Antes de escrever sobre a casa é preciso lembrar de Dona Zizinha. Seu nome continua sendo do presente (não era, do passado, como dizem os intelectuais e os iletrados) Ana Juventino Ferreira. Sei de sua história narrada pelo seu marido, Clodomiro Duarte Lage, ou Somiro, de quem eu era confidente nos dois sentidos: eu dele e ele de mim. Pode isto? É claro que sim, a vida nos permite tal engenho.
Ele e eu éramos amantes incondicionais das noites de Lua cheia. Vez por outra, apareciam os companheiros de madrugadas José Reis (Teia), João Guadalupe (Kaki) e meu primo Zé Flávio. Saía a Lua e já sabia com quem bater um papo e onde: com Somiro, na porta da Igreja do Rosário. E as suas palavras sempre gerando zoações: “Os marcianos já estão nos esperando”. Marcianos seriam os filhos de Marte que liberam a Lua para nós.
Somiro e eu fazíamos gratas revelações. Disse-me ele que, quando se casaram — ele e Dona Zizinha — era um fazendeiro próspero e ela lecionava na Comunidade do Cauís. A casa de escola, como dizia o povo antigo, está lá, hoje com o nome de seu pai, Paulo Juventino Ferreira, também genitor de nossa colunista Flor de Maio Ferreira Muzzi, filha abençoada do segundo casamento.
Mas, de acordo com Somiro, Dona Zizinha é transferida para o Arraial de São Sebastião do Cemitério, antigo nome do povoado, na década de 1920 (tenho alguma dúvida sobre a data precisa) e Somiro, devido ao gênio manso, concordou e toparam o seguinte: encher a casa de filhos. São 16 descendentes e, para susto de qualquer leitor, sei o nome de todos. Mas esta é outra história que guardo no dom, modéstia à parte, de memorialista.
Fiz esta introdução para falar de Dona Zizinha, que me amava e me odiava. Vou dar um desconto: não me odiava no sentido profundo da palavra, mas era dura comigo. Antes de minha chegada à Escolas Reunidas Nossa Senhora das Graças, depois Grupo Escolar Odilon Behrens, ela, quando saía nas ruas, sempre passava na loja de meu pai e perguntava por mim.
Na véspera de minha primeira aula no primeiro ano primário, falava: “Tãozinho, faltam tantos dias para o José Sana ter a primeira aula; ele será o aluno mais inteligente da escola”. Papai temia porque, sei lá, tinha alguma dúvida sobre a minha audição ou meu estado de letargia. Seria eu ou distraído ou mouco. Ou dono dos dois “defeitos”.
Começam as aulas e ela continua me elevando aos céus. Diz para quem quer ouvir que aprendi a ler em uma semana. Certa vez entra na sala do primeiro ano e me pede que leia um parágrafo de um texto de Ivone Borges Botelho, publicado no jornal Estado de Minas. Comenta nas ruas isto: “O danadinho leu tudo, fluentemente, depois de uma semana de aula”.
Mas, ainda na escola, certo dia, me flagra urinando num canto do pátio. O intervalo havia acabado e quase todos os meninos praticam tal ato fisiológico, considerando que a privada das meninas estava entupida e elas foram transferidas, sob a vigilância de Xandoca, zeladora, para a privada masculina. E nós?
Ao nos perfilarmos para a entrada e a continuidade das aulas, Dona Zizinha faz sua pregação. Naquele momento, olhando para a multidão de cem alunos (mais ou menos) e depois para mim, diz de bom tom, eu colado a ela: “Imaginem e estou incrédula que apanhei o aluno José Sana urinando no pátio”. Viro uma peça de museu de cera, fragmento avermelhado. Fico realmente teso, inerte. Ao chegar à minha casa, levo algumas chicotadas antes de explicar o ocorrido e me livro de ficar de joelhos ao dizer: “A bexiga estourava!”
Já deveria ter entrado no tema de hoje, mas me perco totalmente ao recordar façanhas na escola. Ainda tenho mil causos engraçados, uns alegres, outros tristes, como do Biozinho, de quem quase lhe furei o olho direito com um vidro de leite. Já contei esta história.
Então, entro no tema de hoje. Será? E começo assim: sou um pouco suspeito depois de ouvir, um dia, Dona Zizinha dizer-me: “Eu cobrava muito de você porque uma pessoa inteligente não pode errar”.
Prova ao ser autora de duas façanhas de alto sentido. Tinha eu 16 anos e ela me convoca para fazer o censo escolar em todo o município, atividade que rende uma grana quase imensurável; com 22 anos me chama para substituir a prima Maria Geralda em sala de aula como professor de Português (ela sai de férias porque se casou e teve férias). Crédito consumado: dinheiro e confiança.
Ainda estou um pouco afastado do tema principal mas não posso deixar de referir-me à seguinte educadora, inigualável: Maria da Glória Lage. Trata-se da filha mais velha de Somiro e Dona Zizinha, a segunda depois do primeiro filho da fila que começa com Ivan. Ela e eu estudamos em Guanhães e moramos quase dois anos na mesma casa, do senhor João Moura e Sá Chica.
Glória sabe tudo: Geografia, História, Latim, Francês, Inglês, Ciências, Matemática, Desenho e Português. Nem a enciclopédia Barsa entra em qualquer casa, mas a enciclopédia Glória me deslumbra. Tudo o que lhe perguntamos ela responde sem pensar. Após a resposta, tomo eu a liberdade de agradecer-lhe assim:“ Glória e Deus nas Alturas!” Ela somente sorri.
Glória casou-se com José Gonçalves Mateus, de apelido Jojó, meio assim às escondidas porque era amor mesmo e, como escreveu Nelson Rodrigues, “o amor é eterno; se acaba não era amor”. Nasce a primeira filha. Fico sabendo que é uma menina irrequieta, só isso. Mas concluo que inquietação é sinônimo de inteligência. Seu nome: Laira Vanessa Lage Gonçalves, que ultrapassa, às custas de ser uma nova Barsa digitalizada, várias travessias do governo federal, em cargos diversos, ascendentes, pelo lado da técnica e da honestidade.
O próprio ex-marido, meu primo Humberto, diz-me: “Sumidade de inteligência”. Assim também nasce Sophia, filha desse primeiro casamento, quem carreguei em Brasília, ainda novinha, já tem 22 anos, é quase engenheira civil. Já estaria velho eu se nisto acreditasse ou fosse apegado à matemática. Graças a Deus, sou analfabeto nisso.
Aff, agora sim: em 1933 chega a São Sebastião do Rio Preto meu Vô Seraphim Sanna com a sua comitiva vinda de Passabém. Desbravando estradas que não existiam. Num caminhão doido, estavam ele, Vó Maria, Tia Magda e Alfeu, este de poucos dias, no colo. Além do motorista, é claro.
A residência inicial dessa turma, que deixara Itália, minha Mãe e Tio Líbio em Ouro Preto, foi na Rua São Geraldo. Pouco tempo depois, Seraphim comprava a casa do velho João Moura, onde está a pintura em letras garrafais: “Pharmácia São José”, incluindo a casa ao lado, vendida para Clodomiro Duarte, o mesmo fazendeiro que havia saído da roça acompanhando a esposa Dona Zizinha. Esta é a casa do título deste texto.
Passa o tempo. Chega, completamente abalada pelos anos trôpegos vividos, a casa, colonial, semi-barroca, que esteve em outras mãos até chegar ao seu destino infalível: Laira Vanessa. Esta de bravura indômita, e sentimental. Assume todas as onerações que lhe eram devidas e enfrenta até a pandemia da Covid-19, ao lado de companheiro. A casa quase prontinha, já com os sagrados moradores. Falta somente a varanda, mas dá para ver que será reimplantada pela cabeça super avançada da nova proprietária. Seria agora a casa de Laira?
A partir do ano passado, como se fosse uma santa, faz o milagre que provoca uma festa no Céu: reúnem-se Somiro e Dona Zizinha, Glória e Jojó, e todas as outras raízes ascendentes e descendentes para completarem a frase de que não abro mão: “Glória e Deus nas alturas, paz na Terra aos que entendem de paz e boa vontade!”
Amém.
José Sana
Em 29/08/2022
Parabéns! Que memória fantástica hein José Sana! Fiquei sabendo agora do início dessa história. O meio eu já conhecia e descobri que não chegou ao fim. Será perpetuada através da neta da dona Zizinha, a Laira Vanessa, cujo nome invejei e coloquei na minha primeira filha, Laira.
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