“Eu
queria acabar com toda a ignorância no mundo”
Ninguém sabe
mais que a Natureza. Natureza não é
somente o verde, as matas, o solo, a água, a lua, o sol e os seres viventes.
Ela é um conjunto representado por cada uma dessas partes e é o todo. Trata-se
de uma lei já sancionada pelo Ser Supremo e, portanto, algo tangível, que não
se rende, uma só palavra, irredutível.
Daí, então, a decisão de entrevistar a Cachoeira do Chuvisco. Ela não
mente, não precisa de reuniões fantasiosas, não discute com ninguém, sequer nos
retruca. Ela apenas diz e, como faziam, ou ainda fazem, os oficiais de
cartório, bate o carimbo nas suas palavras em que se lê apenas um termo, “Dou
Fé”, e vem logo a assinatura da Senhora Tabeliã, que é o conjunto da obra
divina.
A decisão da
entrevista ocorreu quando Afra Regina Sana, minha prima desde o tempo da São
Sebastião colonial, e Marcos Paulo Almeida Sá, amigo que representa a nova
geração da cidade, decidiram me acompanhar — ou fui eu quem os acompanhei — à
confluência de três municípios: Itambé do Mato Dentro, Santo Antônio do Rio
Abaixo e São Sebastião do Rio Preto, na linda localidade chamada de Cachoeira
do Chuvisco. Na terça-feira, três horas
antes de nos apresentarmos para a reunião artificial da Anglo American com uma
fração mínima da comunidade são-sebastianense, estávamos lá naquele ambiente
propício. Esclareço que a localidade é linda, com belas construções que
combinam com a paisagem, somando-se ao bucólico encontro dos rios Preto e Peixe
para, finalmente, fechar o cordão de ouro com a Cachoeira propriamente dita.
Uma brisa
sobrevoa o espaço como se fosse um oxigênio abençoado para quem está nesse
atual sufoco de calor e baixa densidade do ar. O barulho forte mas apaziguador
de raiva e ódio das águas soa como se fosse uma bênção vindo de cima. Só
contrasta com o ambiente o perigo malicioso que envolve o entorno da bênção
divina: algum lodo, cipó salvador (eu mesmo, como um Tarzan moderno, sem sunga
e sem Jane e a pequena gorila me agarrei em suas sustentadas seguranças). A própria
Cachoeira, que aceitou a entrevista, me alertou sobre a periculosidade e me
convidou a sentar-me numa pedra de segurança máxima (não cadeia), deixando os fotógrafos
Marcos e Afra à vontade e um pouco distantes.
E aí se deu a
entrevista, que transcrevo a seguir (CC = Cachoeira do Chuvisco):
EU — Sem agendar
a entrevista, por que a senhora topou falar comigo com exclusividade e de
supetão?
CC — Sempre precisei
falar com alguém desse mundo animado, ou inanimado, para transmitir uma
mensagem. Mas as pessoas vêm aqui, filmam, fotografam, namoram, me elogiam, até
me bajulam, mas nem se interessam em conversar comigo. No seu caso, você chegou
e logo nos identificamos. Mas sei que não é a primeira vez que vem aqui.
EU — Acertou, verdade. Sou velho em suas terras e
água. Agora só quero saber quais são
as mensagens que a senhora interessa enviar
aos seres viventes — homens,
mulheres, crianças e os animais chamados
de irracionais, além das plantas?
CC — Mensagens? Apenas o seguinte: que cada ser vivente aprenda a linguagem que falo agora, o idioma da Natureza. E que você consiga difundir as palavras desta entrevista para que tudo seja proveitoso.
Espero que outros venham e troquem experiências e ideias comigo.
EU — Volto a
perguntar: durante essa sua longa vida a senhora não se identificou com outro
habitante deste mundo?
CC — É claro que
sim. Identifico-me com muitos, principalmente com fotógrafos, poetas,
escritores, jornalistas, pensadores, crianças (que até nem gosto que venham
aqui por causa da falta de segurança) e
outros admiradores do belo. Mas é uma questão de avanço da natureza e sensibilidade.
EU — A senhora
quer falar apenas como cachoeira, água, ecossistema, nesta entrevista, ou topa
tocar em outros assuntos?
CC — Olha, prefiro
deixar você à vontade. Pergunte o que quiser. Caso não possa dar resposta a
algum questionamento, aviso que esse assunto não é da minha alçada. Mas
adianto: só não é da minha competência o que se referir à individualidade das
pessoas. O mundo é coletivo e esta é a regra que deveria ser transformada em
lei: fora do conjunto o mundo despenca. É a individualidade que provoca o
egoísmo e aí está uma das causas mais determinantes que contribuiu para o caos
já vivido pela raça a que você pertence, a humana.
EU — O mundo está
perto de um caos, um novo holocausto, ou mesmo o que as religiões chamam de
apocalipse?
CC — De tudo isso.
Não importa o nome, não importa o conceito. Importa a confusão que o ser humano
preparou para si próprio. Como se vê, esse ser ainda não entendeu patavina,
quer dizer que o apocalipse não será evitado.
EU — Especificamente
sobre a senhora, o desequilíbrio ecológico a incomoda neste isolamento que
parece se imiscuir o seu mundo?
CC — Você e os seus
amigos e companheiros no mundo desconhecem o mal-estar que me atinge aqui,
mesmo no meio dessas densas matas. Veja como estão cada vez mais secos os rios
que me formam. Só me fortaleço nesta época do ano, quando a chuva me abençoa
dia e noite. E para azar não somente meu, mas de todos nós, você já deve ter
visto a passagem de tubos da mineração. Para instalar esses tubos, houve cortes
imensos de montanhas, porque o funcionamento do transporte de matéria-prima
depende de uma plataforma nivelada, não se sobem serras.
EU — Algum outro
dano ao ecossistema da região?
CC — Não somente da
região, mas de todas as bacias que recebem a minha riqueza inalienável, a água.
Observe que uma mancha vermelha traz um
colorido diferente na queda d’água. Apesar de fazer uma contenção quase
perfeita do volume de terra, a devastadora não consegue evitar a poluição e
passo a receber detritos diversos, não digo sujeiras das cidades, como esgoto e
substâncias químicas, mas a própria terra que é estranha ao meu ambiente. São
amigas, a terra e a água, mas dentro de nossas funções específicas dentro do
conjunto da natureza.
EU — Há o ser
humano favorável e o contrário ao empreendimento. O que a senhora aconselharia
que fosse feito?
CC — Muitos vão se assustar
com a minha opinião: não sou contra o progresso e o desenvolvimento. Seria
contra no princípio, quando as devastações não tinham sido difundidas. Se
houvesse uma freada naquele início, o homem estaria bem protegido e poderia
continuar seguro no seu hatitat. Agora, não. O crescimento populacional
do mundo empurra o seu habitante a procurar saída para dar qualidade de vida a
todos, embora isso já seja apenas um sonho, um alvo praticamente inatingível.
Mas que precisa haver gritos soando mesmo que seja no deserto, isso é preciso.
EU — Qual seria a
ideia dos contrários que permitiria o empreendimento mineral na região com
retorno palpável?
CC — Por exemplo, a
construção de estradas de ferro ao invés do mineroduto. O retorno social da
ferrovia é palpável. Seria uma luta sem cessar da comunidade: primeiro pela
mudança no projeto, depois para que o transporte fosse estendido a outras
finalidades, principalmente de pessoal. Sei que houve conversações neste
sentido, mas não houve firmeza e
insistência das comunidades da região na defesa de um objetivo comum. Na falta
de união, fator que favorece os destruidores, a perda social é imensa.
EU — E agora?
CC — Pode imaginar
toda sorte de respostas cruéis da natureza. Não há mais saída. O empreendimento
está de pé. Os seus defensores estão nadando de braçadas. Apelam para,
incrivelmente, os benefícios imediatos
dados aos municípios, como Santo Antônio do Rio Abaixo, São Sebastião do Rio
Preto e Passabém, os quais estão recebendo o mais bruto ônus da construção. É
bem provável que, principalmente São Sebastião, deixe de existir no final das
obras do mineroduto. A cidade recebe hoje um imposto miserável e vergonhoso,
cerca de R$ 50 mil mensais de ISS. Enquanto isso, as construções,
principalmente as que jamais poderiam sair de cena, estão sofrendo abalos. Não
é preciso contratar nenhuma firma especializada para estudar as trincas e
rachaduras. Basta conhecer a história do antigo arraial: as casas e igrejas
foram construídas para suportar um trânsito de animais, sequer de veículos mais
pesados e, principalmente de carretas destruidoras.
EU —A senhora
aconselharia o povo a se manifestar com
o bloqueio de trânsito pesado na entrada da cidade?
CC — Entendo até que
a mineradora seja consensual neste caso. Seus ilustres técnicos, principalmente
engenheiros especializados, sabem que não é humano, não é condinzente com a
realidade esse grosseiro desfile de máquinas de altíssimo poder de destruição
em ruas muito acidentadas, com curvas sinuosas e traiçoeiras.
EU — O mesmo não
ocorre em Passabém e Santo Antônio?
CC — Sim, ocorre,
mas com repercussão de menor violência. Passabém é uma cidade plana dentro do
perímetro urbano. Mas o seu calçamento está, também afundando. Parece que
as construções estão preservadas, mas a
intensidade do trânsito pode, no decorrer do tempo, provocar estragos. Em Santo
Antônio, o trânsito pesado ainda não desfila pelas ruas principais, mas,
aguardem, vai tornar tudo uma desordem em pouco tempo, pois há mineração a ser
explorada nas imediações, no rumo de Conceição do Mato Dentro.
EU — Voltando ao
seu habitat, a senhora sugere um plano turístico para esta região?
CC — Olha, como já
disse, o ser humano deveria ter contido o avanço da poluição no Planeta no
início. Mas não soube perceber os pesados resultados que ocorreriam. Agora, sem
retorno, é preciso administrar o fim da vida na Terra...
EU — Fim? Haverá
um fim do mundo?
CC — É claro que
sim. Caminhamos para isso. Sem retorno. O motivo é claro, todos veem, até os
cegos. Basta entender que a vida não ocorreu nem ocorre somente neste Planeta.
A ciência vai alcançando respostas concretas para muitas perguntas
interessantes. A Terra irá se tornar inabitável. Só não posso prever quando,
porque tudo depende, exatamente, do comportamento de vocês daqui para a frente.
Como já disse: saber administrar o fim.
EU — Então,
deveria haver um plano turístico para a senhora aqui?
CC —Sim. Já tivemos
mortes neste local. A região do meu entorno continua perigosa. O que há aqui é
uma placa com número de telefone de emergência, instalada pela Prefeitura de
Santo Antônio do Rio Abaixo, além das estradas. Para o acesso precário, há
estradas. São Sebastião do Rio Preto me prestou uma homenagem pública, me
elegeu a Terceira Maravilha, mas não construiu sequer o acesso do lado de seu
município. Acho que os dois municípios deveriam se entender e olhar com mais
carinho por mim.
EU —A senhora quer
ser frequentada?
CC — Bem frequentada
sim, mal frequentada não.
EU —Ainda vai morrer
muita gente aqui?
CC — Infelizmente,
vai, porque o ser humano insiste em ser ignorante. Ele tem todas as informações
ao seu alcance acerca do passado, do presente e do futuro, mas prefere viver na
escuridão do saber. Eu queria acabar com toda a ignorância no mundo. Mas não
posso fazer isso sozinha.
EU — A senhora tem
mais algumas mensagens a dizer?
CC — Tenho muitas,
mas nem adianta mais. O mundo é movido pelo Dinheiro (quero que coloque essa
palavra com inicial maiúscula porque ele virou Deus). Ele é quem manda. Ninguém
pode constestar. O que as religiões pregam não é do alcance humano. As pessoas
fingem que entendem. Mas na hora do pega pra capar, vem lá o Deus que domina
todos.
EU —Considerando que
a senhora falou muito mais para uma comunidade pobre do que para o resto do
mundo, quer dizer que perdemos tempo
nesta entrevista?
CC — Disse que quem
manda no mundo é o Deus Dinheiro. Esse deus, move para o mal e para o bem. Mais
para o mal. É o primeiro responsável pela corrupção, pela malversação do
dinheiro público.
EU —Em muitas
cidades pequenas perderam a noção do público e do privado. A senhora sabe
disso?
CC — É claro. O
problema é que os legisladores fizeram leis para coibir grandes engates e não
alcançaram o alvo. Nas pequenas comunidades, vendo o rico roubar, o pobre
também se julga no direito e pede ao seu político que lhe faça doações de
roubos. Os prefeitos, não todos, é claro, se julgam no direito de fazer o que
fazia Robin Hood naquela lenda do cinema: roubar dos ricos e dar para os
pobres. O rico, neste caso, é o poder público.
EU —Agradeço a sua
boa vontade em me atender. Deseja dizer mais alguma coisa?
CC — Não, é melhor
encerrar por aqui. Temos muitas outras figuras aqui entrevistáveis, como as
matas, os rios, as pedras que ornamentam, também, o rio, os peixes e até mesmo
a senhora Dona Poluição que vai nos ameaçando, além do Desmatamento. Pode
procurar cada um desses aí que, na certa, você será atendido.
EU —Muito obrigado
pela sua gentileza da entrevista!
CC —Sempre às
ordens.
Crédito: Fotos de Marcos Paulo Almeida Sá
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