Em clima de desconfiança e
incerteza
Rodoviária cheia, passagem na mão para Belo Horizonte, Antonieta dá
um pulo ali pertinho e vai buscar um “quebra-galho” para acalmar o estômago. Eram
quase 18 horas e tinha saído da casa de Nancy sem o café da tarde. Trouxe
pasteis e refrigerante, mostrando, num rodopio de saia e uma meia pose de
alguém que quer mostrar disposição, que o recreio era para todos. Seria a festa
de despedida? Abre o saquinho plástico cheio de guloseimas e o coloca em cima
do banco forrado, dando sinal para a turma vir comer a pequena refeição, enquanto
deixa os copos recicláveis ao alcance de todos: Karen, Aninha, Adília e Wilton,
além de Nancy e de sua filha Karla, a comitiva que foi despedir-se dela. Em um
minuto, cada um estava meio lambrecado de gordura, que pingava como goteiras e
com os lábios untados também de coca-cola, bom para desinfetar, dizem os
maldosos e sem maldade.
Para agradar a turma, desta vez é Karen quem busca outra rodada de
pastel de queijo e carne e uma embalagem dupla de guaraná, aí, sim, acredita
que todos estarão de estômago forrado. Mais gordura, mais tempo para a
despedida, mas, finalmente, a farra acaba depressa. Hora da saída do
“cata-jecas”, apelido dado pelo espertinho caçula de Karen, o Wiltinho, ao
ônibus até certo ponto confortável. Tem até banheiro dentro dele.
— Não gosto de pegar ônibus nesta rodoviária, Karen! — reclamou
Antonieta, que já estava acostumada com a cidade e achava que tinha o direito
de colocar defeitos nela. E resmunga numa de suas muitas repetições, com voz
arranhada (ela tem uma voz de taquara rachada, sempre diz Karen):
— Em minha cidade é bem melhor. Por isso quero levar vocês todos
para morar lá... (rsrsrsrsrsrs).
Nancy tentou dar razão à amiga:
— Contam que essa espelunca (essa pode falar porque nasceu na
terra) foi inaugurada em 1965, quando Cata-Prego não tinha sequer 50 mil
habitantes. Agora, com mais de 100 mil, as obras que aqui fazem são meras gambiarras.
Pequena, sem conforto e até ofensiva ao potencial da cidade. O pior: nem
prometem construir outra. Triste, minha amiga — concluiu, complementando: — Mas
fazer o quê? Os políticos vivem um momento de extrema falta de inspiração
nesses tempos. Nielsen fala sempre na rádio (ele tem um programa numa emissora
da cidade).
— O pior exemplo de politicagem vem de Brasília. Os de lá são bem piores!
— ajudou Karen.
— Que nada! — exaltou a paranaense, petista até debaixo d’água —
vamos mudar de assunto?
Antonieta recebeu e concedeu muitos abraços e beijos, lágrimas
saíram e caíram nos panos e guardanapos e até se misturaram à gordura dos
pasteis. Entrou no ônibus e se foi de Santana do Cata-Prego para Belo
Horizonte, de onde partiria à noite para São José dos Pinhais, região metropolitana
de Curitiba. De BH até Curitiba, viagem noturna que ela adora quando não vai de
avião. Quando o ônibus virou a última esquina, primeiro gritos múltiplos de “tchau”
e, em seguida, o aceno com uma das mãos do adeus e até Karen que, por dentro
parece uma pessoa muito forte, deixou que pelo menos duas gotas de lágrimas rolassem fronte
abaixo, cada uma brotando em seus castanhos olhos.
Enquanto Antonieta elaborava planos para um novo mundo, graças à
amizade que construiu com Karen, essa pensava alguma coisa da amiga de quase
última hora que fizera nesses últimos dias. Ela chegara a comentar com a sua
filha mais velha, Ana, sobre ter gostado muito de Antonieta, achou-a muito
interessada em sua vida, atenciosa, gentil, participativa, simpática, mas para
o seu gosto um tanto quanto pegajosa. Só isso de defeito, imagina e resmunga,
falando por falar.
Daqui para a frente os assuntos seriam outros, parecia a preocupação acerca do início das aulas dos
filhos no segundo semestre e de seu trabalho bem puxado, como sempre. Não é à
toa que ela ganha um bom dinheiro, precisa ajudar o marido a estudar os filhos
que entram numa fase difícil de preparação para a vida. Como todos já sabem,
Karen é vendedora em uma loja na cidade. E vendedora que ganha prêmio todo mês
e todo ano, A Vendedora do Mês. Ou do Ano.
Quando o ônibus já estava fora da cidade, Antonieta, um pouco
golpeada pela emoção da despedida, pega o celular para enviar a primeira
mensagem via WhatsApp ou Zap-Zap,
como dizem popularmente: “Mto prazer,
amiga, em te conhecer e em manter contigo essa linda amizade. A convivência
nossa foi e é um luxo. Bjus”. A resposta demorou um pouco. Antonieta já
confere a cor azul, ou seja, sinal de que havia chegado ao destino a mensagem.
Karen deixou passar mais um pouco, estava ocupada, mas acabou dando a sua
resposta: “Oh... o prazer foi td meu,
bjus”. Ao receber a primeira mensagem, ainda na estrada rumo a Belo Horizonte,
Antonieta não se conteve e voltou a entrar no assunto em que ela tanto estava
interessada: “Karen, não se esqueça de
que vai conhecer o Marcos”. Desta vez não teve resposta. Mas, sim, um
comentário de mãe para filha:
— Não sei por que Antonieta deseja tanto que eu faça amizade com
um amigo dela.
— Isso é veneta dela, mãe!. Não se incomode! — suspirou a filha
mais velha, demonstrando claramente que está amadurecendo e pode aconselhar a
própria mãe.
A viagem para o Sul não teve contatos. Nem quando Antonieta chega
à Rodoviária de BH. Durante a viagem vai-se a madrugada e todos querem dormir.
Lá no Sul do país a nova amiga acaba de chegar. Férias vencidas, amanhã
será o dia de retorno ao trabalho. São José dos Pinhais é uma cidade muito
animada, 200 mil habitantes que mantêm um povo muito educado, cordial, amigo e
solidário. Não é uma cidade de clima quente, pelo contrário, o Sul é bem morno,
ou melhor, mais para frio que para qualquer temperatura.
— Olá, Mãe! – Como vai a senhora? Com saudade de mim? — este foi o
seu cumprimento à genitora que a recebia na porta da casa. Entendem-se bem. Ela
se chama Das Dores. Nome de cartório e pia batismal: Maria das Dores. O pai,
não gostam que citem o nome. É mais um daqueles sumidos na vida. Normal hoje,
as pessoas, ao invés de morrer preferem desaparecer. Uma boa ideia, diriam os
espertinhos. E Seu Neco deu no pé sem deixar notícias há mais de dez anos.
No dia seguinte, 5 de agosto de 2008, Nieta tinha duas tarefas
importantes a executar: reapresentar-se no seu trabalho, agora com endereço
novo, um escritório no Shopping de São José dos Pinhais e retornar à aula no
segundo grau, à noite. O educandário atende do maternal ao segundo grau e conta
com uma ampla estrutura física, que contempla laboratórios de informática, ciências
e inglês, sala de arte, biblioteca, cozinha experimental, parque, horta e
ginásio poliesportivo, entre outros espaços cuidadosamente planejados. Antonieta
adora o ambiente, os professores e os colegas.
Saltitante, ela chegava ao trabalho toda motivada. Apesar da
saudade, tinha essa atenuante para
assassinar a distância dos amigos que fez em São José.
— Oi! – ela diz para todos com os quais cruza em escadas rolantes
e elevadores. E era correspondida
plenamente. Não alonga conversa com ninguém, exceto com Vera, uma amiga que
trabalha numa loja de presentes ao lado, gente boa, magrinha, baixinha e feinha,
mas pelo menos confidente. Ah, confidente! Antonieta tem algumas e com elas
exercita a sua capacidade de esconder um assunto do outro. E ela fica apenas
tentando entender o que fazer com a vida dos outros.
— Depois eu quero te contar as novidades lá de Minas Gerais! –
sugeriu Antonieta.
E a feinha:
—Já estou curiosa porque você sempre traz novidades de lá. Vamos marcar
um encontro no próximo fim de semana?
— Vamos, sim – eu te ligo ou você me liga.
Lá e cá. Começa agora a saudade a ser assassinada via internet. É a
tecnologia. Até pouco tempo atrás o ser humano dependia drasticamente de um
carro próprio para se locomover ou ainda tem que pegar um coletivo ou táxi.
Agora ele é mais necessitado da telefonia celular ou móvel do que tudo. Nas
ruas, avenidas, casas, no transporte, até ao volante, o ser humano se tornou um
eterno dependente da comunicação via celular. A cada dia, com novas
tecnologias, os smartphones vão sendo
cada dia mais indispensáveis. Há quem diga que não consegue mais imaginar como
o mundo até há poucos anos viveu de recados, gritos, atéma toques de tambores,
como nos filmes de Tarzan.
E mensagens começam a
chover entre as duas novas amigas. São José dos Pinhais a Santana de Cata-Prego
e vice-versa, mais insistências do Paraná para Minas Gerais do que o contrário.
E entram no ar as novas
mensagens via Zap-Zap:
— Boa
tarde, amiga Karen. Td bem por aí?
— Td
ótimo. E aí?
— Comecei
no meu novo local de trabalho aqui em Pinhais. Estou gostando muito. Só me
incomoda a saudade de Cata-Prego. E de vocês todos, principalmente de você.
—Vc
acostuma rapidim, amiga! Aqui vc já conhece. Vivemos a maior monotonia.Tudo de
bom para vc!
—
Obrigada!
E sempre, sempre, sempre. A cada instante chegam mensagens mas, sem
novidades:
—Bom
dia, Karen!
—
Bom dia!
—
Olhe, querida, hoje recebi um SMS daí informando que vc está se separando do
seu marido. É verdade?
— Puxa!
Que notícia desagradável deram a vc!. Não tem nada disso. Tudo bem aqui.
— Então,
me desculpe, meu bem!
—
Nada a desculpar. Isso não está nos meus planos. Acho que não. Quem sabe Nielsen
esteja pensando nisso e não me falou?
Tentando acreditar que a notícia lhe abriria as portas para uma
possível entrada do amigo de Antonieta, o Marcos Aurélio, a moça lá do Paraná
cutucou:
— Não se assuste! Esses homens de hoje são
fogo, viu? — Antonieta demonstrava que a informação teria vindo de um homem
ou que ... sabe lá o que ela pensava...
— Não,
Nieta! Poupe-me desta. Estou com a cabeça boa, graças a Deus, meus filhos estão
meio agitados com os estudos. Prefiro a vida em paz para conseguir levar tudo
direitinho e ajudá-los.
—
Foi alguém daí da sua cidade quem mandou um SMS pra mim, minha linda! Mas vamos
deixar isso pra lá. Também não quero desagradar a sua vontade. E torço para a
sua felicidade.
— Bye!
— Bye!
Na verdade, Antonieta aguarda ansiosamente por uma notícia desse
tipo: Karen separada de Enéias, cuja cara nem pôde apreciar, ou seja, nem ficou
conhecendo. Era a sua obsessão acabar com o casamento, quem não via isso nela?
Que desejo esquisito! Todos pensavam assim. Antonieta parece uma verdadeira
louca desde quando ficou conhecendo pessoalmente a Karen. Ela só fala em Karen,
Karen, Karen. E a amiga dela virou sua
obsessão.
Parece que por ressonância magnética os fatos se comunicam.
Inacreditavelmente, nos mesmos dias Karen iniciara com Nancy uma troca de
ideias e pensamentos. Essas, porém, usavam o smarthphone apenas para marcar um bate-papo. Dificilmente expunham
as suas ideias, fossem as que fossem, via on
line. Chegou o dia em que Karen não aguentando mais de tanto assédio – e
logo de uma pessoa do mesmo sexo – resolveu ir à casa de Nancy, que conhecia
mais do que ela a paranaense, procurando um desabafo.
Vejam o diálogo:
— Oi, Nancy, estou louca para conversar com você sobre um assunto
delicado — começou a andar de um para o outro lado, ingeriu meio copo de água e
voltou ao tema: — gostei muito da sua ex-funcionária e amiga, mas estou me
sentindo assediada por ela. Você nada percebeu?
— O quêêêê? Você tá doida? Que é isso, minha filha? Corta essa!
— Quem sabe seja um pressentimento apenas, tomara! Mas ela está
muito pegajosa e cheia de expressões exageradas — querida, minha linda, até de
gostosa já me chamou.
— Não, acalme-se! Ela é assim mesmo. Depois de acostumar com você
volta ao normal. (rsrsrsrsrs). Você está imaginando coisas. Despreocupe-se
porque eu a conheço bem, pelo menos nesse aspecto. Mas se acha que algo está
exagerado, corte o lado dela, uai!
— Tem outra coisa meio esquisita: ela insiste em quer me
apresentar a um rapaz amigo do namorado dela. Como se chama? Nem sei...
— Geraldo Bonifácio.
— Ah é, esse nome bonito (rsrsrsrsrs)...Então, dois fatos nos
fazem acreditar que ela é normal: querer arrumar namorado pra você, mesmo
sabendo que você é casada, e ter um namorado. Esse lado cupido dela não
conheço. Corte logo e acabe com o papo, uai!
Pronto. Um copo de água encerra essa conversa tranquilizadora.
Karen voltou para casa devagar, matutando, absorta nos seus mais profundos
pensamentos ao passar pelas ruas estreitas da cidade em que nasceu e que adora.
Pensando foi que estabeleceu as suas verdades dentro de si. Concluiu de si para
si que estava, ultimamente, vivendo pelas conversas de outras pessoas, mesmo
que bem intencionadas. Infelizmente, ou felizmente, cada um tem que ser dono de
si, comandar o seu próprio nariz.
Foi,
então, que resolveu adentrar o seu novo quarto de dormir e montar as pedras
angulares de sua vida. Pegou um papel, um lápis, trancou a porta, puxou a
cadeira junto a uma mesinha e começou a anotar. A técnica tinha aprendido por
aí em inúmeros cursos e palestras que viu. Adotou o que aprendera com Dale
Carnegie, em um de seus livros de “como
fazer alguma coisa” (“Como fazer amigos e influenciar pessoas” ou “Como evitar
preocupações e começar a viver”), algo assim. E anotou:
“— Meu marido e eu estamos separados amigavelmente e apenas
de corpos.
— Meu marido e eu estamos vivendo na mesma casa na maior santa paz.
— Meu marido e eu temos filhos para cuidar e acertamos que
cuidaremos deles. Ele e eu amamos muito os nossos filhos.
— Eu quero viver a minha vida. Se puder ou precisar um dia sair de casa, se não for para
prejudicar os meus filhos, se der levar esses filhos, se assim continuar em paz
com o meu marido que é uma ótima pessoa, tudo será feito em paz e com as bênçãos
de Deus. Amém. Amém. Amém.”
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