terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A MADRASTA ESTÁ DE VOLTA

Meus mestres e doutores em História ensinaram-me em cursos de graduações e pós que a reiteração de fatos no decorrer do  tempo  só pode ser coincidência. Apesar de o  historicismo determinar, muitos e muitos, leigos e profissionais ainda insistem no termo “a história se repete”. Pode servir como uma figura de sintaxe, mas não se aproxima da verdade absoluta.

Nos anos 1960,  a estatal Companhia Vale do Rio Doce impunha a sua regra de governança: “Aqui eu mando, aqui contrato a mão de obra que quero e imponho preços em imóveis, tanto para aluguéis quanto para venda”. E assim o tempo se arrastou, de um lado o puxa-saquismo tradicional e de outro a minoria que comeu o pão amassado por belzebu, esse o famoso capeta.


Para não buscar exemplo distante,  já fui tratado como rei,  assim como escravo descarado, pelas regras impostas por tal filosofia de ação. Querem provas? Em 1966 aqui cheguei com um par de roupas no corpo. Antes de  instalar-me no meu primeiro lar, a Pensão São Cristóvão, dos inesquecíveis Dona Lilice e Seu Carolino, fui a uma loja comprar roupas. A loja existe até hoje, o dono é o mesmo, ele me vendeu uma bagageira e toda a parte de trás do Opala (dele, é claro) abarrotada de calças, camisas, cuecas, meias, acho que só isso.

Mas eu não tinha um só centavo nem no bolso, nem no banco. Só lhe mostrei a carteira assinada pela CVRD, nem um dia de trabalho mas, mesmo assim, o dono da loja me achou mais bonito que o Hugh  Grant, que tivesse mais dinheiro que o Walter Moreira Salles na época,  e parecia querer que eu fosse seu sócio. Anos  mais tarde, depois de, como presidente da Câmara Municipal de Itabira, presidir o I Encontro Estadual de Cidades Mineradoras, durante o qual foi criado o royalty do minério de ferro, levei um chute no traseiro como se fosse um ladrão de cavalos de filmes faroeste. A Vale não precisava mais de mim. Não me dei como vencido e abri uma lanchonete para estudar os meus cinco filhos.

O tempo passou e Itabira começou a curtir uma espécie de síndrome da exaustão, data cada vez mais próxima. Implantou projetos teóricos  — exemplo: Itabira 2025 — mas o domínio da Vale continuou, embora mais pendente a impor-nos  medo de perder o dinheiro que corre pelos ares e poucos agarram.

Agora, o que está acontecendo? A Vale volta a encher a cidade de “gente boa”, como dizia o meu amigo e saudoso Chiquinho Alfaiate. Quer dizer que o dinheiro  pulula no ar e nas contas dos magnatas. Começa a empresa a secar as barragens de rejeito, terror de gente responsável, e aí a volta escancarada da classe excessivamente dominante para pisotear a maioria. Se alguém contesta, mesmo somente para se defender, esse já tem um nome treinado e gravado até nos postes: negacionista.

Chegam os donos das ruas, becos e avenidas, de caminhonetes sujas de barro vermelho, sinal de que a S. A. avança para raspar o tacho dos novos cauês. Os imóveis vão às nuvens, mas não é só isso. Nós, os recrutas escravos da mineração, voltamos a preparar a mão de obra para a mineradora. Ela, a madrasta, não precisa mais correr atrás, criar suas escolas de treinamento. Basta farejar e tatear o mercado na cidade e mandar um recadinho para o amigo do amigo da rua tal e da esquina mais falada de um bairro qualquer. E deixa as empresas que salvariam a cidade no mato sem cachorro.

A vida continua. A Vale privatizada manda do mesmo jeito, de acordo com o poder que exerce no mercado. Já nos conformamos, sim, com essa sobrepujança. Não negamos, pois, pois, como diz o português que vende bacalhau na esquina. 

Apesar de esperar e crer e sonhar, alguns fatos me fazem continuar meio descrente do futuro porque, embora a história não se repita, a madrasta  cospe em nossas caras e nos faz impor como nosso  limite de crescimento a ponta do nariz. Amamos  essa criatura, mas ela não morre de amores por ninguém. Acordai, povo itabirano!

José Sana

Em 15/02/2022 

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