sábado, 13 de maio de 2023

ZÉ FLÁVIO 80

Zé Flávio preparando-se para o casamento de seu filho André


São Sebastião do Rio Preto, 13 de maio de 1943. Nasce um menino pequeninho mas robusto, filho de Francisco Dias de Azevedo e Luzia Cândida de Almeida, esta minha tia.

Rápida apresentação para dizer que José Flávio de Almeida Dias, meu quinto primo (Sebastião, Maria Geralda, ele e Dezinho, os primeiros) foi um companheiro de peraltices e de coisas sérias, testemunha ocular de fatos até inacreditáveis. 

Simplifico assim: um ano e meio ralando em Belo Horizonte no raiar de nossa juventude; aventuras nos quintais de São Sebastião; fuga de casa duas vezes e mil e tantos apertos na vida, inclusive que fomos presos duas vezes num só dia, no tempo em que recebíamos  a seguinte sentença de um policial: “Você nada fez mas vai preso assim mesmo!”.

É claro que vou ser obrigado a resumir demais estas linhas porque daria um livro a nossa esquentada história. Tive e tenho outros amigos inseparáveis como José Quintão de Almeida (café na cueca), Godofredo Duarte (fominha em BH), Tony do Somiro (in memoriam) e outros mais. Vou parar aqui para não me incorrer em injustiças. São muitos os chegados e centenas as histórias.

Elejo agora um acontecimento, a defesa de um patrimônio histórico-cultural de nossa terra,  como tema principal a ser citado. Foi assim: Padre Raul de Melo, de quem fomos coroinhas nas missas em latim, anuncia que derrubará a Igrejinha do Rosário, um enfeite belo e cheio de lendas e passagens inesquecíveis. 

No teto da igreja e em suas paredes havia pinturas de discípulos de famosos artistas  mineiros e brasileiros; na sacristia uma relógio da época do Brasil Colonial e outras peças, como imagens de Alfredo Duval (Itabira) e outros escultores do período da Inconfidência Mineira, sinos majestosos que tilintavam na alegria e na tristeza. 



 Igrejinha do Rosário: emblema de nossa luta pela sua preservação. Perdemos a causa

O Padre avisou, em circular encaminhada aos são-sebastianenses, que derrubaria o nosso Rosarinho “por falta de recursos de mantê-lo”. O povo aquiescente vacilou, jogou a correspondência no lixo e a ameaça se manteve de pé e decisiva. Surpreendentemente, surgiu o famoso “quarteto da desordem”, como éramos  chamados (Zé Flávio, Teia do Roque, Joãozinho Kaki e eu). Elaboramos um abaixo-assinado, protestando e pedindo socorro ao bispo de Diamantina, Dom Geraldo de Proença Sigaud, na época responsável pela Diocese a quem pertencia a Paróquia.

Corremos toda as casas e ninguém quis assinar o bendito documento que acabou amarelado pelo tempo. Não desanimamos. Puxamos fios de nylon para o sobrado de meu avô Seraphim, de lá batíamos o sino sem parar nas madrugadas friorentas;  penduramos gatos em sacos para infernizar a vida do Padre e, enfim, marcamos tempo numa época em que só em nós encacharia  o termo cidadão. Hoje, ouço de vez em quando a pergunta: “Por que derrubaram esse patrimônio?” A resposta está aí, sempre a sociedade precisa de doidos varridos.

Zé Flávio era o “topa tudo”, jamais dissera a mim que “isso não vou fazer”. Voltando a Belo Horizonte, eis outro fato: roubamos duas galinhas no Bairro São Geraldo e levamos a outra casa no Carlos Prates para saborear com arroz. Na época, andar de ônibus (lotação), “tróleibus” e  bonde na capital era chique; cidadãos elegantes de chapéus de lebre; mulheres de manto, salto-alto, abanando leques; meninos de gravatinha, meninas de fitas no cabelo -  tudo fazia parte da “belle époque”.

Nós, de alinhados pouco tínhamos, rapazes desempregados, inclusive, para quebrar o requinte da noite, portávamos duas galinhas, roubadas num quintal. As aves bem-procedidas, entramos do ônibus abarrotado de gente em pé. As penosas aves estavam enroladas em jornais. Passei a catraca, paguei as tarifas e Zé Flávio se estacionou no fundo da condução, eu perto do motorista. Viro-me para trás e vejo meu primo desabando em risos incríveis e frenéticos, até agachando-se para viver um cenário tão paradoxal.

Ele insiste em rir e eu continuo sério. De repente, dou  fé dos motivos de tanto contentamento: a população inteira do lotação quase desmaiava em risadas intermináveis também, vendo a galinha observadora de diferente paisagem, condenada à morte, que eu segurava, atrever-se em romper o jornal e colocar o pescoço para fora. Não sei como sobrevivi àquele momento tão inusitado e demasiadamente vergonhoso para a minha timidez mineira do interior de Minas.

Não vai sobrar espaço para contar tantas peraltices que praticamos no mundo, mas vou revelar mais uma façanha, esta que me orgulha pela simplicidade do caro primo-irmão (tenho muitos primos, os quais considero como irmãos também). 

No dia em que fui  à Fazenda Córrego dos Casados pedir casamento (1.º de dezembro de 1968, um domingo) convidei-o para testemunha da feliz audácia. Ele topou e passou o dia por lá, enquanto eu tomava uma decisão que dura mais de 50 anos  e é válida para além da vida e para além da morte: casar-se, ter cinco filhos, respeitá-los fielmente e testemunhar o prazer de ver a felicidade, também, de dez netos.

Parabéns, Zé Flávio, que se casou também e tem dois belos filhos! Infelizmente, perdeu a esposa no decorrer do caminho. Tudo se resume assim, ele mesmo mostra sua simplicidade diante de quaisquer ocorrências, felizes ou não: “É a vida”. Então, repito por ele: é a vida que lhe dá o que merece, chegar aos 80, pleitear os 90 e, se tiver paciência, o centenário não vai falhar.

José Sana

13/05/2023

Fotos: André Dias e Arquivo NS

6 comentários:

  1. Grande José Flávio, me chama de menino da Banqueta, apesar de eu ser do Jacinto, aceito muito bem esse rótulo, porque atrás disso, ele conta uma outra história muito verdadeira! Abraço Zé vc é o cara!

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  2. Muito bacana, José Sana!
    Obrigado por compartilhar conosco as façanhas do meu pai rs. Grato pela consideração!

    At.te,
    André

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  3. Tempo bom,né amigo.A gente nunca esquece dos amigos.sempre lembro do Ze Flávio. Adorava suas risadinhas.Por favor,dê um abração nele por mim.

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  4. Adoro essas histórias! Pode publicar o livro que serei a primeira a comprar e ler.
    Viva o Zé Flávio!

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