sexta-feira, 27 de setembro de 2019

QUEM PENSA POR NÓS?


Hoje é segunda-feira, 7 de janeiro de 1963. Eu me sinto uma pessoa feliz e realizada por ter completado, na última sexta, dia 4, 18 anos de idade. Estou em Belo Horizonte para viver as primeiras ilusões de um ex-adolescente, agora entrando na juventude propriamente dita com cara, coragem e entusiasmo. Sempre pensei que ao chegar à maioridade teria um bom emprego e a mim seriam escancaradas todas as respostas a perguntas que, desde criança, fazia aos adultos, que silenciavam ao invés de responder.


Apaixonado pelo  jornalismo, sem ter uma faculdade do ramo para  frequentar, fiz um curso por correspondência, recebi o diploma, guardei-o numa gaveta e somente tinha na cabeça como ser repórter, como redigir uma notícia, como entrevistar pessoas e ser, com absoluta segurança, um profissional  imparcial. Sonhos dos antigos tempos em que até mesmo os donos de jornais, os editores-chefes, os melhores  dedicados ao ramo acreditavam nisso.


Arranquei-me da Pampulha, cedinho, nesta segunda-feira, da casa de um tio-avô, para procurar o meu primeiro emprego. Fui ao Diário de Minas, jornal hoje extinto, situado bem no coração da Praça Raul Soares. Antes de partir para a busca, assentei-me num dos bancos do logradouro público, pensei em quem procuraria, o que falaria, como ia proceder. Respirei coragem e, depois de um rápido planejamento, atravessei a via, empurrei uma porta, subi uma escada e fui interceptado por um porteiro, de pé, uniformizado bem em cima. Disse a ele: “Preciso falar com o diretor do jornal”. Ele não me deteve, foi gentil, apontou para um magricelo que estava no fim de uma fileira de mesas, realmente magro como um guarda-chuva  já que  vestia terno preto e usava uma gravata também escura.


Saí atropelando cadeiras e mesas, olhado por muitos, dei seguidos “bom dia” e cheguei ao editor-chefe, Maurílio Brandão, o guarda-chuva que, a exemplo do porteiro, também me recebeu com simpatia. Apresentei-me e fui direto ao assunto: “Vim do interior de Minas, procuro um emprego de repórter, sonho com jornalismo, completei 18 anos e gostaria de trabalhar aqui”. Ele me fez algumas perguntas, entre elas se eu tinha bom texto. Respondi que desconfiava dessa virtude porque lia muito livros, jornais e revistas. Ele me pediu para assentar-me na mesa próxima, onde havia uma máquina Olivetti, me passou um monte de papéis e me sugeriu escrever em umas 20 linhas, notícia qualquer sobre um acidente de avião. E só.



Fui rápido. Entreguei o texto. Ele fez gesto de que estava bom e me contratou com as seguintes palavras: “Pode começar amanhã, às 9 horas da manhã, apresente-se a Vargas Vilaça, o chefe da editoria policial; mas fique sabendo desde já que não vai ganhar nada até ser contratado definitivamente, caso haja vaga no jornal e caso você seja um bom repórter. Permaneci uns seis meses no Diário de Minas sem receber um centavo sequer, sendo alimentado por sanduíches que me eram pagos por uns repórteres amigos que fiz por lá, dentre eles Márcio Rubem Prado, meu colega de Guanhães, Mauro Santayana, hoje ainda na ativa em Brasília, e o grande mestre Vargas Vilaça. 

No brilhante e respeitado jornal, na época chamado de "faculdade de jornalismo", aprendi muito, mas tive que sair quando consegui com outro amigo, João Lintz, uma colocação que rendia centavos — e eu precisava sobreviver na capital — no Estado de Minas e no órgão oficial, Minas Gerais, como suplente de revisor, com trabalho inquietante, sempre dias e noites de segunda a segunda-feira.

Falei essas baboseiras todas apenas para refletir com o leitor, caso o tenha, como era a imprensa em 1963. Ao término do expediente, eu tinha escrito no mínimo umas dez ou mais reportagens, às vezes 15, 20, e via a maioria sendo jogada no lixo. O mesmo ocorria com outros repórteres, que sabiam disso. Os textos publicacos no dia seguinte não representavam nem 0,5% das matérias levantadas e escritas. Então, eu perguntava de mim para mim: que mundo é esse que vive e pensa em consequência de ideias alheias, cuja leitura e estampa são selecionadas por repórteres, editores, diretores?

Se naquela época, década de 1960, as notícias já eram editadas, selecionadas, imaginemos  hoje que jorram como chuva, às toneladas? As pautas editadas eram apenas as mais sensacionalistas, pensava eu. Hoje, a seleção de pautas e textos representa o que há de interesse exclusivo da linha editorial do jornal, seja para TV, ou rádio, ou jornais, ou internet. Esta a realidade que vivemos: muitos pensam por nós, fazem de nós eternos seguidores e nos transformam em robôs programados. Vemos as notícias extraídas de interesses de quem está no alto da pirâmide, vivendo outra realidade e bem diferente da nossa.

Os noticiosos fazem, além dos leitores, também dos anunciantes, seus reféns. No caso do cliente de publicidade, ou ele paga seu anúncio devidamente, como o jornal quer, ou será malhado, despedaçado, encurralado e até julgado  na próxima edição. No caso dos anunciantes serem órgãos públicos, usam o nosso dinheiro para chantagear por interesses que não são nossos. Se em 1963 eu já via o mundo lido e acompanhado na imprensa como uma grande falsidade, porque eram milhares as notas descartadas, avaliemos hoje quando, por exemplo, uma rede de jornais, revistas, televisão e internet quer que sejamos não apenas seus reféns, mas piores que isso, escravos, atados numa corrente que só permite ver o mundo como vê o poder que usa a nossa subordinação  a serviço de seus interesses.

Quem pensa por nós?

José Sana
Em 27/09/2019

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