Por que João Lagoa? Pergunto a mim mesmo e respondo: não sei. Só o conheci muito de
perto porque era o meu filósofo preferido em São Sebastião do Rio Preto. Ah, eu
chorava quando ouvia alguém, ou a multidão, rezar a Oração de São Francisco de
Assis. E ornamentava a memória com os patrimônios material e imaterial que eram relegados ao abandono. Como
admirador do conjunto de riquezas locais, João Ferreira Neto, cujo Ferreira
tinha proximidade com a família de minha avó paterna, Maria Natividade Ferreira
de Almeida, exercia em mim domínio completo de meu bem-estar geral.
Era uma alegria imensa quando o via sentado à porta ou numa
cadeira ou banco de boteco. Sua mania indescritível de se gabar em façanhas
impossíveis de ocorrer, mostrando e até nos convencendo de que tinha uma imensa riqueza,
isso era o que nos tirava do enfastiado dia
a dia daqueles tempos. Falava, aos gritos, colocando uma tonalidade forte no
final da frase: “Comprei as fazendas de Pedro Nico, Caetano Nico, Joãozinho
Augusto e hoje já tenho 12, já tenho 12, tenho 12, 12, 12”. Reduzia
paulatinamente as frases a palavras, como se fosse um literato formado em
universidade, ou publicitário profissional, o sentido maior que queria dar aos
seus anúncios. Incríveis suas metonímias, pleonasmos, metáforas e hipérpoles.
Sempre naquele estilo diferente – estatura pequena, magro,
pescoço pendente para um lado como se fosse um torcicolo crônico, o seu jeito de ser – autodeclarava-se ao mesmo
tempo o maior fazendeiro da região, e contraditoriamente pedia a alguém que lhe
pagasse uma dose de cachaça. Geralmente, aquele que lhe daria o seu combustível
preferido, lhe perguntava: “Como um homem rico não tem dinheiro para uma
pinga?” E o Lagoa já tinha uma resposta na ponta da língua: “Fazendeiro rico
não anda com dinheiro no bolso,
fazendeiro rico não anda com dinheiro no bolso, não anda com dinheiro no bolso,
no bolso, no bolso!”
João Lagoa mostrava que era mesmo tocado a álcool, mas nunca se
encharcava. Não deixava, como outros beberrões, que a baba escorresse pelo
peito, sequer saíam cuspes a brotar da boca. Nas suas ressacas antológicas, tornava-se um
homem anormal, depressivo, chato de se ver. Quer dizer que a sua etílica
condição era a preferida, principalmente por mim e conhecida como normal.
Lembro-me de certo dia em que a nossa secretária doméstica, a bondosa e
inesquecível Maria Lucinha, me disse: “João Lagoa tá ali na ponte”, já sabendo
de minha eterna adoração por ele. Mas, antes que eu descesse em desabalada
correria para vê-lo, completou: “Mas não parece bicudo”. Não fui e fiquei da
janela do sobrado esperando que alguém lhe desse apenas uma dose, o suficiente
para, enfim, animar o seu espírito contagiante.
É preciso selecionar as algumas de suas principais frases para que
não digam que exagerei ao nomeá-lo filósofo. Vejam se tenho razão:
— “Quem tá bêbado bebe mais!” — quando lhe negavam bebida diante
da afirmação de que já não aguentava mais.
— “Passarinho, que não deve nada a ninguém, tá voando há muito
tempo!” — a alguém que dormia até tarde. E ele acordava o meu cunhado, José
Damázio Soares, conhecido como Zé Leitoa, que era dono da linha de ônibus e
ainda não tinha feito pagamento de todos os seus compromissos, aos gritos.
— “Acorda, Zé Leitão!” — outra maneira gritada da rua em frente
ao quarto de Zé Leitoa.
— “Homem enfezado não come!” — a polícia, covardemente, o
prendia quando estava nas ruas fazendo a criançada alegre. Diziam todos que a
polícia, por não ter o que fazer, cometia essa brutalidade. E ele dizia a frase
quando pessoas caridosas lhe mandavam comida na pequena cadeia de São Sebastião
do Rio Preto.
— “Se o povo perguntar por mim, pode dizer que João Ferreira
Neto tá pra trás acertando negócio, ta pra trás acertando negócio, acertando negócio,
acertando negócio!” — quando sentia que era a hora de ir embora.
Mas ir embora para onde?
Ah, ele se hospedava nas fazendas da região, sempre bem recebido por todos, executando
algum serviço que lhe rendesse a comida e a cama. Normalmente, não bebia nesses
períodos e, assim, tornava-se melancólico, pobre, de pouca conversa e de dar
pena.
Numa dessas etapas de seu silêncio, encontrei-o à beira da
estrada, numa serra que divide as propriedades de meu futuro sogro, Antônio
Augusto de Morais, o senhor Niquito, e de José Ferreira de Morais, o Zé do
Inhô. Tinha eu dez anos de idade e ia, a cavalo, passar as férias em Santo
Antônio do Rio Abaixo, na Fazenda dos Bambus, de meus tios Magda e Antônio.
Ao vê-lo assentado e absorto, apeei do cavalo, aproximei-me e me
preparei para um papo exclusivo, digno de me fazer feliz para o resto do dia. Fui logo falando: “Oi, João Lagoa, veio
comprar a fazenda do Zé do Inhô?” Mas ele não me perdoou: “Deixa de ser bobo,
menino! Que diabo de conversa besta é essa, não tá vendo que sou um
pobre-coitado?” Decepcionei-me totalmente, peguei o meu cabresto, caí fora e
fui pensando comigo mesmo naquela cabeça de pré-adolescente: como a cachaça faz
falta a um ser humano!
Mas ele não demorava a voltar ao seu estado o etílico, o
natural, e sempre estava de volta à vila de São Sebastião para provocar bons e prazenteiros momentos a todos. Contudo, certo dia, parou
mesmo de beber e recolheu-se exatamente
à Fazenda do Fonseca, de Zé do Inhô , vindo a depressão crônica lhe tirar a vida. Só não
tenho a certeza absoluta de que a sua morte ocorrera naquela fazenda. Sei que
ele desapareceu do cenário da paisagem folclórica da região. E sentimos muito a
sua falta, como até hoje.
O que acabo de escrever não é um biografia. Já rabisquei para
vários jornais e revistas a história desse homem carismático, que durou pouco nesta vida, infelizmente. João Lagoa
deixou a sua memória viva em todos os que o conheceram e faz parte da legião de
nossas riquezas perdidas. Só lamento que em São Sebastião e Santo Antônio,
principalmente nessas duas comunas, não exista ainda o busto ou algo que faça o
simples reconhecimento de homens como ele , Zé Loriano, Godozinho e tantos mais, os
quais formaram inconscientemente parte de nossos patrimônios culturais-humanos.
Na falta de uma foto, uma imagem que, observem, não era o estilo de João Lagoa: ele não carregava garrafas, não bebia na rua e nem usava sapatos. Mas sempre "estava pra trás acertando negócio" |
Minha paixão pela história se arranca de baixo para cima e não o
contrário, de cima para baixo, da nojenta narrativa institucional, que adula a elite e a chama de história oficial, em detrimento dos
que realmente compunham o nosso cenário, aos quais hei de render sempre uma
homenagem simples, mas leal e sincera.
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