sábado, 9 de janeiro de 2016

HISTÓRICA VERÍDICA DO INACREDITÁVEL

A amizade aproxima-se de seu objetivo. E a vida continua
(Capítulo 4)

E estamos em setembro de 2008 numa casa da Rua das Flores, cidade de Cata-Prego, Estado de Minas Gerais, Brasil, América do Sul, Mundo. Karen Helena, com coragem e tudo, parte para a frente do espelho e se olha assustada. “Nossaaaa... preciso de um recauchutagem urgente!” — clamou de si para si a situação de seu semblante,. como se fosse um pneu desgastado. Os olhos fundos e profundos, escuros, olheiras quase roxas como se tivesse levado uns incríveis bofetadas. As sobrancelhas requerem  trato especial de algum profissional qualificado. A face clara paira  um pouco inchada como uma manga rosa exposta na fruteira da copa. Não se acha bonita nem antes nem agora ao sair da cama. Ou melhor, na sua perene humildade, requer as coisas lindas somente para outras pessoas. Sinal  insofismável de virtudes que trouxe do berço, da mãe, um pouco do pai saudoso. Veio  a conclusão imediata: “Preciso me cuidar!” Ou ir ao borracheiro?
                                                     
Correu direto ao smarthphone e o encontra cheio de mensagens. No Facebook  havia uma foto sua com a família: filho, filhas e a mãe amada, adorada, os filhos venerados. Faltou o marido, repórter de “Diário de Cata-Prego”. As opiniões dos amigos em comentários nunca variavam: “Lindos, lindos, lindos!”. Olhou uma  foto sua feita no trabalho, melhor dizendo, numa feira realizada na cidade. Ela como recepcionista, depois expositora, a seguir vendedora, a profissão nata. Clicou em fotos e os inarredáveis comentários: “Linda, linda, linda”. E voltou a pensar: “Se eu fizer um sélfie ou selfie (inglês)  e postar, com essa feiúra  toda, juro que vão comentar mesmo assim: ‘Linda, linda, linda’. Então, devo ouvir a minha opinião somente  e digo a mim mesma que estou horrível, horrível, horrorosa. Vou ligar pro salão de beleza e pronto, devo cuidar de mim”. Papo final, horário marcado para a tarde. Era um sábado desses sem agitação, nem casamentos, nem aniversários.

Por conta do nada ter o que fazer, vai ao computador. Abre o No Facebook. Lá está o “amigo” Marcos Aurélio com mensagens e suplicando atenção: “Bom dia, querida amiga!” — o anúncio de sua presença às 9:15. A seguir outra mensagem: “Quero mais uma foto sua. Me envia? Anexo uma minha para vc espantar baratas”. Que diabo, pensou Karen,. ele já tem a minha foto. Mas isso é bom. Sinal de haver insistência em ser amigo porque viu a minha cara de há muito. Com certeza, gostou dela. Karen Helena ainda não respondeu. Esperou. e leu “Escrevendo” — informa a tecnologia do MSN, ou melhor, havia pulado para o WhatsApp.  Adiante: “Outro sélfie para você!”. E Karen repara bem a imagem: “Não parece bonito de morrer, não é um galã de cinema de Hollywood nem um ser bronzeado como um artista havaiano. Isso me convence de uma coisa: ele não é trapaceiro”. As fotos eram normais, ou seja, ele nem muito lindo, mas razoavelmente bonito. Avaliou o rapaz: alto, moreno, sem cabeça chata como os nordestinos, tudo bem. Mas o que importa são as palavras, afinal, eram apenas amigos e assim queria continuar sempre, desfrutando de sua cultura.

Deu as suas respostas. Desta vez mais branda, bem amena e diferente do contato passado.  Respeitosa, amiga, interessada numa amizade nordestina. Ter amigos nesses lugares é bom. Quem sabe, um dia, uma temporada de descanso? O Nordeste é, hoje, uma região muito requisitada pelo resto do Brasil. Acabou-se aquele tempo de ter pena do povo por causa da seca, de esperar que o governo implemente aqueles planos especiais de ajuda ao agricultor, ou ao fazendeiro. Nada como do tempo de Vidas Secas, drama inconteste de Graciliano Ramos. Então, dedilharam muito, muito, muito. Marcos Aurélio cada vez mais interessante, ela avaliava. Escreve bem, pensou. Expressa sentimentos com a autoridade de quem os sente. Faz  expressões vivas tornarem-se uma espécie de sussurros. Como? Vou ver se dá para explicar: parece que ela está perto dele, sentindo seu hálito, vendo seus gestos, algo assim notável e de gosto apurado. Ele conta casos de sua amizade com Antonieta, com 22 anos, seis anos mais nova. “Nossa! Graças a Deus, não haverá nada mais que amizade entre nós porque tenho 34 e não vou mesmo namorar um verdadeiro menino para mim. Já tenho uma filha de 13, outra de 11 e um menino de 7. Posso me soltar mais porque você se  parece um amigo muito leal!” — escreveu a ele de supetão, quase sem pensar. Arrependeu-se mas não dava tempo mais de apagar. Deixa pra lá, pensou..

“Idade não interessa!” — Exclama o paraibano vendo escorrer por entre as teclas do computador a sua esperança, pois o que deseja, de verdade é conquistar aquela mineira muito bem recomendada pela amiga Nieta, moradora de São José dos Pinhais. Nessa conversa via  Zap-Zap que se passou houve várias tentativas de um papo por telefone, uma conversa mais natural. Ambos tentaram discar, mas nada concretizado. Ficou a promessa de se falarem pelo som e,  no bate-papo, clareou-se mais o desejo de Karen de trocar palavras vivas, normais. Nada de relevante, pensou Karen, porque foi muito bom saber que ele se expressa bem e é bom trocar palavras com quem respeita o nosso achincalhado idioma.  Então, na verdade, há, neste dia de contato, muita vibração positiva, aquilo que Karen sempre ouve nas palestras ou nos livros de autoajuda, muito comum, a mesma linguagem dos especialistas no tema.

E em casa? Como estava o ambiente familiar? Uma pequena mudança que os filhos notaram, é claro, mas parecia algo assim com um único culpado: os pernilongos. O quê? — alguém se assustaria. Que diabo de pernilongos são esses? O seguinte: Karen e Enéias tiveram uma pequena discussão. Voz baixa. Nada de gritos de ciúme por parte da mulher, apenas um princípio forte de amor próprio. É o que ocorre com as  pessoas hoje  em dia: “O único problema do casamento é a falta de confiança” — já escrevia em sua coluna  do jornal Estado de  Minas, em 1952, a conselheira e guia sentimental Ivone Borges Botelho. A afirmativa continuou valendo como se fosse uma lei para os anos seguintes.

E nisso aparece o intruso, mas quem sabe providencial, o Sapo da  Ponte para fazer abrir um novo parêntese como no capítulo anterior. Ele chega com os seus ensinamentos. Diz que o mais importante de toda a história do casamento é a mudança de comportamento, sentimento, entendimento. Vem  dizendo que no tempo do onça os homens nunca tinham contato com  a  namorada senão por recados, às vezes rápidos  encontros na rua, ou um aceno de mão. Se gostava da menina, chamava um cupido para conversar com ela ou escrevia aos pais dela. Para pedir  casamento, mesmo sem contato algum um com a outra, escrevia uma carta, ou incumbia alguém de fazer por ele. A resposta do pai da moça quase sempre vinha, no caso de positiva, marcando já a data do casório. Se fosse negativa, havia o respeito total e cancelavam-se os sonhos. Não havia naqueles tempos o esquentar de impetuosas paixões.

O Sapo esclarece que quando e enquanto havia namoro, perdurava também o mesmo comportamento de antes, nem um toque nas mãos, não havia esse “desrespeito”. O bicho, coaxando bem alto, explicava o seguinte: “O pai da moça queria saber que o pretendente da sua  filha era, fisicamente, um homem normal. Ou seja, se tinha o costume de ‘trocar o  óleo’ em alguma casa de tolerância”. Em outras palavras, a família da moça queria ter sempre a certeza de que o namorado ou noivo jamais ficaria com o seu par antes do casamento. “Sexo antes de se casar é não somente pecado, como também um risco porque, tratando-se de uma desvirginada ela ficaria marcada para sempre”, concluiu o Sapo que explica, ainda a necessidade de se saber o estado financeiro do futuro namorado. Aí o bichinho pula fora e fecha este parêntese.

Voltamos à casa de Karen, onde o ambiente não pesou em nada. Apenas o casal acertou que ela dormiria em outro quarto por causa dos pernilongos. Parecia  brincadeira, mas a explicação é a seguinte: ele, Enéias, queria sempre dormir com a janela aberta. Ela, Karen não aceitava, porque esses “Culex Pepeans Fatigans” (nove científico do extrator de sangue) preferem a mulher. A explicação da separação de corpos aos filhos se deu assim, exatamente para que ninguém se envolva. De si para si, Karen explicou-se que precisava dar um tempo ou uma oportunidade para o marido. Chegou a confidenciar a uma de suas amigas de trabalho, Elenice, que queria ser reconquistada pelo Enéias.

Aí segue a vida. De longe, Marcos se julgava já apaixonado, interessado, louco para ir à frente com Karen. Assim, ocorreu um longo bate-papo já no mês de dezembro do mesmo ano, 2008. Falaram-se muitas vezes por telefone. Quando um não encontrava o outro, deixavam mensagens nas redes particulares. Mas o normal passou a ser o falatório que aumentava — e muito mesmo — as contas telefônicas. Contudo, surgiu um pouco mais tarde o telefone via WhatsApp, totalmente gratuito, as trocas de afagos aconteciam ao vivo e quase a cores. Inacreditável era a percepção de Karen. Pensava ela que a voz do amigo fosse algo assim entrecheada de arranhos, um pouco fanhosa. Será o sotaque do Nordeste? Ou é uma alteração feita pela distância, pois estavam a mais de 2.800 quilômetros de separação física.

À amizade ela já havia se entregado inteiramente. Considerava Marcos Aurélio um verdadeiro guru, talvez um psicólogo de graça. Todas as suas questões mundanas contava para ele, ou por escrito pelo WhatsApp ou MSN ou num telefonema. Eram problemas do seu casamento que se desmoronava aos poucos, dos filhos que os sentia diferentes ou no relacionamento com os demais familiares e até amigos. Certo dia, Karen gritou ao telefone umas expressões fantásticas de elogios ao amigo. Disse que estava se sentindo cada vez mais segura quando conversava com ele, agradeceu-o penhoradamente

Chegou  a época do Natal e do Ano-Novo e aconteceu um fato interessante: Karen quis comprar um presente para o seu amigo. Resolveu, então, ligar para a amiga Antonieta, como sempre a cupido dessa amizade que se empenhava em tornar-se namoro ou amor. E a ligação:
— O que você acha de eu lhe dar um presente, Nieta?
— Espetacular! Boa ideia, minha amiga.
— O que você, então, me sugere?
— Tenho que pensar. Você me dá um tempo? Acho que preciso ligar para ele.
— Então, aguardo a sua chamada, Nieta. Tão logo me fale, vou comprar e envio a ele.
— Olhe — antecipou Antonieta — eu devo ir lá me encontrar com o meu amor, né? O rapaz de que lhe falei, Geraldo Bonifácio, que é colega de emprego do Marcos em João Pessoa. Devo passar por lá as festas de fim de ano. Posso levar o presente dele ou eu mesma comprar para você.

— Olha, me veio uma luz aqui agora — diz Karen — não vou dar presente nenhum. Ele é meu amigo e nem penso em transformar isso em namoro. Dar-lhe um presente vai parecer interesse meu. Minha mãe me ensina que uma mulher nunca deve se antecipar ao homem no interesse sentimental  — concluiu Karen e deu como encerrado o assunto.
E Karen volta para si mesma. Percebe uma mudança operando: era muito calada e se tornou uma tagarela. Mas nunca contava tudo, deixava as pessoas sem saber, logicamente, o que se passava com ela. Fazia perguntas incríveis às pessoas. Por exemplo:

— Você acredita no amor?
— Existe ilusão e existe amor de verdade?
— A grande descoberta do ser humano na terra chama-se amor?
— As pessoas podem apaixonar-se mais de uma vez?
— O amor existe na adolescência ou na idade madura?

Caminhava pelas ruas de sua cidade sempre à cata de uma pessoa com quem falar. Não encontrava, no entanto, as que desejava abrir-lhes o coração. Quando aparecia alguém mais confiável, levava-lhe a notícia, que seria de uma paixão que “atravessava o coração de alguém” mas nem dizia nenhum dos “alguéns”, o de lá ou a de cá. Percebeu que falava muito e precisava se conter. Lembrou-se de uma palestra em que o palestrante dizia: “A grande utopia das pessoas é encontrar ouvintes”. Naquela ocasião, o conselho do psicólogo que falava tinha o seguinte conselho: “Não ceda! Só fale com quem o quer ouvir. Normalmente — explicou na ocasião — as pessoas querem falar, somente falar.


Nelson Rodrigues, escritor brasileiro que brilhou no seu tempo (década de 1960) e continua ainda vendendo livros, apesar de estar em outro plano de vida. Segundo ele, somente duas pessoas nos ouvem hoje, o psicanalista e o médium espírita. Ao primeiro pagamos para que nos ouça; ao segundo apenas nos curvamos a uma nova fé religiosa. “A igreja vazia também é um ouvinte: — ouvia o eterno e ouvia o sagrado, que estão enterrados em nós”, escreveu o dramaturgo.

E estamos em setembro de 2008 numa casa da Rua das Flores, cidade de Cata-Prego, Estado de Minas Gerais, Brasil, América do Sul, Mundo. Karen Helena, com coragem e tudo, parte para a frente do espelho e se olha assustada. “Nossaaaa... preciso de um recauchutagem urgente!” — clamou de si para si a situação de seu semblante,. como se fosse um pneu desgastado. Os olhos fundos e profundos, escuros, olheiras quase roxas como se tivesse levado uns incríveis bofetadas. As sobrancelhas requerem  trato especial de algum profissional qualificado. A face clara paira  um pouco inchada como uma manga rosa exposta na fruteira da copa. Não se acha bonita nem antes nem agora ao sair da cama. Ou melhor, na sua perene humildade, requer as coisas lindas somente para outras pessoas. Sinal  insofismável de virtudes que trouxe do berço, da mãe, um pouco do pai saudoso. Veio  a conclusão imediata: “Preciso me cuidar!” Ou ir ao borracheiro?
                                                     
Correu direto ao smarthphone e o encontra cheio de mensagens. No Facebook  havia uma foto sua com a família: filho, filhas e a mãe amada, adorada, os filhos venerados. Faltou o marido, repórter de “Diário de Cata-Prego”. As opiniões dos amigos em comentários nunca variavam: “Lindos, lindos, lindos!”. Olhou uma  foto sua feita no trabalho, melhor dizendo, numa feira realizada na cidade. Ela como recepcionista, depois expositora, a seguir vendedora, a profissão nata. Clicou em fotos e os inarredáveis comentários: “Linda, linda, linda”. E voltou a pensar: “Se eu fizer um sélfie ou selfie (inglês)  e postar, com essa feiúra  toda, juro que vão comentar mesmo assim: ‘Linda, linda, linda’. Então, devo ouvir a minha opinião somente  e digo a mim mesma que estou horrível, horrível, horrorosa. Vou ligar pro salão de beleza e pronto, devo cuidar de mim”. Papo final, horário marcado para a tarde. Era um sábado desses sem agitação, nem casamentos, nem aniversários.

Por conta do nada ter o que fazer, vai ao computador. Abre o No Facebook. Lá está o “amigo” Marcos Aurélio com mensagens e suplicando atenção: “Bom dia, querida amiga!” — o anúncio de sua presença às 9:15. A seguir outra mensagem: “Quero mais uma foto sua. Me envia? Anexo uma minha para vc espantar baratas”. Que diabo, pensou Karen,. ele já tem a minha foto. Mas isso é bom. Sinal de haver insistência em ser amigo porque viu a minha cara de há muito. Com certeza, gostou dela. Karen Helena ainda não respondeu. Esperou. e leu “Escrevendo” — informa a tecnologia do MSN, ou melhor, havia pulado para o WhatsApp.  Adiante: “Outro sélfie para você!”. E Karen repara bem a imagem: “Não parece bonito de morrer, não é um galã de cinema de Hollywood nem um ser bronzeado como um artista havaiano. Isso me convence de uma coisa: ele não é trapaceiro”. As fotos eram normais, ou seja, ele nem muito lindo, mas razoavelmente bonito. Avaliou o rapaz: alto, moreno, sem cabeça chata como os nordestinos, tudo bem. Mas o que importa são as palavras, afinal, eram apenas amigos e assim queria continuar sempre, desfrutando de sua cultura.

Deu as suas respostas. Desta vez mais branda, bem amena e diferente do contato passado.  Respeitosa, amiga, interessada numa amizade nordestina. Ter amigos nesses lugares é bom. Quem sabe, um dia, uma temporada de descanso? O Nordeste é, hoje, uma região muito requisitada pelo resto do Brasil. Acabou-se aquele tempo de ter pena do povo por causa da seca, de esperar que o governo implemente aqueles planos especiais de ajuda ao agricultor, ou ao fazendeiro. Nada como do tempo de Vidas Secas, drama inconteste de Graciliano Ramos. Então, dedilharam muito, muito, muito. Marcos Aurélio cada vez mais interessante, ela avaliava. Escreve bem, pensou. Expressa sentimentos com a autoridade de quem os sente. Faz  expressões vivas tornarem-se uma espécie de sussurros. Como? Vou ver se dá para explicar: parece que ela está perto dele, sentindo seu hálito, vendo seus gestos, algo assim notável e de gosto apurado. Ele conta casos de sua amizade com Antonieta, com 22 anos, seis anos mais nova. “Nossa! Graças a Deus, não haverá nada mais que amizade entre nós porque tenho 34 e não vou mesmo namorar um verdadeiro menino para mim. Já tenho uma filha de 13, outra de 11 e um menino de 7. Posso me soltar mais porque você se  parece um amigo muito leal!” — escreveu a ele de supetão, quase sem pensar. Arrependeu-se mas não dava tempo mais de apagar. Deixa pra lá, pensou..

“Idade não interessa!” — Exclama o paraibano vendo escorrer por entre as teclas do computador a sua esperança, pois o que deseja, de verdade é conquistar aquela mineira muito bem recomendada pela amiga Nieta, moradora de São José dos Pinhais. Nessa conversa via  Zap-Zap que se passou houve várias tentativas de um papo por telefone, uma conversa mais natural. Ambos tentaram discar, mas nada concretizado. Ficou a promessa de se falarem pelo som e,  no bate-papo, clareou-se mais o desejo de Karen de trocar palavras vivas, normais. Nada de relevante, pensou Karen, porque foi muito bom saber que ele se expressa bem e é bom trocar palavras com quem respeita o nosso achincalhado idioma.  Então, na verdade, há, neste dia de contato, muita vibração positiva, aquilo que Karen sempre ouve nas palestras ou nos livros de autoajuda, muito comum, a mesma linguagem dos especialistas no tema.

E em casa? Como estava o ambiente familiar? Uma pequena mudança que os filhos notaram, é claro, mas parecia algo assim com um único culpado: os pernilongos. O quê? — alguém se assustaria. Que diabo de pernilongos são esses? O seguinte: Karen e Enéias tiveram uma pequena discussão. Voz baixa. Nada de gritos de ciúme por parte da mulher, apenas um princípio forte de amor próprio. É o que ocorre com as  pessoas hoje  em dia: “O único problema do casamento é a falta de confiança” — já escrevia em sua coluna  do jornal Estado de  Minas, em 1952, a conselheira e guia sentimental Ivone Borges Botelho. A afirmativa continuou valendo como se fosse uma lei para os anos seguintes.

E nisso aparece o intruso, mas quem sabe providencial, o Sapo da  Ponte para fazer abrir um novo parêntese como no capítulo anterior. Ele chega com os seus ensinamentos. Diz que o mais importante de toda a história do casamento é a mudança de comportamento, sentimento, entendimento. Vem  dizendo que no tempo do onça os homens nunca tinham contato com  a  namorada senão por recados, às vezes rápidos  encontros na rua, ou um aceno de mão. Se gostava da menina, chamava um cupido para conversar com ela ou escrevia aos pais dela. Para pedir  casamento, mesmo sem contato algum um com a outra, escrevia uma carta, ou incumbia alguém de fazer por ele. A resposta do pai da moça quase sempre vinha, no caso de positiva, marcando já a data do casório. Se fosse negativa, havia o respeito total e cancelavam-se os sonhos. Não havia naqueles tempos o esquentar de impetuosas paixões.

O Sapo esclarece que quando e enquanto havia namoro, perdurava também o mesmo comportamento de antes, nem um toque nas mãos, não havia esse “desrespeito”. O bicho, coaxando bem alto, explicava o seguinte: “O pai da moça queria saber que o pretendente da sua  filha era, fisicamente, um homem normal. Ou seja, se tinha o costume de ‘trocar o  óleo’ em alguma casa de tolerância”. Em outras palavras, a família da moça queria ter sempre a certeza de que o namorado ou noivo jamais ficaria com o seu par antes do casamento. “Sexo antes de se casar é não somente pecado, como também um risco porque, tratando-se de uma desvirginada ela ficaria marcada para sempre”, concluiu o Sapo que explica, ainda a necessidade de se saber o estado financeiro do futuro namorado. Aí o bichinho pula fora e fecha este parêntese.

Voltamos à casa de Karen, onde o ambiente não pesou em nada. Apenas o casal acertou que ela dormiria em outro quarto por causa dos pernilongos. Parecia  brincadeira, mas a explicação é a seguinte: ele, Enéias, queria sempre dormir com a janela aberta. Ela, Karen não aceitava, porque esses “Culex Pepeans Fatigans” (nove científico do extrator de sangue) preferem a mulher. A explicação da separação de corpos aos filhos se deu assim, exatamente para que ninguém se envolva. De si para si, Karen explicou-se que precisava dar um tempo ou uma oportunidade para o marido. Chegou a confidenciar a uma de suas amigas de trabalho, Elenice, que queria ser reconquistada pelo Enéias.

Aí segue a vida. De longe, Marcos se julgava já apaixonado, interessado, louco para ir à frente com Karen. Assim, ocorreu um longo bate-papo já no mês de dezembro do mesmo ano, 2008. Falaram-se muitas vezes por telefone. Quando um não encontrava o outro, deixavam mensagens nas redes particulares. Mas o normal passou a ser o falatório que aumentava — e muito mesmo — as contas telefônicas. Contudo, surgiu um pouco mais tarde o telefone via WhatsApp, totalmente gratuito, as trocas de afagos aconteciam ao vivo e quase a cores. Inacreditável era a percepção de Karen. Pensava ela que a voz do amigo fosse algo assim entrecheada de arranhos, um pouco fanhosa. Será o sotaque do Nordeste? Ou é uma alteração feita pela distância, pois estavam a mais de 2.800 quilômetros de separação física.

À amizade ela já havia se entregado inteiramente. Considerava Marcos Aurélio um verdadeiro guru, talvez um psicólogo de graça. Todas as suas questões mundanas contava para ele, ou por escrito pelo WhatsApp ou MSN ou num telefonema. Eram problemas do seu casamento que se desmoronava aos poucos, dos filhos que os sentia diferentes ou no relacionamento com os demais familiares e até amigos. Certo dia, Karen gritou ao telefone umas expressões fantásticas de elogios ao amigo. Disse que estava se sentindo cada vez mais segura quando conversava com ele, agradeceu-o penhoradamente

Chegou  a época do Natal e do Ano-Novo e aconteceu um fato interessante: Karen quis comprar um presente para o seu amigo. Resolveu, então, ligar para a amiga Antonieta, como sempre a cupido dessa amizade que se empenhava em tornar-se namoro ou amor. E a ligação:
— O que você acha de eu lhe dar um presente, Nieta?
— Espetacular! Boa ideia, minha amiga.
— O que você, então, me sugere?
— Tenho que pensar. Você me dá um tempo? Acho que preciso ligar para ele.
— Então, aguardo a sua chamada, Nieta. Tão logo me fale, vou comprar e envio a ele.
— Olhe — antecipou Antonieta — eu devo ir lá me encontrar com o meu amor, né? O rapaz de que lhe falei, Geraldo Bonifácio, que é colega de emprego do Marcos em João Pessoa. Devo passar por lá as festas de fim de ano. Posso levar o presente dele ou eu mesma comprar para você.

— Olha, me veio uma luz aqui agora — diz Karen — não vou dar presente nenhum. Ele é meu amigo e nem penso em transformar isso em namoro. Dar-lhe um presente vai parecer interesse meu. Minha mãe me ensina que uma mulher nunca deve se antecipar ao homem no interesse sentimental  — concluiu Karen e deu como encerrado o assunto.
E Karen volta para si mesma. Percebe uma mudança operando: era muito calada e se tornou uma tagarela. Mas nunca contava tudo, deixava as pessoas sem saber, logicamente, o que se passava com ela. Fazia perguntas incríveis às pessoas. Por exemplo:

— Você acredita no amor?
— Existe ilusão e existe amor de verdade?
— A grande descoberta do ser humano na terra chama-se amor?
— As pessoas podem apaixonar-se mais de uma vez?
— O amor existe na adolescência ou na idade madura?

Caminhava pelas ruas de sua cidade sempre à cata de uma pessoa com quem falar. Não encontrava, no entanto, as que desejava abrir-lhes o coração. Quando aparecia alguém mais confiável, levava-lhe a notícia, que seria de uma paixão que “atravessava o coração de alguém” mas nem dizia nenhum dos “alguéns”, o de lá ou a de cá. Percebeu que falava muito e precisava se conter. Lembrou-se de uma palestra em que o palestrante dizia: “A grande utopia das pessoas é encontrar ouvintes”. Naquela ocasião, o conselho do psicólogo que falava tinha o seguinte conselho: “Não ceda! Só fale com quem o quer ouvir. Normalmente — explicou na ocasião — as pessoas querem falar, somente falar.


Nelson Rodrigues, escritor brasileiro que brilhou no seu tempo (década de 1960) e continua ainda vendendo livros, apesar de estar em outro plano de vida. Segundo ele, somente duas pessoas nos ouvem hoje, o psicanalista e o médium espírita. Ao primeiro pagamos para que nos ouça; ao segundo apenas nos curvamos a uma nova fé religiosa. “A igreja vazia também é um ouvinte: — ouvia o eterno e ouvia o sagrado, que estão enterrados em nós”, escreveu o dramaturgo.

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