Tinha
eu 16, 17 anos. Zé Quintão, meu colega de igreja, bagunças e galinhadas, a
mesma idade. Afinal, somos de época idêntica, diferença de poucos meses, e nos
encontrávamos nas férias ou intervalos de aulas em São Sebastião do Rio Preto.
E
ocorreu uma noite inusitada. Às 20 horas, quando saí de casa num instante
qualquer, meu pai me avisou: “Se você
chegar hoje depois de dez horas vai ficar na rua.” Não dei bola para aquela
advertência. Entrei no meio da turma e daí esquecemos as horas, depois de
galinhadas e seresta. Deu 3 horas da madrugada, veio o sono pegar a turma, menos
os dois Zés. Contei pro meu amigo: “Olha, se a porta de minha casa estiver
fechada, vou sumir do mapa”. A resposta do Quintão veio em cima do que
imaginava: “Vou com você!”
Porta
fechada, partimos Rio Preto acima, depois de arrumar as trouxas. Biscoitos,
bolos, pães, panela, caçarola, sal, gordura, arroz, carne, um litro de cachaça,
uma capa e um cobertor. Pegamos a beira do rio nas proximidades da Praia da Conquista.
Marchamos. No corpo, uma roupa só. O dia de amanhã não interessava. Caminhamos,
pedras sobre pedras, com uma lanterna, tudo produto da casa do Zé. De repente, chegamos defronte a uma cidade, já
cansados. — Uma cidade? — era a nossa arguição. Ao olhar e manjar, constatamos que aquela seria
o povoado do Porto, localizado a três quilômetros da Vila de São Sebastião.
Dormimos
a primeira madrugada, depois de uns tragos e um bom sanduíche, quando o dia
ameaçava raiar. Como dormimos: no chão, nas folhas, cobertos pelos cobertores.
E o dia raiou. Frio, era junho. Nem uma escassa alma passava por lá. Zé Quintão
resolveu tomar uma decisão lá para as oito: foi à rua, como dizíamos, fazer uma
feira. E de lá trouxe algumas frutas e um reforço para o almoço, com garfos e
facas, dois pratos e anzóis. Passava eu o dia sozinho, foragido, quieto, pronto
para viver naquele ambiente delicioso, as cachoeiras fazendo barulho, o
rio caudaloso, eu nem aí, pensando no
para sempre. Cobras, soins e lagartos não nos preocupavam. Essa solidão transcorria
durante o dia, até que aconteceu, lá pela sexta noite, Zé Quintão não voltou. E
venci a madrugada na solidão completa que parecia dos cem anos de Gabriel
García Márquez.
E
foi assim até o 15º dia. Pescando, lendo, bebendo cachaça, também com limão,
fritando peixes e vivendo como indígenas ou eremitas. Nem queríamos saber o que
pensavam de nós e daquela loucura juvenil.
Até hoje não sei e nem procurei me inteirar das fofocas. “O que pensam
de mim não é da minha conta”, era uma frase que construí desde cedo. Meio mês
só com água e cachaça, sentimos falta do café. Então, o amigo Quintão foi
novamente à rua e trouxe apetrechos para o moca: pó, açúcar, vasilhame, tudo
parecia certo. Mas na hora de virar a água no pó, cadê o coador? Não tinha. O
que havia, sim, era a minha cueca branca, tipo samba-canção, que tirei para
lavar. Zé Quintão, muito zeloso, deu a ela mais limpeza ainda e, usando sabão
de barra, a esfregou com esmero e vontade.
Depois
de lavadinha, a esticou no vasilhame todo de metal. Virou a água fervilhando no
pó, sob o reino da fumaça, que cheirou no lado oposto do rio, nos disseram depois quem passava por
aquelas bandas. Estava limpo o novo modelo de coador, ninguém viu, ninguém
comentou e guardamos o segredo durante mais de quarenta anos. Em comum acordo
com José Quintão de Almeida elegemos aquele café o melhor de toda a nossa vida.
Afinal, fazia 15 dias não tínhamos contato com a civilização, nem com café fraco
ou forte. Aquele era fortíssimo.
Devido
à insistência e os recados que recebi, voltei para casa, depois de meu pai implorar, e daí para
a frente nunca mais fechar a porta da casa. Consegui, então, o passaporte para
a liberdade nas noitadas de minha terra. Essas passaram a ser notáveis, brilhantes,
inesquecíveis mais ainda, vividas sem nenhuma maldade, apenas vontade de viver
numa vila sem mais nada para fazer.
Graças ao Zé Quintão! A quem dedico agora uma frase de Mário Quintana: “A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são 6 horas: há tempo… Quando se vê, passaram 70 anos!” Há tempo para viver, Zé!
(Esta
crônica foi escrita em 17/03/2000. Zé Quintão fazia aniversário. Hoje,
17/03/2022, vinte e dois anos depois, a reescrevo ou republico em homenagem a ele, que me
alcança na idade. Não vou dizer quanto anos temos, pois não temos anos porque
quem nos têm são os anos. Ele é casado com Merandulina Caldas de Almeida; tem
três filhas: Cristhianne, Carina e Carolina; três netos: Gabriela, Camille e
João Vitor; mora na Bahia e é empresário. FELIZ ANIVERSÁRIO E UM FORTE ABRAÇO, QUINTÃO).
Foto: No flagrante, de Geraldo Quintão: Zé Quintão, em atividade social, com duas netinhas.
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