sábado, 22 de maio de 2021

A FÁBULA DE ITABIRA E DA VALE

Estou numa sala de aula do Grupo Escolar Dr. Odilon Berhens, segundo ano, na década de 1950, sem erro algum porque a memória está ativa. Minha professora chama-se Dona Inês Alvarenga, que desembarca com Dona Ilsa Caldeira Duarte, esta que me ensinou as primeiras letras. Ambas chegam triunfantemente, recebidas com festas e banda de música, e vindas das terras abençoadas de Santana dos Ferros, pertinho de São Sebastião do Rio Preto, onde nasci.

A senhora mestra Dona Inês, como os pais chamavam a professora, de olho em mim, pede que leia e interprete a Fábula da Cigarra e da Formiga. Li, entendi, interpretei e ganhei aplausos. Ela, Dona Inês, elege-me seu aluno preferido pelo fato de ser um menino sapeca, pintor do sete,  direto e reto.

Quanto à fábula de que fui relator, vou ver se me recordo bem. É esta: “Durante o verão, a Cigarra quer aproveitar o tempo bom e passa os dias cantando. Enquanto isso, a Formiga trabalha de forma diligente, reunindo alimentos para sobreviver no inverno.

Quando chegam os dias de frio e chuva, a Cigarra não tem o que comer e pede à outra para partilhar a comida dela. A Formiga recusa, imaginando que a Cigarra passara o verão cantando e agora precisa "se virar".



Leio em voz alta o diálogo travado entre os insetos:

Formiga — E o que é que você fez durante todo o verão?

Cigarra — Durante o verão eu cantei.

Formiga — Muito bem, pois agora dance!

Moral da história: trabalhemos para nos livrarmos do suplício da Cigarra, e não aturarmos a zombaria da Formiga”.

Os anos passam, ingresso-me na Vale e concluo meu trabalho no cargo de assessor de imprensa. Sou eleito por dois mandatos vereador e, ao deixar a presidência da Câmara, demite-me um tal de Hugo Mourão pelo simples fato de tomar a iniciativa de realizar em Itabira (junho de 1978) o I Encontro Estadual de Cidades Mineradoras, oportunidade em que nasce a semente fértil do royalty do minério de ferro, que daria aos municípios mineradores a sustentação do futuro.

Colocado no “olho da rua” pela estatal dos tempos da ditadura e com família para criar, abro confeitarias e padarias para garantir o leite e os estudos dos filhos. Em seguida, crio uma revista e um site que defendem tenazmente o mesmo ideal que me tomam como instrumento ou ferramenta.

Sou impelido a contrair rusgas terríveis na vida por ser um mini-Tutu Caramujo, embora não adepto da filosofia da “derrota incomparável”. Do pleito eleitoral de 2020, carrego para sempre o peso do idealismo que convém a poucos, infelizmente. Conclusão: faço parte de uma minoria sem medo. Mesmo se sozinho ficar nunca arredarei pé desta convicção de que Itabira precisa se livrar de fábulas.

Dia destes, um amigo, grande conhecedor das estratégias internacionais do mercado minério de ferro, verdadeiro “expert” no tema, contata-me e saúda o tema que estou abordando e que, por inacreditável coincidência, faz-me lembrar  a Fábula da Cigarra e da Formiga. Peço-lhe licença para associar a minha infância escolar ao encaixe desta situação perfeita, cumprindo somente a tarefa de adaptação simples e compreensiva.

O diálogo agora é este:

Vale — E o que é que você fez durante todo o verão?

Itabira — Durante o verão eu cantei.

Vale — Muito bem, pois agora dance!

Nada mais a dizer, senão que ouço vozes que se deliciam nos bastidores me chamando de “velho gagá”. Pedem que seja adotada a “técnica do bispo”, ou seja, “isso passa, isso se esquece” Deixo apenas uma resposta: a coerência de meu trabalho durante 55 anos de Itabira me tranquilizam e me garantem não ter Alzheimer para ser tratado, graças a Deus, embora respeite todos os que o enfrentam e a esses diga que um santo remédio vem aí para a cura.

Gagá ou não, a minha sustentação vem dos 11 anos de idade, quando subia no morro mais alto de minha vila e de lá, a cada meio-dia, via estourarem dinamites no extinto Cauê. O meu fascínio pelo pico, anunciado como o mais rico do mundo no início do século XX, passa para o tempo em que venho trabalhar exatamente no seu cume e o vejo transformar-se numa cava imensa e inarredável.

A minha história não é a mesma de Robinson Crusoé, como diria Drummond. Ela é também não é tão bonita, nada de admirável, mas tem um algo muito forte de sinceridade no seu bojo: a persistência como a hematita de teor 100%  de ferro, mas que não embarca em trem algum, em navio nenhum, nem vai para o alto-forno da sinterização sem luta e sem fé.

 José Sana

Em 22/05/2021

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