segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

João Lagoa, personagem folclórico e inesquecível de São Sebastião do Rio Preto


Por que João Lagoa? Pergunto a mim mesmo  e respondo: não sei. Só o conheci muito de perto porque era o meu filósofo preferido em São Sebastião do Rio Preto. Ah, eu chorava quando ouvia alguém, ou a multidão, rezar a Oração de São Francisco de Assis. E ornamentava a memória com os patrimônios material  e imaterial que eram relegados ao abandono. Como admirador do conjunto de riquezas locais, João Ferreira Neto, cujo Ferreira tinha proximidade com a família de minha avó paterna, Maria Natividade Ferreira de Almeida, exercia em mim domínio completo de meu bem-estar geral.

Era uma alegria imensa quando o via sentado à porta ou numa cadeira ou banco de boteco. Sua mania indescritível de se gabar em façanhas impossíveis de ocorrer, mostrando e até nos convencendo de que tinha uma imensa riqueza, isso era o que nos tirava do enfastiado dia a dia daqueles tempos. Falava, aos gritos, colocando uma tonalidade forte no final da frase: “Comprei as fazendas de Pedro Nico, Caetano Nico, Joãozinho Augusto e hoje já tenho 12, já tenho 12, tenho 12, 12, 12”. Reduzia paulatinamente as frases a palavras, como se fosse um literato formado em universidade, ou publicitário profissional, o sentido maior que queria dar aos seus anúncios. Incríveis suas metonímias, pleonasmos, metáforas e hipérpoles.

Sempre naquele estilo diferente – estatura pequena, magro, pescoço pendente para um lado  como se fosse um torcicolo crônico, o seu jeito de ser – autodeclarava-se ao mesmo tempo o maior fazendeiro da região, e  contraditoriamente pedia a alguém que lhe pagasse uma dose de cachaça. Geralmente, aquele que lhe daria o seu combustível preferido, lhe perguntava: “Como um homem rico não tem dinheiro para uma pinga?” E o Lagoa já tinha uma resposta na ponta da língua: “Fazendeiro rico não anda com dinheiro  no bolso, fazendeiro rico não anda com dinheiro no bolso, não anda com dinheiro no bolso, no bolso, no bolso!”

João Lagoa mostrava que era mesmo tocado a álcool, mas nunca se encharcava. Não deixava, como outros beberrões, que a baba escorresse pelo peito, sequer saíam cuspes a brotar da boca.  Nas suas ressacas antológicas, tornava-se um homem anormal, depressivo, chato de se ver. Quer dizer que a sua etílica condição era a preferida, principalmente por mim e conhecida como normal. Lembro-me de certo dia em que a nossa secretária doméstica, a bondosa e inesquecível Maria Lucinha, me disse: “João Lagoa tá ali na ponte”, já sabendo de minha eterna adoração por ele. Mas, antes que eu descesse em desabalada correria para vê-lo, completou: “Mas não parece bicudo”. Não fui e fiquei da janela do sobrado esperando que alguém lhe desse apenas uma dose, o suficiente para, enfim, animar o seu espírito contagiante.

É preciso selecionar as algumas de suas principais frases para que não digam que exagerei ao nomeá-lo filósofo. Vejam se tenho razão:

— “Quem tá bêbado bebe mais!” — quando lhe negavam bebida diante da afirmação de que já não aguentava mais.
— “Passarinho, que não deve nada a ninguém, tá voando há muito tempo!” — a alguém que dormia até tarde. E ele acordava o meu cunhado, José Damázio Soares, conhecido como Zé Leitoa, que era dono da linha de ônibus e ainda não tinha feito pagamento de todos os seus compromissos, aos gritos.
— “Acorda, Zé Leitão!” — outra maneira gritada da rua em frente ao quarto de Zé Leitoa.
— “Homem enfezado não come!” — a polícia, covardemente, o prendia quando estava nas ruas fazendo a criançada alegre. Diziam todos que a polícia, por não ter o que fazer, cometia essa brutalidade. E ele dizia a frase quando pessoas caridosas lhe mandavam comida na pequena cadeia de São Sebastião do Rio Preto.
— “Se o povo perguntar por mim, pode dizer que João Ferreira Neto tá pra trás acertando negócio, ta pra trás  acertando negócio, acertando negócio, acertando negócio!” — quando sentia que era a hora de ir embora. 

Mas  ir embora para onde? Ah, ele se hospedava nas fazendas da região, sempre bem recebido por todos, executando algum serviço que lhe rendesse a comida e a cama. Normalmente, não bebia nesses períodos e, assim, tornava-se melancólico, pobre, de pouca conversa e de dar pena.

Numa dessas etapas de seu silêncio, encontrei-o à beira da estrada, numa serra que divide as propriedades de meu futuro sogro, Antônio Augusto de Morais, o senhor Niquito, e de José Ferreira de Morais, o Zé do Inhô. Tinha eu dez anos de idade e ia, a cavalo, passar as férias em Santo Antônio do Rio Abaixo, na Fazenda dos Bambus, de meus tios Magda e Antônio. 

Ao vê-lo assentado e absorto, apeei do cavalo, aproximei-me e me preparei para um papo exclusivo, digno de me fazer feliz para o resto do dia.  Fui logo falando: “Oi, João Lagoa, veio comprar a fazenda do Zé do Inhô?” Mas ele não me perdoou: “Deixa de ser bobo, menino! Que diabo de conversa besta é essa, não tá vendo que sou um pobre-coitado?” Decepcionei-me totalmente, peguei o meu cabresto, caí fora e fui pensando comigo mesmo naquela cabeça de pré-adolescente: como a cachaça faz falta a um ser humano!
Mas ele não demorava a voltar ao seu estado o etílico, o natural, e sempre estava de volta à vila de São Sebastião para provocar  bons e prazenteiros  momentos a todos. Contudo, certo dia, parou mesmo de beber  e recolheu-se exatamente à Fazenda do Fonseca, de Zé do Inhô , vindo a  depressão crônica lhe tirar a vida. Só não tenho a certeza absoluta de que a sua morte ocorrera naquela fazenda. Sei que ele desapareceu do cenário da paisagem folclórica da região. E sentimos muito a sua falta, como até hoje.

O que acabo de escrever não é um biografia. Já rabisquei para vários jornais e revistas a história desse homem carismático, que durou  pouco nesta vida, infelizmente. João Lagoa deixou a  sua memória viva em todos  os que o conheceram e faz parte da legião de nossas riquezas perdidas. Só lamento que em São Sebastião e Santo Antônio, principalmente nessas duas comunas, não exista ainda o busto ou algo que faça o simples reconhecimento de homens como  ele , Zé Loriano, Godozinho e tantos mais, os quais formaram inconscientemente parte de nossos patrimônios culturais-humanos.
Na falta de uma foto, uma imagem que, observem, não era o estilo de João Lagoa: ele não carregava garrafas, não bebia na rua e nem usava sapatos. Mas sempre "estava pra trás acertando negócio"

Minha paixão pela história se arranca de baixo para cima e não o contrário, de cima para baixo, da nojenta narrativa institucional,  que adula a elite e  a chama de história oficial, em detrimento dos que realmente compunham o nosso cenário, aos quais hei de render sempre uma homenagem simples, mas leal e sincera.

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