O tema de hoje nada tem a ver com a peça (ou o filme) do conhecimento de muitos, o “Auto da Compadecida”. Até que se encaixariam alguns de seus personagens nesta história do Conoravírus ou Covid-19. Contudo, os atores de agora são muito mais espertos que João Grilo e Chicó, dois nordestinos pobres sobreviventes graças a golpes mesquinhos.
Os ardis de hoje são de mestres profissionais, de categoria nacional, estadual e municipal. A história, ou estória, primeiro de 1955, no teatro, depois de 2000, é algo verídico e inacreditável nos dias de 2020. Faltará a aparição da Nossa Senhora, no caso para salvar não os salafrários, mas o massacrado e saqueado do Brasil. Quem sabe depois?
Ah... Será que Deus precisava escolher este auto neste mundo doido para nos fixar quase inertes na plateia? Merecemos? Em supostas últimas e eventuais reencarnações enforcamos o pai e decapitamos a mãe? Sofremos pelas estradas do mundo afora, passamos apertos cruciais, corremos sérios riscos de muitas topadas, sempre somos ameaçados pela morte. E ainda temos que ver tornar-se verdadeiro o que Ariano Suassuna apenas imaginou em sua famosa peça teatral e cinematográfica?
No palco, as três mais impertinentes e desagradáveis atoras que um diretor de teatro poderia ter pela frente. O roteirista nem sabe o que fazer, qual das três coloca como vilã da peça, mesmo sabendo que o enredo é o seguinte, sem tirar nem pôr e sem um ponto de exclamação: “Trapaças descaradas contra o cidadão brasileiro”.
Nas encenações, as atoras devem respeitar o roteiro, feito por um dramaturgo, mas o enganam a cada instante pelos seus interesses escusos. Provocam inimagináveis confusões, tudo entrelaçado nas suas tramoias. O diretor inicial e verdadeiro da peça soltou as rédeas, deixando-a por conta dos prepotentes humanos. Sua decisiva ação foi expulsar os descarados do paraíso. Em seguida, eles caíram na gandaia e afundaram-se até o pescoço. Quem realmente assumiu o papel de fazer com que o roteiro fosse cumprido nos mínimos detalhes chama-se, para não dizer um nome muito feio comumente usado, Belzebu. Capeta é mais horripilante.
Os cenógrafos também são muito importantes, já que eles caracterizam o espaço em que a peça é apresentada. Neste caso atual se denominam imprensa escusa, ou mídia, cujo interesse se mistura aos demais, resumido no seguinte: poder, dinheiro, fama, atratividade material, ludíbrio. Combinam muito bem com as três importantes atoras: Incoerência, Hipocrisia e Politicagem.
Voltando ao primeiro parágrafo e para não alongar muito — a peça total é extensa, já dura milhões de anos e vai durar mais um pouco — vamos resumir a história de hoje num único e pequeníssimo espetáculo. O tema é Conoravírus, ou Covid-19. Trata-se de um vírus terrível, que causa pânico, assusta, amedronta o Planeta Terra. E mata também.
A Incoerência diz no palco, de alto e bom tom, que cada cidadão brasileiro deve recolher-se, ficar em casa, isolar-se, porque o perigo vem aí. Quando deve ouvir uma resposta da Hipocrisia que vai sugerir o trabalho livre para uns e para outros não, vem a Politicagem e prova por A mais B ou C que ninguém deve fazer absolutamente nada e viver como se vive, por exemplo, em Cuba. Sua assessora principal, a Demagogia, resolve subir no tamborete (existe isto ainda?) e fazer um discurso em favor da eternidade do corpo, banido no primeiro ato da vida, e baseado na mortalidade da alma. “Falou a voz da sabedoria!” – gritos e palmas gerais na plateia.
Nesta altura, alguém que está como visitante, um turista qualquer, anota no seu caderno de apontamentos: “Aqui existem robôs e são inacreditáveis!” A Hipocrisia também defende os pobres (alguém lhes traz a comida na mão) e os desempregados, que procuram emprego nas empresas “não-essenciais”, de portas fechadas.
“É preciso defender a economia” — solta em tonalidade audível alguém situado do outro lado do próximo teatro, situado logo ali, atravessando a rua. Mas ninguém deve correr o risco de vida. Morrer pode - de AVC, câncer, infarto, acidente – mas não deste que se apresenta autoritário e dono do mundo, o tal de Corona. “Desaforo dele, uai!” – esbravejaria um mineiro bem sentadinho na poltrona.
E tudo se embola no meio do palco. Os prefeitos, especialmente o de Itabira, vê a sua primeira manobra: decreta “estado de emergência” contando nos dedos os dias e as horas para soltar a sentença final: “calamidade pública”. Até os céus estremecem! Nem plano de enfrentamento do vírus existe mas para que fim inventaram o óleo de peroba? Deve ser melhor que álcool-gel. Tudo é esquematizado não apenas nas reuniões das segundas-feiras, nas quais só se resolvem dois assuntos - assinar um decreto qualquer, que virou doce de leite, e marcar a próxima reunião. Depois cada um vai embora, recolhe-se ao respectivo isolamento porque ninguém é de ferro.
Registra-se a decisão municipal como irrefutável e jamais isolada. Tudo combinado entre vários chefes de executivos espalhados pelo Brasil afora, o País da Piada Pronta, como diz sempre Zé Simão, de acordo com a pequenez, o mediano e a grandeza de cada um. O próprio prefeito já expõe o decreto fatal desta forma: “É um instrumento que permite à Prefeitura ter acesso a recursos federais para o enfrentamento do Coronavírus e do momento atípico na cidade”. Eta enfrentamento bruto! Parece luta na selva de “Tarzan Contra o Mundo”, ou Jerônimo, o Herói do Sertão, derrotando o Dr. Satã!
A peça termina logo para se emendar a outras. A Politicagem está vencendo de balaiada. Mas ela não pode negar, em absoluto, a ajuda que lhes dá a Incoerência e a Hipocrisia. Nas reuniões de bastidores, que ocorrem sempre nos intervalos e, principalmente, no fim, a Politicagem abraça, com efusivo orgulho, a Demagogia. Respeitável entre elas, esta carrega a ajuda indispensável para se obter do palco acirrados aplausos, depois votos nas urnas. As palmas se estendem aos cenógrafos, ou repórteres, que vão consagrar o grande sucesso da ópera do Belzebu no reino do mal.
Todos se retiraram, autores, atores e plateia. Restou uma figura esquecida na última poltrona, logo ela que seria insubstituível, talvez única indispensável. Refiro-me à Saúde. Mas, coitada dela, nem foi lembrada! Ou será mais adequado dizer: coitados de nós?
Que Deus retome as rédeas do mundo e mude as cenas dos próximos capítulos!
José Sana
Em 10/04/2020
Muito bem, caro José Sana! Muito bem colocado sua opinião diante do acontecimentos. Você agora tem vasto material para os próximos capítulos até que Deus retome as rédeas. Abraços. Flor
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