Foi assim: uma rampa construída na década, sei lá, acho que de 1950 ou 1960. Sexagenária, portanto. O seu construtor é, por sua grandeza pessoal, um médico muito conhecido, visionário, verdadeiro profeta. E muito especial. Tanto que completou 100 anos no ano passado e fez, em seu pronunciamento histórico, muitas revelações. Uma delas é que Itabira sobreviveria ao minério de ferro.
Na rampa ia, certo dia (se rimou, paciência) eu subindo, enquanto ele aguardava, como sempre ocorreu a minha chegada ao topo. Pensava eu: quantos topos ele chegara e ainda dera as mãos a muitos e muitos cidadãos também conhecedores do cume! E lá ia eu, meio sem graça, mas, azar, quantas vezes já fiquei assim, constrangido e com cara de tacho na vida?
Continuei as passadas. A rampa alivia o nosso cansaço e ainda tem, para os novos e velhos, um perfeito "corre-mão" que não nos deixa titubear no meio do caminho, sem pedras. Levantei a cabeça, meio vermelho, mas a ergui com coragem. Na minha terra natal dizem isto de quem passa por esses momentos: “Calcei a cara”.
Dei-lhe a mão. Ou melhor, ele estendeu-me os braços e, facilmente, os sentimentais enxergavam o coração centenário dele, transparente e forte. Pronto. Não tem rodeios, vou logo ao assunto:
— Boa tarde! Vim pedir que me passe as anotações prometidas...
Irredutível, o novíssimo centenário cidadão retrucou com toda calma e paciência:
— Vamos entrar e tomar um cafezinho. A Patroa já preparou para você. E com pão de queijo, quase o mesmo que você fazia ali na esquina. Vamos conversar, menos um assunto: nada de rabiscos que estou fazendo, nada de centenário que já passou, vamos aos demais assuntos.
Não insisti e ele continuou:
— Você, que é muito novo diante de mim (esta frase ele sempre repete) deve ter boa memória e se lembra de que naquele dia festivo, recebendo simpatias de todos os quadrantes da nossa região, anunciei que chegarei aos 200 anos. Quer dizer, vou esperar a data ocorrer, em 17 de junho de 2121. Até lá, portanto...
Depois do delicioso cafezinho, coube-me apenas aquiescer-me e despedir-me, ou seja, fazer meia volta, e descer a rampa. Lá atrás ficaram Dr. Colombo e Dona Eny, sorrindo e mandando sinais evidentes de simpatia. Eu, de cara agora lavada, como um Moraes Moreira sem violão, desci a ladeira até o asfalto.
Não devo viver até 2121, até porque o que rabisquei acima representa a narrativa de apenas um sonho ocorrido nesta noite. Mesmo assim, sendo algo que somente Freud explica, acredito que terei tetranetos para exibir este documento comprobatório do dever cumprido.
José Sana
11/02/2022
Foto: Vila de Utopia/Google
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