quinta-feira, 17 de março de 2022

ABRAÇO FORTE, ZÉ QUINTÃO!


Tinha eu 16, 17 anos. Zé Quintão, meu colega de igreja, bagunças e galinhadas, a mesma idade. Afinal, somos de época idêntica, diferença de poucos meses, e nos encontrávamos nas férias ou intervalos de aulas em São Sebastião do Rio Preto.


E ocorreu uma noite inusitada. Às 20 horas, quando saí de casa num instante qualquer,  meu pai me avisou: “Se você chegar hoje depois de dez horas vai ficar na rua.” Não dei bola para aquela advertência. Entrei no meio da turma e daí esquecemos as horas, depois de galinhadas e seresta. Deu 3 horas da madrugada, veio o sono pegar a turma, menos os dois Zés. Contei pro meu amigo: “Olha, se a porta de minha casa estiver fechada, vou sumir do mapa”. A resposta do Quintão veio em cima do que imaginava: “Vou com você!”



Porta fechada, partimos Rio Preto acima, depois de arrumar as trouxas. Biscoitos, bolos, pães, panela, caçarola, sal, gordura, arroz, carne, um litro de cachaça, uma capa e um cobertor. Pegamos a beira do rio nas proximidades da Praia da Conquista. Marchamos. No corpo, uma roupa só. O dia de amanhã não interessava. Caminhamos, pedras sobre pedras, com uma lanterna, tudo produto da casa do Zé.  De repente, chegamos defronte a uma cidade, já cansados. — Uma cidade? — era a nossa arguição. Ao  olhar e manjar, constatamos que aquela seria o povoado do Porto, localizado a três quilômetros da Vila de São Sebastião.


Dormimos a primeira madrugada, depois de uns tragos e um bom sanduíche, quando o dia ameaçava raiar. Como dormimos: no chão, nas folhas, cobertos pelos cobertores. E o dia raiou. Frio, era junho. Nem uma escassa alma passava por lá. Zé Quintão resolveu tomar uma decisão lá para as oito: foi à rua, como dizíamos, fazer uma feira. E de lá trouxe algumas frutas e um reforço para o almoço, com garfos e facas, dois pratos e anzóis. Passava eu o dia sozinho, foragido, quieto, pronto para viver naquele ambiente delicioso, as cachoeiras fazendo barulho, o rio  caudaloso, eu nem aí, pensando no para sempre. Cobras, soins e lagartos não nos preocupavam. Essa solidão transcorria durante o dia, até que aconteceu, lá pela sexta noite, Zé Quintão não voltou. E venci a madrugada na solidão completa que parecia dos cem anos de Gabriel García Márquez.


E foi assim até o 15º dia. Pescando, lendo, bebendo cachaça, também com limão, fritando peixes e vivendo como indígenas ou eremitas. Nem queríamos saber o que pensavam de nós e daquela loucura juvenil.  Até hoje não sei e nem procurei me inteirar das fofocas. “O que pensam de mim não é da minha conta”, era uma frase que construí desde cedo. Meio mês só com água e cachaça, sentimos falta do café. Então, o amigo Quintão foi novamente à rua e trouxe apetrechos para o moca: pó, açúcar, vasilhame, tudo parecia certo. Mas na hora de virar a água no pó, cadê o coador? Não tinha. O que havia, sim, era a minha cueca branca, tipo samba-canção, que tirei para lavar. Zé Quintão, muito zeloso, deu a ela mais limpeza ainda e, usando sabão de barra, a esfregou com esmero e vontade.


Depois de lavadinha, a esticou no vasilhame todo de metal. Virou a água fervilhando no pó, sob o reino da fumaça, que cheirou no lado oposto  do rio, nos disseram depois quem passava por aquelas bandas. Estava limpo o novo modelo de coador, ninguém viu, ninguém comentou e guardamos o segredo durante mais de quarenta anos. Em comum acordo com José Quintão de Almeida elegemos aquele café o melhor de toda a nossa vida. Afinal, fazia 15 dias não tínhamos contato com a civilização, nem com café fraco ou forte.  Aquele era fortíssimo.


Devido à insistência e os recados que recebi, voltei para  casa, depois de meu pai implorar, e daí para a frente nunca mais fechar a porta da casa. Consegui, então, o passaporte para a liberdade nas noitadas de minha terra. Essas passaram a ser notáveis, brilhantes, inesquecíveis mais ainda, vividas sem nenhuma maldade, apenas vontade de viver numa vila sem mais nada para fazer.


Graças ao Zé Quintão! A quem dedico agora uma frase de Mário Quintana: A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são 6 horas: há tempo… Quando se vê, passaram 70 anos! Há tempo para viver, Zé!


(Esta crônica foi escrita em 17/03/2000. Zé Quintão fazia aniversário. Hoje, 17/03/2022, vinte e dois anos depois, a reescrevo ou republico em homenagem a ele, que me alcança na idade. Não vou dizer quanto anos temos, pois não temos anos porque quem nos têm são os anos. Ele é casado com Merandulina Caldas de Almeida; tem três filhas: Cristhianne, Carina e Carolina; três netos: Gabriela, Camille e João Vitor; mora na Bahia e é empresário. FELIZ ANIVERSÁRIO E UM FORTE ABRAÇO, QUINTÃO).

 

Foto: No flagrante, de Geraldo Quintão: Zé Quintão, em atividade social, com duas netinhas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário