BH. Durante a viagem vai-se a madrugada e todos querem dormir.

Lá no Sul do país a nova amiga acaba de chegar. Férias vencidas, amanhã será o dia de retorno ao trabalho. São José dos Pinhais é uma cidade muito animada, 200 mil habitantes que mantêm um povo muito educado, cordial, amigo e solidário. Não é uma cidade de clima quente, pelo contrário, o Sul é bem morno, ou melhor, mais para frio que para qualquer temperatura.

— Olá, Mãe! – Como vai a senhora? Com saudade de mim? — este foi o seu cumprimento à genitora que a recebia na porta da casa. Entendem-se bem. Ela se chama Das Dores. Nome de cartório e pia batismal: Maria das Dores. O pai, não gostam que citem o nome. É mais um daqueles sumidos na vida. Normal hoje, as pessoas, ao invés de morrer preferem desaparecer. Uma boa ideia, diriam os espertinhos. E Seu Neco deu no pé sem deixar notícias há mais de dez anos.

No dia seguinte, 5 de agosto de 2008, Nieta tinha duas tarefas importantes a executar: reapresentar-se no seu trabalho, agora com endereço novo, um escritório no Shopping de São José dos Pinhais e retornar à aula no segundo grau, à noite. O educandário atende do maternal ao segundo grau e conta com uma ampla estrutura física, que contempla laboratórios de informática, ciências e inglês, sala de arte, biblioteca, cozinha experimental, parque, horta e ginásio poliesportivo, entre outros espaços cuidadosamente planejados. Antonieta adora o ambiente, os professores e os colegas.

Saltitante, ela chegava ao trabalho toda motivada. Apesar da saudade, tinha essa  atenuante para assassinar a distância dos amigos que fez em São José.
— Oi! – ela diz para todos com os quais cruza em escadas rolantes e elevadores.  E era correspondida plenamente. Não alonga conversa com ninguém, exceto com Vera, uma amiga que trabalha numa loja de presentes ao lado, gente boa, magrinha, baixinha e feinha, mas pelo menos confidente. Ah, confidente! Antonieta tem algumas e com elas exercita a sua capacidade de esconder um assunto do outro. E ela fica apenas tentando entender o que fazer com a vida dos outros.

— Depois eu quero te contar as novidades lá de Minas Gerais! – sugeriu Antonieta.
E  a feinha:                                                    
—Já estou curiosa porque você sempre traz novidades de lá. Vamos marcar um encontro no  próximo fim de semana?
— Vamos, sim – eu te ligo ou você  me liga.

Lá e cá. Começa agora a saudade a ser assassinada via internet. É a tecnologia. Até pouco tempo atrás o ser humano dependia drasticamente de um carro próprio para se locomover ou ainda tem que pegar um coletivo ou táxi. Agora ele é mais necessitado da telefonia celular ou móvel do que tudo. Nas ruas, avenidas, casas, no transporte, até ao volante, o ser humano se tornou um eterno dependente da comunicação via celular. A cada dia, com novas tecnologias, os smartphones vão sendo cada dia mais indispensáveis. Há quem diga que não consegue mais imaginar como o mundo até há poucos anos viveu de recados, gritos, atéma toques de tambores, como nos filmes de Tarzan.

 E mensagens começam a chover entre as duas novas amigas. São José dos Pinhais a Santana de Cata-Prego e vice-versa, mais insistências do Paraná para Minas Gerais do que o contrário.

E entram no ar as novas mensagens via Zap-Zap:
— Boa tarde, amiga Karen. Td bem por aí?
— Td ótimo. E aí?
— Comecei no meu novo local de trabalho aqui em Pinhais. Estou gostando muito. Só me incomoda a saudade de Cata-Prego. E de vocês todos, principalmente de você.
—Vc acostuma rapidim, amiga! Aqui vc já conhece. Vivemos a maior monotonia.Tudo de bom para vc!
— Obrigada!

E sempre, sempre, sempre. A cada instante chegam mensagens mas, sem novidades:
—Bom dia, Karen!
— Bom dia!
— Olhe, querida, hoje recebi um SMS daí informando que vc está se separando do seu marido. É verdade?
— Puxa! Que notícia desagradável deram a vc!. Não tem nada disso. Tudo bem aqui.
— Então, me desculpe, meu bem!
— Nada a desculpar. Isso não está nos meus planos. Acho que não. Quem sabe Nielsen esteja pensando nisso e não me falou?

Tentando acreditar que a notícia lhe abriria as portas para uma possível entrada do amigo de Antonieta, o Marcos Aurélio, a moça lá do Paraná cutucou:
—  Não se assuste! Esses homens de hoje são fogo, viu? — Antonieta demonstrava que a informação teria vindo de um homem ou que ... sabe lá o que ela pensava...
— Não, Nieta! Poupe-me desta. Estou com a cabeça boa, graças a Deus, meus filhos estão meio agitados com os estudos. Prefiro a vida em paz para conseguir levar tudo direitinho e ajudá-los.
— Foi alguém daí da sua cidade quem mandou um SMS pra mim, minha linda! Mas vamos deixar isso pra lá. Também não quero desagradar a sua vontade. E torço para a sua felicidade.
— Bye!
— Bye!

Na verdade, Antonieta aguarda ansiosamente por uma notícia desse tipo: Karen separada de Enéias, cuja cara nem pôde apreciar, ou seja, nem ficou conhecendo. Era a sua obsessão acabar com o casamento, quem não via isso nela? Que desejo esquisito! Todos pensavam assim. Antonieta parece uma verdadeira louca desde quando ficou conhecendo pessoalmente a Karen. Ela só fala em Karen, Karen, Karen. E a amiga dela  virou sua obsessão.

Parece que por ressonância magnética os fatos se comunicam. Inacreditavelmente, nos mesmos dias Karen iniciara com Nancy uma troca de ideias e pensamentos. Essas, porém, usavam o smarthphone apenas para marcar um bate-papo. Dificilmente expunham as suas ideias, fossem as que fossem, via on line. Chegou o dia em que Karen não aguentando mais de tanto assédio – e logo de uma pessoa do mesmo sexo – resolveu ir à casa de Nancy, que conhecia mais do que ela a paranaense, procurando um desabafo.
Vejam o diálogo:

— Oi, Nancy, estou louca para conversar com você sobre um assunto delicado — começou a andar de um para o outro lado, ingeriu meio copo de água e voltou ao tema: — gostei muito da sua ex-funcionária e amiga, mas estou me sentindo assediada por ela. Você nada percebeu?
— O quêêêê? Você tá doida? Que é isso, minha filha? Corta essa!
— Quem sabe seja um pressentimento apenas, tomara! Mas ela está muito pegajosa e cheia de expressões exageradas — querida, minha linda, até de gostosa já me chamou.
— Não, acalme-se! Ela é assim mesmo. Depois de acostumar com você volta ao normal. (rsrsrsrsrs). Você está imaginando coisas. Despreocupe-se porque eu a conheço bem, pelo menos nesse aspecto. Mas se acha que algo está exagerado, corte o lado dela, uai!
— Tem outra coisa meio esquisita: ela insiste em quer me apresentar a um rapaz amigo do namorado dela. Como se chama? Nem sei...
— Geraldo Bonifácio.
— Ah é, esse nome bonito (rsrsrsrsrs)...Então, dois fatos nos fazem acreditar que ela é normal: querer arrumar namorado pra você, mesmo sabendo que você é casada, e ter um namorado. Esse lado cupido dela não conheço. Corte logo e acabe com o papo, uai!

Pronto. Um copo de água encerra essa conversa tranquilizadora. Karen voltou para casa devagar, matutando, absorta nos seus mais profundos pensamentos ao passar pelas ruas estreitas da cidade em que nasceu e que adora. Pensando foi que estabeleceu as suas verdades dentro de si. Concluiu de si para si que estava, ultimamente, vivendo pelas conversas de outras pessoas, mesmo que bem intencionadas. Infelizmente, ou felizmente, cada um tem que ser dono de si, comandar o seu próprio nariz.

Foi, então, que resolveu adentrar o seu novo quarto de dormir e montar as pedras angulares de sua vida. Pegou um papel, um lápis, trancou a porta, puxou a cadeira junto a uma mesinha e começou a anotar. A técnica tinha aprendido por aí em inúmeros cursos e palestras que viu. Adotou o que aprendera com Dale Carnegie, em um de seus livros  de “como fazer alguma coisa” (“Como fazer amigos e influenciar pessoas” ou “Como evitar preocupações e começar a viver”), algo assim. E anotou:

“— Meu marido e eu estamos separados amigavelmente e apenas de corpos.
— Meu marido e eu estamos vivendo na mesma casa na maior santa paz.
— Meu marido e eu temos filhos para cuidar e acertamos que cuidaremos deles. Ele e eu amamos muito os nossos filhos.

— Eu quero viver a minha vida. Se puder ou precisar  um dia sair de casa, se não for para prejudicar os meus filhos, se der levar esses filhos, se assim continuar em paz com o meu marido que é uma ótima pessoa, tudo será feito em paz e com as bênçãos de Deus. Amém. Amém. Amém.”

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