sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

ENTREVISTA: SENHORA CACHOEIRA DO CHUVISCO



“Eu queria acabar com toda a ignorância no mundo”


 Ninguém sabe mais que a  Natureza. Natureza não é somente o verde, as matas, o solo, a água, a lua, o sol e os seres viventes. Ela é um conjunto representado por cada uma dessas partes e é o todo. Trata-se de uma lei já sancionada pelo Ser Supremo e, portanto, algo tangível, que não se rende, uma só palavra, irredutível.   Daí, então, a decisão de entrevistar a Cachoeira do Chuvisco. Ela não mente, não precisa de reuniões fantasiosas, não discute com ninguém, sequer nos retruca. Ela apenas diz e, como faziam, ou ainda fazem, os oficiais de cartório, bate o carimbo nas suas palavras em que se lê apenas um termo, “Dou Fé”, e vem logo a assinatura da Senhora Tabeliã, que é o conjunto da obra divina.

A decisão da entrevista ocorreu quando Afra Regina Sana, minha prima desde o tempo da São Sebastião colonial, e Marcos Paulo Almeida Sá, amigo que representa a nova geração da cidade, decidiram me acompanhar — ou fui eu quem os acompanhei — à confluência de três municípios: Itambé do Mato Dentro, Santo Antônio do Rio Abaixo e São Sebastião do Rio Preto, na linda localidade chamada de Cachoeira do Chuvisco. Na  terça-feira, três horas antes de nos apresentarmos para a reunião artificial da Anglo American com uma fração mínima da comunidade são-sebastianense, estávamos lá naquele ambiente propício. Esclareço que a localidade é linda, com belas construções que combinam com a paisagem, somando-se ao bucólico encontro dos rios Preto e Peixe para, finalmente, fechar o cordão de ouro com a Cachoeira propriamente dita.

Uma brisa sobrevoa o espaço como se fosse um oxigênio abençoado para quem está nesse atual sufoco de calor e baixa densidade do ar. O barulho forte mas apaziguador de raiva e ódio das águas soa como se fosse uma bênção vindo de cima. Só contrasta com o ambiente o perigo malicioso que envolve o entorno da bênção divina: algum lodo, cipó salvador (eu mesmo, como um Tarzan moderno, sem sunga e sem Jane e a pequena gorila me agarrei em suas sustentadas seguranças). A própria Cachoeira, que aceitou a entrevista, me alertou sobre a periculosidade e me convidou a sentar-me numa pedra de segurança máxima (não cadeia), deixando os fotógrafos Marcos e Afra à vontade e um pouco distantes.

E aí se deu a entrevista, que transcrevo a seguir (CC = Cachoeira do Chuvisco):

EU — Sem agendar a entrevista, por que a senhora topou falar comigo com exclusividade e de supetão?
CC — Sempre precisei falar com alguém desse mundo animado, ou inanimado, para transmitir uma mensagem. Mas as pessoas vêm aqui, filmam, fotografam, namoram, me elogiam, até me bajulam, mas nem se interessam em conversar comigo. No seu caso, você chegou e logo nos identificamos. Mas sei que não é a primeira vez que vem aqui.

EU — Acertou, verdade. Sou velho em suas terras e água. Agora só quero saber quais são as mensagens que a senhora  interessa enviar aos seres viventes —  homens, mulheres,  crianças e os animais chamados de irracionais, além das plantas?
CC — Mensagens? Apenas o seguinte: que cada ser vivente aprenda a linguagem que falo agora, o idioma da Natureza. E que você consiga difundir as palavras desta entrevista para que tudo seja proveitoso.  Espero que outros venham e troquem experiências e ideias comigo.

EU — Volto a perguntar: durante essa sua longa vida a senhora não se identificou com outro habitante deste mundo?
CC — É claro que sim. Identifico-me com muitos, principalmente com fotógrafos, poetas, escritores, jornalistas, pensadores, crianças (que até nem gosto que venham aqui por causa da falta de segurança)  e outros admiradores do belo. Mas é uma questão de avanço da natureza  e sensibilidade.

EU — A senhora quer falar apenas como cachoeira, água, ecossistema, nesta entrevista, ou topa tocar em outros assuntos?
CC — Olha, prefiro deixar você à vontade. Pergunte o que quiser. Caso não possa dar resposta a algum questionamento, aviso que esse assunto não é da minha alçada. Mas adianto: só não é da minha competência o que se referir à individualidade das pessoas. O mundo é coletivo e esta é a regra que deveria ser transformada em lei: fora do conjunto o mundo despenca. É a individualidade que provoca o egoísmo e aí está uma das causas mais determinantes que contribuiu para o caos já vivido pela raça a que você pertence, a humana.

EU — O mundo está perto de um caos, um novo holocausto, ou mesmo o que as religiões chamam de apocalipse?
CC — De tudo isso. Não importa o nome, não importa o conceito. Importa a confusão que o ser humano preparou para si próprio. Como se vê, esse ser ainda não entendeu patavina, quer dizer que o apocalipse não será evitado.

EU — Especificamente sobre a senhora, o desequilíbrio ecológico a incomoda neste isolamento que parece se imiscuir o seu mundo?
CC — Você e os seus amigos e companheiros no mundo desconhecem o mal-estar que me atinge aqui, mesmo no meio dessas densas matas. Veja como estão cada vez mais secos os rios que me formam. Só me fortaleço nesta época do ano, quando a chuva me abençoa dia e noite. E para azar não somente meu, mas de todos nós, você já deve ter visto a passagem de tubos da mineração. Para instalar esses tubos, houve cortes imensos de montanhas, porque o funcionamento do transporte de matéria-prima depende de uma plataforma nivelada, não se sobem serras.

EU — Algum outro dano ao ecossistema da região?
CC — Não somente da região, mas de todas as bacias que recebem a minha riqueza inalienável, a água. Observe que  uma mancha vermelha traz um colorido diferente na queda d’água. Apesar de fazer uma contenção quase perfeita do volume de terra, a devastadora não consegue evitar a poluição e passo a receber detritos diversos, não digo sujeiras das cidades, como esgoto e substâncias químicas, mas a própria terra que é estranha ao meu ambiente. São amigas, a terra e a água, mas dentro de nossas funções específicas dentro do conjunto da natureza.

EU — Há o ser humano favorável e o contrário ao empreendimento. O que a senhora aconselharia que fosse feito?
CC — Muitos vão se assustar com a minha opinião: não sou contra o progresso e o desenvolvimento. Seria contra no princípio, quando as devastações não tinham sido difundidas. Se houvesse uma freada naquele início, o homem estaria bem protegido e poderia continuar seguro no seu hatitat. Agora, não. O crescimento populacional do mundo empurra o seu habitante a procurar saída para dar qualidade de vida a todos, embora isso já seja apenas um sonho, um alvo praticamente inatingível. Mas que precisa haver gritos soando mesmo que seja no deserto, isso é preciso.

EU — Qual seria a ideia dos contrários que permitiria o empreendimento mineral na região com retorno palpável?
CC — Por exemplo, a construção de estradas de ferro ao invés do mineroduto. O retorno social da ferrovia é palpável. Seria uma luta sem cessar da comunidade: primeiro pela mudança no projeto, depois para que o transporte fosse estendido a outras finalidades, principalmente de pessoal. Sei que houve conversações neste sentido, mas  não houve firmeza e insistência das comunidades da região na defesa de um objetivo comum. Na falta de união, fator que favorece os destruidores, a perda social é imensa.

EU — E agora?
CC — Pode imaginar toda sorte de respostas cruéis da natureza. Não há mais saída. O empreendimento está de pé. Os seus defensores estão nadando de braçadas. Apelam para, incrivelmente, os benefícios  imediatos dados aos municípios, como Santo Antônio do Rio Abaixo, São Sebastião do Rio Preto e Passabém, os quais estão recebendo o mais bruto ônus da construção. É bem provável que, principalmente São Sebastião, deixe de existir no final das obras do mineroduto. A cidade recebe hoje um imposto miserável e vergonhoso, cerca de R$ 50 mil mensais de ISS. Enquanto isso, as construções, principalmente as que jamais poderiam sair de cena, estão sofrendo abalos. Não é preciso contratar nenhuma firma especializada para estudar as trincas e rachaduras. Basta conhecer a história do antigo arraial: as casas e igrejas foram construídas para suportar um trânsito de animais, sequer de veículos mais pesados e, principalmente de carretas destruidoras.

EU —A senhora aconselharia o povo a se manifestar  com o bloqueio de trânsito pesado na entrada da cidade?
CC — Entendo até que a mineradora seja consensual neste caso. Seus ilustres técnicos, principalmente engenheiros especializados, sabem que não é humano, não é condinzente com a realidade esse grosseiro desfile de máquinas de altíssimo poder de destruição em ruas muito acidentadas, com curvas sinuosas e traiçoeiras.

EU — O mesmo não ocorre em Passabém e Santo Antônio?
CC — Sim, ocorre, mas com repercussão de menor violência. Passabém é uma cidade plana dentro do perímetro urbano. Mas o seu calçamento está, também afundando. Parece que as   construções estão preservadas, mas a intensidade do trânsito pode, no decorrer do tempo, provocar estragos. Em Santo Antônio, o trânsito pesado ainda não desfila pelas ruas principais, mas, aguardem, vai tornar tudo uma desordem em pouco tempo, pois há mineração a ser explorada nas imediações, no rumo de Conceição do Mato Dentro.

EU — Voltando ao seu habitat, a senhora sugere um plano turístico para esta região?
CC — Olha, como já disse, o ser humano deveria ter contido o avanço da poluição no Planeta no início. Mas não soube perceber os pesados resultados que ocorreriam. Agora, sem retorno, é preciso administrar o fim da vida na Terra...

EU — Fim? Haverá um fim do mundo?
CC — É claro que sim. Caminhamos para isso. Sem retorno. O motivo é claro, todos veem, até os cegos. Basta entender que a vida não ocorreu nem ocorre somente neste Planeta. A ciência vai alcançando respostas concretas para muitas perguntas interessantes. A Terra irá se tornar inabitável. Só não posso prever quando, porque tudo depende, exatamente, do comportamento de vocês daqui para a frente. Como já disse: saber administrar o fim.

EU — Então, deveria haver um plano turístico para a senhora aqui?
CC —Sim. Já tivemos mortes neste local. A região do meu entorno continua perigosa. O que há aqui é uma placa com número de telefone de emergência, instalada pela Prefeitura de Santo Antônio do Rio Abaixo, além das estradas. Para o acesso precário, há estradas. São Sebastião do Rio Preto me prestou uma homenagem pública, me elegeu a Terceira Maravilha, mas não construiu sequer o acesso do lado de seu município. Acho que os dois municípios deveriam se entender e olhar com mais carinho por mim.

EU —A senhora quer ser frequentada?
CC — Bem frequentada sim, mal frequentada não.

EU —Ainda vai morrer muita gente aqui?
CC — Infelizmente, vai, porque o ser humano insiste em ser ignorante. Ele tem todas as informações ao seu alcance acerca do passado, do presente e do futuro, mas prefere viver na escuridão do saber. Eu queria acabar com toda a ignorância no mundo. Mas não posso fazer isso sozinha.

EU — A senhora tem mais algumas mensagens a dizer?
CC — Tenho muitas, mas nem adianta mais. O mundo é movido pelo Dinheiro (quero que coloque essa palavra com inicial maiúscula porque ele virou Deus). Ele é quem manda. Ninguém pode constestar. O que as religiões pregam não é do alcance humano. As pessoas fingem que entendem. Mas na hora do pega pra capar, vem lá o Deus que domina todos.

EU —Considerando que a senhora falou muito mais para uma comunidade pobre do que para o resto do mundo, quer  dizer que perdemos tempo nesta entrevista?
CC — Disse que quem manda no mundo é o Deus Dinheiro. Esse deus, move para o mal e para o bem. Mais para o mal. É o primeiro responsável pela corrupção, pela malversação do dinheiro público.

EU —Em muitas cidades pequenas perderam a noção do público e do privado. A senhora sabe disso?
CC — É claro. O problema é que os legisladores fizeram leis para coibir grandes engates e não alcançaram o alvo. Nas pequenas comunidades, vendo o rico roubar, o pobre também se julga no direito e pede ao seu político que lhe faça doações de roubos. Os prefeitos, não todos, é claro, se julgam no direito de fazer o que fazia Robin Hood naquela lenda do cinema: roubar dos ricos e dar para os pobres. O rico, neste caso, é o poder público.

EU —Agradeço a sua boa vontade em me atender. Deseja dizer mais alguma coisa?
CC — Não, é melhor encerrar por aqui. Temos muitas outras figuras aqui entrevistáveis, como as matas, os rios, as pedras que ornamentam, também, o rio, os peixes e até mesmo a senhora Dona Poluição que vai nos ameaçando, além do Desmatamento. Pode procurar cada um desses aí que, na certa, você será atendido.

EU —Muito obrigado pela sua gentileza da entrevista!
CC —Sempre às ordens.

Crédito: Fotos de Marcos Paulo Almeida Sá


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