Sem fazer média alguma, amo muito os adolescentes, os quais, por
absoluta afinidade os chamo de “aborrecentes”. A adolescência é um período de
maior transformação que sentimos na vida, pulando de criança para um jovem do
mundo. E foi na minha adolescência que vivi uma verdadeira guerra dentro e fora
de mim.
Agitei o meu arraial, São Sebastião do Rio Preto, onde tive a
felicidade de nascer. Inicialmente, era um santinho, daqueles de vestir batina de
padre e ir para a igreja ser um humilde coroinha, que ajudava missa em latim:
“Ad introito altare Dei! Ad Deum quae laetificam juventutem meam!” — assim
começava a cerimônia de todo dia. Mas, por minhas contestações ou
questionamentos feitos aos mais velhos, fui sendo chamado de rebelde. Encostado
num canto da vida, a rebeldia começou a se manifestar de verdade.
Atrás da personalidade revoltosa havia um forte sintoma de cidadania. Queriam construir um prédio
escolar num local interessante, onde morava o senhor Lulu Garcia, que meu avô
Godofredo adquirira para doar ao Estado. Mas preferiram utilizar um lote
afastado da cidade. Pois me juntei a um
amigo e derrubei parte da construção. Esse assunto não é o tema do momento. Só
uma pitada do novo ser que nascia no meu interior.
Quando terminei meu honrado curso fundamental, na época uma conquista de muita valia para qualquer estudante, no Ginásio São Francisco, de
Conceição do Mato Dentro, chegava entusiasmado em casa, disposto a conter a
minha rebeldia, partir para o Científico, em Belo Horizonte. Mas, como sempre
fuçando as gavetas de meu pai, quase caí
de costas ao me deparar com uma circular, assinada pelo pároco local,
comunicando aos são-sebastianenses a decisão paroquial de demolir a Igreja do
Rosário, rara peça colonial-barroca, fincada num ponto estratégico da Rua do
Rosário, bem no centro da vila.
Suei frio ao ler a carta. Nada comentei com ninguém, a não ser
aos meus amigos também afinados com a rebeldia do adolescente. Peguei uma folha
de papel almaço e subscrevi um abaixo-assinado contra a decisão do padre e saí
pelas casas à procura de assinaturas. Como era previsível, consegui apenas uma
meia dúzia de autógrafos, todos de pessoas que não eram respeitadas entre os
adultos, esses verdadeiros pelegos da igreja, que tinham medo até de pensar que
o padre não fosse o verdadeiro deus.
Sem sucesso, imediatamente partimos para outra alternativa, aí
com a ajuda do Zé Flávio, que tinha, até então, fama de mais peralta que eu.
Mas superei-o no decorrer do tempo, destronando a sua fama. Pegamos um carretel
de fio de nylon, amarramos no sino da igrejinha e o esticamos até a janela da
casa do meu avô Seraphim, sem que sequer ele visse. Tivemos que buscar uma
escada que ficava sempre na porta da casa do Benedito Buty, exímio carpinteiro,
a quem chamávamos de Nelson Madela, por causa de sua semelhança física com o
líder que derrubou o Apartheid na África do Sul, coincidentemente falecido
neste dia 5 de dezembro.
Quando não se ouvia sequer sapos batendo suas gargantas como se
fossem metálicas na beira do córrego e do esgoto a céu aberto, na calada da madrugada mais silenciosa que
possa existir, comecei a tilintar o sino, num repicar incessante, cada vez mais
forte, insistente, às vezes tocando avisos fúnebres arrepiantes. A vila ficou
em polvorosa. Pessoas chegavam, assustadas, às janelas, outras corriam pelas
ruas de roupas de dormir, os moradores da Rua de Cima vinham para a Rua de
Baixo, ninguém conseguia entender aquele fenômeno, acho que o Zé Flávio se
recolheu à sua casa de pois de retornar com a escada ao seu lugar de origem.
O mais engraçado foi o meu avô que chegou à sua janela, na outra
ponta, e gritou: “Oh, rapaz, vá dormir, pare com isso, estou com sono e
cansado!” E, de verdade, dei uma trégua e me enfiei debaixo do cobertor naquele
quarto que sempre era usado, principalmente pelos netos. Mas no dia seguinte,
de novo o tilintar do sino quebrava o silêncio da madrugada. As pessoas
comentavam entre si que podia ser alma do outro mundo, quem sabe dos escravos
que ajudaram na construção do templo lá pelos idos do século XIX, quando da
fundação da paróquia. E nos dias seguintes, continuaram as batidas de sino, as
pessoas souberam os nomes dos autores, eram almas desse mundo mesmo, revoltadas
com a iminente demolição do histórico templo.
Para não dizer que não deixei outra marca nesse trabalho
condenado por quase todo o arraial na época, ainda na minha juventude, fundei e
fiz circular algumas edições do jornaleco Folha Sebastianense, que contou
detalhadamente o fato, tendo, inclusive, merecido uma colaboração abalizada do
saudoso conterrâneo Dr. Sebastião Ferreira de Oliveira, com uma resposta do
autor da derrubada, o Padre Raul de Melo. Aí foi feito um relato do que era a
igrejinha, uma verdadeira peça do patrimônio cultural, cópia do barroco até então
seguido nas Minas Gerais. E me lembro que a justificativa da derrubada, que não
me convencera, era que o templo tinha duas torres na sua construção original e
estava, naquela época, com o estilo alterado. Mas nenhuma referência aos
altares bem trabalhados por artistas especiais.
A escultura e a pintura coloniais da igreja, essa notada nos
altares, vinha da inspiração do Novo Testamento, centralizado em Jesus Cristo e
sua doutrina de Salvação, temática elaborada por meio de muitas cenas do Evangelho. Atribuíam a discípulos e/ou seguidores dos mestres, da escultura, o
Aleijadinho, e da pintura, Ataíde, esse com obra feita no teto, em que
apareciam as figuras de anjos voando no espaço, alcançando o Céu e mostrando,
numa iconografia perfeita, como seria a busca da vida eterna no paraíso. Tudo
isso mereceu um ato mortal de destruição, indo parar todas as preciosidades nas
cercas dos fazendeiros da região, vendidos a preço de qualquer coisa, cujo
primeiro resultado financeiro serviu para construir a Igreja de Bom Jesus, na
Vila de igual nome, de acordo com o próprio padre. E ninguém deu mais notícias
de um relógio de mais de dois metros de altura, colonial, de contornos bem
trabalhados, algarismos romanos e pêndulos da altura da metade da peça. Sumiu para sempre, chegando um padre a acusar outro
padre de seu surrupio por meio do jornalzinho. E por falar em surrupio, na
Igreja Matriz de São Sebastião foram retirados e destinados a fins não sabidos,
seis lustres gigantescos de cristais, que iluminavam grande extensão do templo.
Como se não bastasse tal situação, em 1976, quando eu cursava jornalismo na
Fafi-BH, produzi um texto publicado no Diário da Tarde e jornal O Passarela, de
Itabira, com o título em tom de denúncia: “Roubaram a patena (puro ouro, valor
incalculável) da minha igreja”.
Assim fomos surrupiados no transcorrer da vida. Deprimimo-nos
diante de tantos fatos desagradáveis. Sentimo-nos culpados, às vezes, por não
termos sido mais guerreiros, mais enérgicos, mais audaciosos. Mas, e agora?
Volto a perguntar: e agora, que as paredes do outro templo, a centenária Igreja
Matriz, também linda, também histórica, também uma riqueza patrimonial e
cultural de São Sebastião do Rio Preto, começam a trincar, a rachar, diante da
violência de carretas-monstros que atravessam as suas da agora cidade?
Só deixo este questionamento: vamos nos acovardar e permitir que
a fome de riqueza de empresas e trustes multinacionais
acabem com a nossa alma, o nosso orgulho e pisoteiem a integridade de nosso
povo?
Com a palavra todos os são-sebastianenses de vergonha ou
sem-vergonha na cara...
Vila de São Sebastião do Rio Preto, setembro de 1955. | Foto de Seraphim Sanna Filho. Pintura do artista itabirano Márcio de Freitas (reprodução parcial do quadro) |
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