Uso
o exemplo de 1963, quando demoliram o Templo do Rosário; só espantaram vampiros que os atacam até hoje; a pergunta que não cala: por que querem acabar com as 7 Maravilhas da Cidade?
Era 1961, férias do
primeiro semestre, e acabava de chegar a São Sebastião, vindo de Belo
Horizonte, onde estudava no Colégio Anchieta, turma de Medicina, já pensou?
Estava usando óculos, com ‘grauzinho’ pouco significativo. Acredite quem
quiser, era uma forma de garantir desculpas pelas notas vermelhas que estavam
se acumulando. Só me destaco mesmo em Português, História e Geografia e tremo
em cima dos sapatos quando me falam o nome deste idioma, Inglês. Tenho um
professor, Pedro Souza, que já me despachou e me aconselhou a desistir da
língua saxônica.
O ASSUNTO DE HOJE
O tema deste texto é
outro. Usei o parágrafo anterior como citação de meu próximo livro, “Direito de
Ouvir”, que será lançado em breve. Então, vou ao tema que nos interessa agora.
Como sempre curioso, mexo nas gavetas de meu pai, ele acostumado a escrever
tudo, da sua história de vida aos entreveros com um ou outro cidadão.
E, de repente, deparo-me
com uma forma de comunicação chamada “circular”, assinada pelo pároco local,
padre Raul de Melo. Tratava-se de uma decisão, unilateral, sem mesmo apelação,
de derrubar a histórica e culta Igrejinha de Nossa Senhora do Rosário, templo
de existência anterior à Igreja Matriz, essa erguida pelo Cônego Manuel
Fernandes Madureira e padre Joaquim Higino de Almeida, no alto da subida
chamada Morro do João Paulo.
HIROSHIMA E NAGASAKI
Ora, ora, ora, eu tinha
apenas 16 anos, mas me incomodei com o teor da missiva endereçada ao povo de
São Sebastião do Rio Preto pelo padre.
Imediatamente, convoquei os comandantes que se reuniam no nosso “front de guerra”,
exatamente o adro da igrejinha abandonada. Os tenentes-coronéis eram José
Vieira Reis, ou Teia do Roque; João Guadalupe de Almeida, ou Joãzinho Pão de
Queijo, ou Kaki; José Flávio de Almeida Dias, o Zé Flávio; e eu. Esse
penúltimo, o primeiro sobrevivente, o segundo sou eu. A convocação foi atendida e passamos o resto
da madrugada discutindo o que faríamos para evitar a tragédia anunciada pelo
vigário local.
O primeiro ato de nosso
protesto foi o bombardeio nas ruas. Todas as vias, exceto o Morro do João
Paulo, que era calçado com pedras chamadas “pés de moleque”. Terra pura, de
outro morro, o do ‘Mingôla ’estendido até a rua do Noé, passando também pelo
Bonfim, onde se caminha para ir ao cemitério local. Emendamos mais de quilômetros
de estopins, entremeados com bombas chamadas de “12 tiros”, que “furtei” na
loja de meu pai sem que ele percebesse.
Madrugada adentro,
escolhemos a meia-noite para atacar, quando “os fantasmas se agitam”, de acordo
com o mestre Machado de Assis. Arrebentamos o arraial com um tiroteio
antológico, digno de serem denominados Hiroshima e Nagasaki. Não houve uma alma
que se negasse a ficar na cama. Nosso amigo Somiro (Clodomiro Duarte Lage), que
amava sentar-se na porta da igreja
quando havia lua cheia, comentou: “Oh, moço, até os mortos levantaram de
suas covas para ver que festa era aquela”.
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E
CULTURAL
Não foi festa, mas apenas
um aviso de que começava a ocorrer a ‘terceira guerra mundial’, considerando a
segunda encerrada em 1947 com o Tratado de Paris. Começamos a bolar a segunda
estratégia para evitar a derrubada do templo. De início, a avaliação das
riquezas que precisam ser anunciadas para ser cobradas e são, em nossa
listagem, o seguinte: dois sinos de barulho inconfundível, que chamam a atenção
da comunidade para o momento mais importante da celebração litúrgica, a
consagração do Pão e do Vinho, e se tornam o Corpo e o Sangue de Cristo. Havia
outro valor deles, foram doados por Dom Pedro II, no mesmo rol de entregas
feito em Brejaúba e Santo Antônio do Rio Abaixo.
Ah, muitas outras
importâncias anotamos e nos foram fornecidas pelo ilustre conterrâneo Dr.
Sebastião Ferreira de Oliveira, então presidente do Tribunal Regional Eleitoral
(TRE). Escreveu ele artigo publicado no nosso jornaleco “Folha Sebastianense”:
“Tínhamos pinturas valiosas de discípulos do Mestre Ataíde (Manoel da Costa
Ataíde) estampadas no teto do templo e um relógio do século XIX, de parede,
alemão, marca R.A, mostrador com algarismos romanos, caixa de madeira, além de
imagens indescritíveis”. Esse bem material ficava dependurado na sacristia e
determinava o tempo de início e término das cerimônias.
UMA AÇÃO QUE ADIOU A DEMOLIÇÃO
Preparamos a ação mais
importante. Como é sabido, estávamos na praticamente Idade Média e naquele
tempo acreditavam fantasmagoricamente na existência de assombrações. A Rádio Tupi do Rio de Janeiro
exibia, às sextas-feiras, dias em que os fantasmas machadianos mais se
agitavam, o programa “Incrível, Fantástico, Extraordinário”. São Sebastião do
Rio Preto tinha sido palco de inúmeras cenas assombradas. A mais destacada
ocorrera com o fazendeiro Manoel Bispo Nascentes e sua família, que tinham sido
alvos de ataques espectrais durante toda
a madrugada de um dia de 1960.
Daí, a nossa ideia que
consideramos genial. Conseguimos dezenas de metros de fios de “nylon”, portanto
resistentes, para amarrar nos dois sinos que badalavam um tom grave e agudo, alternadamente. As batidas eram fúnebres, que mais assustavam. O local para
localização do sineiro era uma de um janela do sobrado de meu avô Seraphim
Sanna.
Mas havia uma tarefa
importante a cumprir: o sineiro, que era eu, teria de subir para o casarão por
uma janela do segundo andar e ficar invisível. Para acesso à janela Teia do
Roque buscou uma escada que ficava disponível na porta da carpintaria de Benedito
Buty, o nosso Nelson Mandela, fisicamente idêntico, embora não tivesse sido,
naquela época, muito conhecido.
Pronto. Estava
preparada a forma de amedrontar a
população e que se resumia no seguinte aviso, feito boca a boca, durante mais
de um mês: “As Almas do Purgatório não querem que derrubem a Igrejinha do
Rosário”.
Todas as sextas-feiras,
novamente lembrando os romances machadianos, os badalares quebravam o sono de
cada morador local. No dia seguinte, os comentários corriam de casa a casa. Até
que, finalmente, descobriram o quarteto que comandava o espetáculo. Teia do
Roque, por si só, decidiu, então, usar as vestimentas roxas que são guardadas no porão do cemitério. Além desses
apetrechos, havia um gancho para pegar caixão e esticá-lo ao fundo da
sepultura. Zé Reis usava-o como forma de tornar barulhenta a sua ação, e
amedrontar os que defendiam a derrubada da igrejinha.
Fica, então, esclarecido,
o porquê nos chamavam de “capetinhas” e “encapetados”: tínhamos um objetivo
sublime que era garantir a preservação do templo histórico, entre outras causas
que defendíamos. Na época, o povo morria de medo de padre e citava a expressão
“Deus me livre da praga de padre!”
Além das bombas de fim de
guerra e da badalação de sinos, soltamos um bando de morcegos que habita a
torre do templo. Eles migraram da ameaça de morrer ouvindo rezas para as casas
que nos xingavam pela ação pouco simpática, mas necessária.
Zé Flávio e eu chegamos a frequentar um
terreiro espírita em Belo Horizonte, porque não arrumávamos empregos e
as pessoas atribuíam ser essa a “praga de padre” que algum vigário nos
rogou.
A FALTA DE PIEDADE FUNCIONOU
Ficamos fora de nossa
terra quando completei 18 anos. Empreguei-me na antiga Companhia Siderúrgica
Belgo-Mineira (CSBM), em João Monlevade, em
maio de 1963. Um mês depois recebi uma carta de um partidário do padre, comunicando-me
que “estamos derrubando a sua igreja e construiremos outra na Vila Bom Jesus”.
Acrescentou, para intimidar-me, a frase:
“Não implique mais porque agora está tudo resolvido”. Tudo resolvido entendi que a Igrejinha fora ao chão e meu emprego saiu.
Contei esta história da
demolição de nosso Rosarinho para lembrar que agora parece quererem atingir a
Igreja Matriz. Esses são acima de demônios e são chamados de capirotos. Fico a
perguntar de mim para mim: minha sina é evitar a queda de igrejas? E perder as
paradas? Será que vou perder mais uma? Advirto: não será somente eu o perdedor,
mas é a religião, a história, a cultura, a tradição, o povo.
Querem e querem e
insistem em convencer a Promotoria Pública que, para construir rampas para
deficientes físicos é preciso arrebentar as praças que circundam o templo dos
lados direito e esquerdo (atrás, não). Olhem, faço uma ameaça: não desistirei.
E tenho centenas de filhos de São Sebastião pensando assim. Mais ainda: homens, mulheres e
crianças, vivos e mortos.
CUIDADO, ESSA IGREJA PODE
IR AO CHÃO!
(Agora está assim)
Viventes humanos sabem como foi fincada a estrutura da Igreja Matriz de São Sebastião do Rio Preto? Sabem que a casa religiosa foi erguida em 1890 por aí? Sabem que, a exemplo de grande parte das casas da cidade, a igreja não tem alicerce seguro? Sabem que a fraqueza do alicerce foi testada recentemente, quando a empresa mineradora Anglo American usou as ruas para passagem de seus caminhões? Sabem que houve um grande alvoroço na cidade porque as construções balançavam seguidamente na passagem de máquinas e veículos? Sabem que algumas casas foram até indenizadas? Sabem que ocorreram dezenas de reuniões e a Anglo American chegou a tomar mais uma providência: reduziu o trânsito sequente para evitar pânico na cidade? Tudo isso que relato neste parágrafo foi ocorrência recente, de cinco anos passados.
AO MINISTÉRIO PÚBLICO E
AO JUIZADO
Agora, espero que a Promotoria Pública de Ferros e a
Justiça de modo geral considerem o seguinte: não troquem o certo pelo duvidoso.
Há pouco tempo, um templo religioso desmoronou-se em Dores de Guanhães, em
nossas proximidades. Até hoje não o
reergueram e sequer sabem quem o destruiu. O verbo evitar é um bom conselho e
só cabe no entendimento de pessoas inteligentes, principalmente as que nos
representam na Justiça. Se o templo atual já treme, é um ato de prevenção. A
expressão “balança mas não cai” pode ser alterada, desmoronar como um jenipapo.
CONCLUSÃO
(Antiga Igrejinha do Rosário - pintura de Márcio Freitas)
Concluindo, fui
testemunha ocular e presencial, além de meu primo José Flávio, da impostura
usada em 1963 e a desnecessidade de demolir um templo histórico, o Rosarinho, rico e fantástico.
Estou traumatizado até
hoje, mesmo 61 anos depois. Não façam São Sebastião do Rio Preto perder mais
uma parte de suas riquezas.
Onde podemos encontrar a cabeça de quem é favorável a esse absurdo? Não para que possamos cortá-la, decepá-la, pendurá-la nos postes como fizeram com os inconfidentes mineiros. Mas para que possamos pedir, de joelhos, se preciso, e jurando eternamente que não vamos deixar essa caravana nos destruir. Ajoelhados, prometemos lutar. Pedimos, pedimos, suplicamos, solicitamos. Mas os morcegos jamais sossegarão.
Pelo amor de Deus, que o
nosso patrimônio seja conservado e preservado. Amém.
José Sana,
jornalista, professor de letras e historiador (pós-graduação em História do Brasil e Patrimônio Histórico e Cultural)
Fotos: Arquivo e colaboradores (Dra. Leone Valério, Sibele Almeida e redes sociais)
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