quarta-feira, 1 de setembro de 2021

IRMÃ MIRIAM: UMA VIDA PAUTADA POR ALEGRIAS FESTIVAS E RISADAS ANTOLÓGICAS (Capítulo I)

Chega de chorar a partida de Irmã Miriam! Só não chega de escrever sobre a sua vida de passagens lindíssimas em várias cidades brasileiras, de norte a sul de Minas e até do País. É preciso repetir que ela nasceu em São Sebastião do Rio Preto, onde plantou muitas páginas de religiosidade na evangelização, e viveu maior parte da vida em Itambacuri, cujo povo a ama fervorosamente e jamais a esquecerá. 

Agora resolvo fazer uma pequena seleção de momentos de júbilo que ela promoveu em seus quase 100 anos de vida, utilizando sua memória impressionante. Daria um livro essa existência fecunda e feliz e renderia uma enciclopédia o transcurso de suas lutas e glórias.

Aviso a todos que a sequência destes capítulos não é cronológica, embora pareça. Vou tentar pontuar para segurar você, meu ilustre leitor, com fatos vividos por ela, com a minha complementar presença fofoqueira. Sou assumido e mereço crédito, modéstia às favas.


AÇÚCAR NA CHUPETA

Tenho uma irmã que se chama Maria das Graças, a terceira da prole de dez da escadaria fértil de Itália Sana e Tãozinho do Godó. Chorona quase inconciliável, criada com leite de cabra que ficava complementando os berros na porta da cozinha, forte pra chuchu, ninguém dava conta dela quando resolvia choramingar. Na hora de dormir soltava um berreiro de atropelar ouvidos da pequena Vila São-Sebastianense, ex-Cachoeira Alegre.

Só havia uma pessoa que, em minutos, calava esse choro persistente: Nenzinha do Godó, ou Raimunda, futura Irmã Miriam da Natividade, depois Irmã Miriam de Almeida. Meu pai acelerava os passos da Rua de Cima à Rua de Baixo para buscar a reboque minha Tia Nenzinha, que parecia ter o segredo da mágica que causava  silêncio profundo após sua chegada e interferência no ambiente ao redor.

A repetição do ato parecia um milagre e tinha certa curiosidade geral. Anos a fio, Maria das Graças cresceu e o “milagre” de Irmã Miriam se perpetuou misterioso. Muitos queriam saber, até que meu Pai resolve, um dia, já tardiamente, a menina já era mocinha, fazer-lhe a pergunta: “Me conta aqui o que fazia para calar a choradeira de Maria das Graças?” Irmã Miriam, depois da sua solene gargalhada, disse para todos ouvirem o seguinte: “Nada eu fazia, apenas mergulhava a chupeta molhada na xícara de açúcar e colocava em sua boca; era o que bastava para devolver-lhe o sono”. Risos gerais.

UM TAPA NO GINÁSIO SÃO FRANCISCO

Estamos em pleno ano letivo de 1959, eu aprisionado no Alcatraz de Conceição do Mato Dentro, ou excelente Ginásio São Francisco, dirigido pelos Padres Capuchinhos, onde um diploma de Ensino Fundamental equivale a um curso superior, sem brincadeira. Estou na terceira série. Sou surpreendido por uma visita inusitada de minha Tia Irmã Miriam, da mesma Congregação dos padres capuchinhos e do diretor Frei Isaías da Piedade, das Clarissas Franciscanas de São Francisco de Assis.

Neste momento, estou em sala de aula e um regente me chama à porta, intimando-me a comparecer na sala da diretoria. É o momento em que a barriga de qualquer menino de 13 anos gela, ainda mais quando a zombaria geral pode ser imaginada como admoestações dos freis disciplinadores. Com o coração dando pedaladas junto de meus passos, disparo-me no rumo da sala do bravo Frei, que me aplicava sempre boas “cocadas” (coques na cabeça). Ele me detém na antessala e me diz sorrateiramente: “Sua Tia Irmã Miriam, minha companheira de Congregação, está aí e quero que você lhe faça uma surpresa; ela não sabe que você está aqui; só quero que lhe beije a mão como gosto que os alunos façam com seus mestres superiores, você sabe!”

Prendo a respiração, o medo abrange duas suposições: enfraquece-me no gesto afetivo e ser repreendido pelo Frei (estava com nota baixa em “procedimento”, quesito que mantinha o aluno na espécie de “solitária”) ou minha Tia não aprecia devido à sua costumeira intempestividade e bravura indômita.

Entro e corro para ela, que me reconhece e me abraça. Olho de lado, Frei Isaías da Piedade me contempla intempestivamente, braços cruzados e cabeça inclinada, demonstrando nota zero para em comiseração e nega seu sobrenome. Resta-me a penosa tarefa de lascar um beijo na mão direita de minha Tia, e sabem o que aconteceu?

Ela me desfere a outra mão, que quase pega o olho, num tapa para se consagrar e me deixar como autêntico vencedor da parada. Uma doce vingança, almejada por um menino peralta. A Tia ainda aplica uma freada que me arrepia dos pés à cabeça, apesar de ser repreensiva a atitude: “Onde você aprendeu isso, menino? Eu não sou nenhuma rainha!”

Minha felicidade cresce ao olhar a cara do barba-longa e avermelhado diretor, um capuchinho tido como disciplinador de fazer tremer qualquer rapaz forte, que supera os outros diretores, menos rigorosos que seu antecessor, o italiano Frei Gabriel de Melilli e Frei Agatângelo, além do Capelão Frei Manoel. Esse adorava falar sobre capeta e inferno, além de outros padres que moravam ao lado do Santuário de Bom Jesus de Matozinhos e que jogavam futebol com a batina marrom.

O rigor reinante no colégio fazia com que os pais dos alunos para ali mandassem seus filhos. Eu mesmo fui parar naquele presídio devido ao que chamavam de vadiagem praticada durante os dois primeiros anos no Ginásio Estadual de Guanhães, onde tive a vida de reizinho, até apelidado de Cheiroso.

Anos depois minha Tia comentava o fato, reprisado sempre em momentos de relaxe comuns em nossos encontros. Quando lhe falei que a cerimônia do beija-mão era ritual de exigência do nobre disciplinador, restou-lhe deixar vazar, como sempre, a sua irrefreável gargalhada.

CARONA EM ITAMBACURI

Nas minhas muitas idas a Itambacuri, a partir de 15 de dezembro de 2001 (depois conto a história desta viagem) tem uma vez em que estou aí para presenciar a Festa de Agosto, que agita a cidade. Irmã Miriam me arranca quando espreguiço no quarto e me diz em voz de autoridade (ela sempre foi muito franca e nunca guardou rancor, nem amor, é preto no branco), me disse: “Me leve ao banco?” Pulei da cama, me penteei, prontificando-me a atender as suas benditas ordens, com muito prazer, é claro.

Entra no carro, puxa o cinto e determina: “Vá direto!”. Sigo as ruas planas da cidade, passando por barracas da festa e parando em frente ao Banco do Brasil. Desce e despede-se. Pergunto se devo esperá-la, responde com um sonoro “não” e explica: “Vou passar também nas barracas e comprar umas coisinhas; pode voltar para o seu descanso!”.

Retorno e marco no relógio  a hora de busca-la: 11h20, antecedendo o almoço. Penso: “Daqui a pouco vou buscar essa Tia teimosa”. Em 40 minutos, volto ao local em que ela desceu, estaciono o veículo e percorro as barracas e até compro uma camisa do Galo, que guardo entre as minhas dezenas do Clube Atlético Mineiro.

Surpresa e susto: não encontro a querida Tia e fico preocupado, as ruas estavam repletas de festeiros. Retorno ao Convento. Em lá chegando, ela rezava para o almoço com as outras irmãs. Em seguida, me reprime: “Procurei você no quarto e não estava lá; você se perdeu na cidade?” Pergunto: “Como a senhora veio parar aqui?” Saiu de novo aquela sua tradicional barulhenta, doce e barulhenta risada. A explicação sai de uma freira muito simpática: “Essa nossa Irmã Superiora (ela dirige a casa) não anda dez metros a pé em Itambacuri; todos os motoristas a conhecem, gostam dela e lhe oferecem carona; até de caminhão costuma chegar aqui e nunca paga um táxi”.

 “ATÉ QUANDO VOCÊ PRETENDE FICAR AQUI?”

Chego a Itambacuri. Estamos em 2010. Sou editor de revista, cargo que carrego durante 20 seguidos anos. Desço do calhambeque, toco a campainha, portão aberto, subo a rampa que, vez por outra, chamo de ladeira. Encontro três irmãs, que gentilmente batem palmas e fazem verdadeira “festa”, saudando o “sobrinho de Irmã Miriam”, como muitas ainda me chamam. A Irmã Superiora me recebe feliz, me leva para o café, chego na hora certa. Ela pergunta: “Cadê a sua mala e a Marlete? Não vem dizer que não vai ficar aqui hoje!” Eu, meio fofoqueiro que sou, apenas aceno, zonzo de fome, devoro um pão sem manteiga, me apresentam a margarina  e, em seguida, me levanto para buscar os apetrechos que estão no veículo.

São três malas: uma grande, com filmadora e equipamentos de fotografia; outra menor, com um computador e revistas para distribuir; a terceira com roupas. Subo de novo a ladeira, empurrando duas e carregando uma, esta sem rodas. Fecho o trânsito da subida e a Tia amada vem correndo, para, põe duas mãos na cintura, sapateia e esbraveja logo, com pose de surpresa: “Até quando você pretende ficar aqui?”. Não lhe dou resposta.

Faço-me de cansado, assento-me, pego um calendário que retiro do bolso e respondo: “Estamos em agosto (sempre fui lá neste mês)”. Engulo em seco, mostro o calendário e aponto para os dias: “Vou embora dia 13 ou 14 de dezembro deste ano de 2010. Dia 12 tenho um compromisso aqui, sou padrinho de casamento de um funcionário do Convento”!

Sabem o que ela retruca? Nada. Silêncio total. Em seguida arrebenta o ambiente com a sua ampla e gostosa gargalhada, de marca registrada, só dela e de mais ninguém.

Mais tarde, chamo-a para ajudar-me a abrir as malas e lhe mostro o que tem nelas. Ela, que não perde uma viagem, ainda me diz: “Ainda bem, você me aliviou, mas cadê o terno deste casamento, eu me interesso por esse casório”.

Desta vez quem ri sou eu kkkkk.

José Sana

Em 01/09/2021

(Continua no Capítulo II. E saibam todos que ela - Ir. Miriam e eu -  já reprisamos “n” vezes todas as nossas trapalhadas).

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