Assim nasce uma amizade... comum
(Capítulo 3)
— Ufa, mãe! Estou cansada! Como trabalhei nesses dias!
Karen olhava para Dona Querenina com cara de meio-morta. Além das
correrias na loja, ela tinha montado uma barraca de vendas de roupas numa feira
da cidade. Trabalhava em torno de 16 horas por dia... ou mais, como diziam as suas
colegas.
— Agora vai descansar, minha filha! Durma aqui comigo.
— Tenho que ir para casa, mãe!. Meus filhos e meu marido estão me
esperando. Passei aqui somente para te ver e pedir a bênção. E olhar se um dos
meninos pode me levar à minha casa,
porque pegar ônibus nesse horário não é fácil.
Karen tem dois irmãos mais novos, Walter e Wender. Mas era uma
sexta-feira, dia de sair, cada um tinha tomado um rumo na cidade. Divertir-se
porque quem trabalha mesmo somente essa Karen maluca. Sempre a mãe e até o pai,
que infelizmente se foi há algum tempo, diziam que “essa menina não tem quem a
faça parar de exagerar no trabalho!”
Eram mais de 22 horas e não havia ninguém em casa, a não ser a
Dona Querenina.
— Os meninos estão na rua, Karen, já te falei! Vou chamar um táxi
para você.
— Ótimo. Vou tomar uma água gelada, um cafezinho e espero. Mas,
olhe, pode chamar um mototáxi mesmo. Táxi aqui é caro de mais, ou melhor, é um
artigo de luxo.
E veio o mototáxi, então. E bem rápido. Em Cata-Prego tornou-se esse
um dos mais utilizados meio de transporte. Perigoso, sim, mas ágil e barato. Os
motoqueiros são chamados e, no caso de uma passageira que recruta chega o
atendimento com capacete rosa. Com um desses rosados na cachola, às 10 horas e
tanto da noite lá se foi a filha de Dona Querenina. Em casa, Enéias já tinha
chegado e aguarda a esposa. Dois trabalhadores, pais de família, comprometidos
com o dever de zelar pelos filhos e, principalmente, continuar sendo um casal
exemplar.
Ao empurrar a porta que estava recostada, Karen repetiu as mesmas
palavras de cansaço, as que dissera à mãe e foi logo procurando os filhos casa
adentro. O marido, que estava num canto, encolhido num sofá lendo “Diário de
Cata-Preto” a inquiriu sobre o fim desse martírio de terminar o dia numa loja, continuar
o trabalho na feira e chegar à casa esbodegada.
— Muito cansativo, viu? — comentou com ela.
— De verdade, é mesmo. Mas eu não podia perder essa oportunidade
de pegar um dinheiro extra. Está tudo ficando muito difícil. Quando pinta uma
chance, não podemos rejeitar, né?
No caso de trabalhar hoje em dia é preciso agarrar às oportunidades. Certas pessoas não encontram
emprego de jeito nenhum, mas as competentes e bem-dispostas até fogem do
trabalho.
— No meu caso tenho que usar o bom-senso — pondera Karen. Mas
Enéias é bom demais em humor e retruca:
— Bom-senso é uma qualidade das pessoas que pensam como nós!
(rsrsrsrsrs)
O companheiro de longos 14, 15 anos acabou consentindo. Ou melhor,
calando-se. “Não é hora de discutir, deixemos isso para depois” — disse de si
para si, silenciosamente.
Encerrou-se o assunto e Karen saiu à procura dos filhos Adília e
Wilton, já dormindo; Ana no computador, afirma que está desligando a máquina e
que ia dormir. Karen, precisava olhar uns e-mails que aguardava como respostas
a questões comerciais. Ela e a filha comentaram a respeito de acidentes que ocorreram mais cedo na BR
próxima.
— Dois mortos hoje de manhã, ouvi no programa do Nielsen, mãe?
— Puxa! Ontem também morreram três ou quatro, sei lá. Que é isso?
Esse povo precisa tomar juízo no asfalto! — emendou Karen.
— Mãe esta vida não tem sentido, viu? Fique sabendo disso. Eu, que
sou sua filha estou te falando. Para morrer basta estar vivo. Veja bem, a
senhora se lembra de minha amiga Jane, coitada. De manhã falando com a turma no
Facebook e à tarde dentro de um carro capotado.
Aproveitando a oportunidade, atrevido como sempre, o Sapo da Ponte,
que coaxou e coaxa durante muito tempo me acordando ou não me deixando dormir,
ou até fazendo dormir com aquele barulho enjoativo, pede passagem nesta história
para palpitar acerca do mundo de acordo com essa trama, a reclamação de Aninha.
Além de ser sapo — e na minha terra não é apenas uma designação genérica de
anfíbio — ele é adepto incondicional de A VIDA É BELA e por causa disso quer a
ideia sendo alastrada mundo afora. E, ainda, lá tem o verbo “sapear”, que
significa intrometer-se, vigiar, acudir. Ele apenas deseja, neste momento,
cumprimentar Karen Helena Pinheiro pela sua atração moral, física, de simpatia
e causadora de amizade. Mas deixa, sim, um alerta, principalmente para Ana:
olha, somos unos, únicos, individualmente insubstituíveis e temos uma missão a
construir na vida. Não há vida sem sentido, por mais simples e jogada fora que
pareça. Pelo contrário, precisamos, urgentemente, neste período de vida
terrestre, descobrir qual a nossa vocação, ou missão que, depois de descoberta,
nunca pode ser esquecida e dela desvencilhada. O Sapo diz: “Meu
amigo aí ficou perdidamente procurando, mas tem um grande crédito de nunca ter
desistido. Tudo na vida se resume nisto: procurar, encontrar e, em seguida,
executar”. Complementando o Sapo, vai a seguinte orientação: trata-se de um
projeto de vida. E a terna e eterna conclusão: nunca, jamais, em tempo algum
seria permissível que a vida existisse sem um objetivo, uma finalidade, um
sentido.
E
o Sapo Sabidão retira-se, agradece a oportunidade de poder inserir a sua
mensagem, retorna à sua ponte preferida, isto é, onde escolheu para viver e
promete voltar sempre. Aqui fecho o parêntese para continuar nesta história que vai ficar
espetacular.
Cata-Prego é uma cidade de trânsito maluco. Fora a cidade, as suas
estradas de acesso estão quase sempre e completamente lotadas. Morre gente a
cada dia, ou hora, principalmente motoqueiros. Esses têm motos para chegar
primeiro. Ultrapassam pelos canteiros centrais, cortam nos acostamentos, não há
regras e normas para eles. Karen critica, mas acaba de chegar em uma dessas
garupas mortais. Mas nem comenta. O tempo de um bairro ao outro foi seis
minutos. O trajeto normal, devagar, demoraria 15 a 20 minutos.
Antes mesmo do necessário banho e de se imiscuir entre a fronha,
colcha e cobertor, Karen foi ao computador. Havia mesmo uma meia dúzia de e-mails
a aguardando. Devagar, um a um, foi abrindo e anotando as respostas. Ficou um
último recado para o final. O remetente informava “Marcos Aurélio” e a
bem-casada Karen tremeu em cima dos sapatos. Partiu para clicar a abertura da
mensagem e parou... tremia mesmo e abriu, finalmente. E leu: “Prezada Karen...”
Tirou os olhos, suspirou, respirou. Finalmente, pensou consigo mesma: “Que
nada! Vou ver o que esse moço quer
mesmo”.
E continuou a leitura: “Fiquei
conhecendo vc pela nossa amiga Antonieta. Ela me manda algumas fotos suas. E
fala maravilhas de vc. Estou encantado com as fotos e, mais ainda, com o seu
jeito de ser, segundo ela. Quero ser seu amigo. É pedir muito? Obrigado.
Marcos.”
Karen desliga o computador. Não dá a mínima para a mensagem
recebida, pelo menos por enquanto. Mas ficou pensando em Antonieta, porque ela
foi quem passou o seu endereço eletrônico ao rapaz nordestino: será o que essa
menina quer comigo? Por que deseja que eu faça amizade com pessoa de outro sexo
assim tão interessadamente sem que eu sequer conheço?” Absorta nesses
pensamentos, curtindo o cansaço, depois do banho e de troca de palavras com o
marido, fechou os olhos e caiu nos braços de Morfeu, ou de Enéias, como
queiram.
Longe dali, lá nas terras de João Pessoa, na Paraíba, Marcos
Aurélio de Souza levava a sua vidinha simples, embora filho de pais como se diz
lá no Nordeste, “de vida arrumada”. Tinha concluído o curso técnico em Mecânica
e, mais do que isso, dominava grande experiência em montagens de máquinas
pesadas. Pensava em trabalhar num dos dois lugares: ou São José dos Pinhais no
Paraná, ou em Lisboa, Portugal. Ou simplesmente continuar no seu atual emprego,
sem ganhar um salário que desejava. Para a primeira cidade tinha sido convidado
por Geraldo Bonifácio, nascido em João Pessoa e que estava trabalhando e
morando no Sul, numa empresa multinacional. Bonifácio namora Maria Antonieta
Melo Dias, a irrequieta amiga de Karen Helena.
E olhem que montagem de cenas complicadas! Duas pessoas envolvidas
nesta trama no Sul, Antonieta e Geraldo Bonifácio; uma em João Pessoa, o
mecânico Marcos Aurélio; e a terceira, Karen, sua família e seus amigos em São
José do Cata-Prego. Na Cata-Prego, quem andou catando conversas no ar foi
Enéias. Sua mulher não estava nada satisfeita com algumas descobertas que fez e
que o deixavam meio atônito. Entre ambos havia, ainda, uma longa ponte
resistente. Karen rezava insistentemente para que o amor continuasse firme depois
de 14 anos de um casamento feliz que havia declinado um pouco. Dava
oportunidades a Enéias. Esse não percebia e se mergulhava em um certo
acontecimento que não deixou transparecer.
Indo ao PC, no dia seguinte, Karen foi direto ao tal e-mail do
desconhecido Marcos e pensou: “Dou resposta, não dou, deixo pra lá, não deixo,
nada tenho para dizer, tenho”. Incertezas sobre incertezas, conseguiu encontrar
uma saída. Clicou em “responder” e começou: “Senhor Marcos Aurélio, tudo bem
com vc? Agradeço a vc e à Antonieta pela
amizade. Um abraço”. Secamente. E só. E mandou. Não demorou a chegar a
tréplica, que propunha conversa em dois canais: ou via WhatsApp ou Messeger, ou os dois. Karen concordou,
esclareceu que não estava muito assídua por causa de trabalho e, então, só lhe
restou fôlego para aguentar a insistência.
Nada muda para Karen até esta altura. A resposta que deu foi
apenas uma contingência normal e só andou meio indecisa por causa da tenaz
persistência antiga de Antonieta. Essa, não se sabe se de propósito,
estrategicamente, sumiu, ou deu uma parada nos contatos. Os novos amigos
virtuais trocaram números de telefone para ativar o WhatsApp e nomes no
Facebook. Agora seria a vez de o rapaz de João Pessoa iniciar o que pretendia.
Ou não pretendia? Veremos.
A propósito da moda da internet, até Karen, que usa muito esse
meio de comunicação, prefere a conversa olho no olho para certos assuntos:
conversa com o marido, os filhos, outros familiares e alguns amigos. Ela sempre
diz que, quando não dá tempo de uma visita, sim, um bate-papo pega bem. Pensa
que a comunicação via SMS, MSN, Zap seria para marcar um encontro, acertar
agendas e só. A conversa mesmo tem que ser pessoal.
E até se diz revoltada porque as pessoas estão falando pouco uma
com a outra, usando mais o celular. Na sua caminhada diária pela avenida que
existe perto de sua casa, só é cumprimentada em gestos. A maioria dos cidadãos
fica ouvindo músicas, alguns usando fone de ouvido maior que a orelha. “Eita
mundo insensível isso tá virando!” — exclama e reclama a todo o instante. E
repara que ninguém está disponível para uma conversa, seja no grupo da
caminhada ou mesmo nos pontos de ônibus, nas lojas.
Verdade absoluta. Ana conta o que se passa em seu colégio. O
professor, na sala de aula, não consegue mais proibir o uso de aparelho
celular. Alguns alunos colocam o aparelho no bolso e um fone pequeno no ouvido.
Passam o tempo de toda aula ouvindo a música que querem ouvir e alheios
totalmente à matéria ministrada. Vez por outra, o professor flagra um nessa
concentração distante, longe do mundo. Se tem a coragem de inquirir o aluno,
arrepende-se sempre porque o seu pupilo prefere mesmo o smarthphone à sua aula 50 minutos de falatório.
Por ironia, olho no olho, como Karen prefere, o seu casamento sofre
um baque complicado quando menos se espera. Por razões que a própria razão
desconhece, marido e mulher, Enéias e Karen, se enfrentam e há uma mudança
quase radical, digamos, nesse ínterim, de acontecimentos. Separam-se, depois de
uma discussão acalorada. Um pouco alterada mas dentro dos conformes segundo o
gênio calmo dos dois, principalmente do marido. As regras seguem como diz um
padre da Igreja do Alto da Boa Vista, em Cata-Prego, “no dia do casório noivo e
noiva parecem acertar a separação, como se o matrimônio fosse apenas uma
passagem relâmpago de tempo de vida ou um contrato de empréstimos de corpos”.
Mas somente, como diz a expressão usada juridicamente “de corpos”
aconteceu na casa do casal. Um para um quarto, outro para outro quarto, a
exemplo do que muitos psicólogos aconselham aos casais para melhorar o
relacionamento. Só que nesse caso de Karen-Enéias não tinha o intermediário
namorisco receitado pelo especialista em análise de personalidade. Apesar
disso, tudo continuou aparentemente sem alguém de fora perceber. Apenas para
uma ou outra amiga íntima Karen confessou: “Estou dando uma oportunidade ao meu
marido de me reconquistar”.
Agora ela está no trabalho, na loja se viam clientes até
pendurados no lustre e o telefone toca:
— Alô!!! Quem fala? — Karen atende.
— Adivinhe! — Responde rompante a voz masculina do
lado de lá.
— Meu Deus, não sei quem pode ser!...
—
Você não viu o meu número no seu bina?
— Perdoe-me, não vi — Karen é taxativa.
—
Aqui é o Marcos Aurélio, amigo de Antonieta.
— Oi, tudo bem?
—
Você não se importa por eu te ligar, não, né? —
Tenta se sair bem o mancebo que está longe, mas longe mesmo, lá em João Pessoa,
na Paraíba, bem no Nordeste do Brasil.
— De forma alguma. Só
pediria a você que me ligasse em outro horário porque estou no trabalho.
— OK. Que horas posso te ligar?
— Me ligue às 10 e meia da noite, ou amanhã cedo, por favor!
— Tudo bem, desculpe-me. Amanhã te ligo às 10
horas da manhã. Certo?
— Certo. Obrigada.
E assim se deu uma primeira ligação, conferida logo a seguir por Karen, com o prefixo, ou código, 83, de João Pessoa. E ela, consigo mesma: “Meu Deus, continuo não entendendo o que interessa ter um amigo na Paraíba!” Mas se conteve: quem sabe é Deus que me está guiando a esse amigo? Não seria ele um caminho para uma justa oportunidade empreendedora? E concluiu: “Não vou mais questionar. Deixa correr! Nós, humanos, quase sempre recebemos uma chance na vida de alcançar algo e nem prestamos a atenção. Vou correr o risco. Serei mais amiga, mais cautelosa com esse tal de Marcos Aurélio”.
E, mais uma vez chega tarde em casa, depois de novo dia de grande
esforço físico e intelectual. Agora parece saber o que se passa em sua cabeça,
assim pensa Quem sabe a oportunidade empreendedora? E decidiu: “Vou perguntar a
esse nortista se tem um negócio bom para que eu me decida ir ao Nordeste ganhar
muito dinheiro e voltar completamente independente. Assim vale a pena!”
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