Hoje é
segunda-feira, 7 de janeiro de 1963. Eu me sinto uma pessoa feliz e realizada
por ter completado, na última sexta, dia 4, 18 anos de idade. Estou em Belo
Horizonte para viver as primeiras ilusões de um ex-adolescente, agora entrando
na juventude propriamente dita com cara, coragem e entusiasmo. Sempre pensei
que ao chegar à maioridade teria um bom emprego e a mim seriam escancaradas
todas as respostas a perguntas que, desde criança, fazia aos adultos, que
silenciavam ao invés de responder.
Apaixonado
pelo jornalismo, sem ter uma faculdade
do ramo para frequentar, fiz um curso
por correspondência, recebi o diploma, guardei-o numa gaveta e somente tinha na
cabeça como ser repórter, como redigir uma notícia, como entrevistar pessoas e
ser, com absoluta segurança, um profissional
imparcial. Sonhos dos antigos tempos em que até mesmo os donos de
jornais, os editores-chefes, os melhores
dedicados ao ramo acreditavam nisso.
Arranquei-me da
Pampulha, cedinho, nesta segunda-feira, da casa de um tio-avô, para procurar o
meu primeiro emprego. Fui ao Diário de Minas, jornal hoje extinto, situado bem
no coração da Praça Raul Soares. Antes de partir para a busca, assentei-me num
dos bancos do logradouro público, pensei em quem procuraria, o que falaria,
como ia proceder. Respirei coragem e, depois de um rápido planejamento,
atravessei a via, empurrei uma porta, subi uma escada e fui interceptado por um
porteiro, de pé, uniformizado bem em cima. Disse a ele: “Preciso falar com o
diretor do jornal”. Ele não me deteve, foi gentil, apontou para um magricelo
que estava no fim de uma fileira de mesas, realmente magro como um
guarda-chuva já que vestia terno preto e usava uma gravata também
escura.
Saí atropelando
cadeiras e mesas, olhado por muitos, dei seguidos “bom dia” e cheguei ao
editor-chefe, Maurílio Brandão, o guarda-chuva que, a exemplo do porteiro,
também me recebeu com simpatia. Apresentei-me e fui direto ao assunto: “Vim do
interior de Minas, procuro um emprego de repórter, sonho com jornalismo,
completei 18 anos e gostaria de trabalhar aqui”. Ele me fez algumas perguntas,
entre elas se eu tinha bom texto. Respondi que desconfiava dessa virtude porque
lia muito livros, jornais e revistas. Ele me pediu para assentar-me na mesa
próxima, onde havia uma máquina Olivetti, me passou um monte de papéis e me
sugeriu escrever em umas 20 linhas, notícia qualquer sobre um acidente de
avião. E só.
Fui rápido.
Entreguei o texto. Ele fez gesto de que estava bom e me contratou com as
seguintes palavras: “Pode começar amanhã, às 9 horas da manhã, apresente-se a
Vargas Vilaça, o chefe da editoria policial; mas fique sabendo desde já que não
vai ganhar nada até ser contratado definitivamente, caso haja vaga no jornal e
caso você seja um bom repórter. Permaneci uns seis meses no Diário de Minas sem
receber um centavo sequer, sendo alimentado por sanduíches que me eram pagos
por uns repórteres amigos que fiz por lá, dentre eles Márcio Rubem Prado, meu
colega de Guanhães, Mauro Santayana, hoje ainda na ativa em Brasília, e o
grande mestre Vargas Vilaça.
No brilhante e respeitado jornal, na época chamado de "faculdade de jornalismo", aprendi muito,
mas tive que sair quando consegui com outro amigo, João Lintz, uma colocação
que rendia centavos — e eu precisava sobreviver na capital — no Estado de Minas e no órgão oficial, Minas Gerais, como suplente de
revisor, com trabalho inquietante, sempre dias e noites de segunda a segunda-feira.
Falei essas
baboseiras todas apenas para refletir com o leitor, caso o tenha, como era a
imprensa em 1963. Ao término do expediente, eu tinha escrito no mínimo umas dez
ou mais reportagens, às vezes 15, 20, e via a maioria sendo jogada no lixo. O
mesmo ocorria com outros repórteres, que sabiam disso. Os textos publicacos no
dia seguinte não representavam nem 0,5% das matérias levantadas e escritas.
Então, eu perguntava de mim para mim: que mundo é esse que vive e pensa em
consequência de ideias alheias, cuja leitura e estampa são selecionadas por
repórteres, editores, diretores?
Se naquela
época, década de 1960, as notícias já eram editadas, selecionadas,
imaginemos hoje que jorram como chuva,
às toneladas? As pautas editadas eram apenas as mais sensacionalistas, pensava
eu. Hoje, a seleção de pautas e textos representa o que há de interesse
exclusivo da linha editorial do jornal, seja para TV, ou rádio, ou jornais, ou internet.
Esta a realidade que vivemos: muitos pensam por nós, fazem de nós eternos
seguidores e nos transformam em robôs programados. Vemos as notícias extraídas
de interesses de quem está no alto da pirâmide, vivendo outra realidade e bem
diferente da nossa.
Os noticiosos
fazem, além dos leitores, também dos anunciantes, seus reféns. No caso do
cliente de publicidade, ou ele paga seu anúncio devidamente, como o jornal
quer, ou será malhado, despedaçado, encurralado e até julgado na próxima edição. No caso dos anunciantes
serem órgãos públicos, usam o nosso dinheiro para chantagear por interesses que
não são nossos. Se em 1963 eu já via o mundo lido e acompanhado na imprensa
como uma grande falsidade, porque eram milhares as notas descartadas, avaliemos
hoje quando, por exemplo, uma rede de jornais, revistas, televisão e internet
quer que sejamos não apenas seus reféns, mas piores que isso, escravos, atados
numa corrente que só permite ver o mundo como vê o poder que usa a nossa subordinação
a serviço de seus interesses.
Quem pensa por
nós?
José Sana
Em 27/09/2019
Adeus, ética.
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