Então, o que ocorreu em São Sebastião do Rio Preto, na década
de 40 do século passado? Vejo sem ver ou sem ter enxergado — e isso tento explicar para mim mesmo e não
consigo — seis homens fortes, negros, saindo da casa de meu avô Seraphim Sanna,
carregando minha futura mãe, que está deitada numa cama de madeira a que chamam
de catre. Da meia dúzia de dedicados homens fortes que
compunham o séquito, consigo reconhecer a metade: Domiro,
Sebastião Calixto e Joaquim Sete Léguas. A enferma gemendo insistentemente. Montados
em duas mulas, o pai e o noivo sem aliança decididos a resolver a questão daquela moléstia misteriosa. E as janelas apinhadas de gente, ou
as portas de vendas, atabalhoados de curiosos, desses saindo o burburinho que não cessava: “Coitada
da filha do Serafim!” Vez por outra o lamento: “Coitado do Tãozim do Godó que
quer casar com ela!”
E arrancam em viagem rumo
a Morro do Pilar por uma estrada mais parecida com caminhos de pedras, atalhos estreitíssimos, que dificultavam a posição
dos carregadores. A São Sebastião do Rio Preto não chegavam carros automotores.
Havia pois, a necessidade de se percorrer
quatro léguas ou 24 quilômetros, sol a pino, ou ameaça de chuva, final
de verão, quando costumam ser normais as
tempestades, as pancadas torrenciais, relâmpagos e trovões que metem medo. Homens suados, braços
portentosos, silêncio quase profundo em respeito à doente, coitada, sempre
examinada pelo pai farmacêutico mais conhecido como “médico dos bãos”. No
rodízio que se impunha naturalmente entre eles, quatro sustentavam a estaca de
madeira naquela espécie de padiola, que dava um aspecto quase fúnebre à expedição, dois
aguardavam a sua vez e trabalhavam como auxiliares: iam na reserva para as
substituições de esforços ou forneciam água e medicamentos que estavam em cangalha e eram para a doente da qual
todos se apiedavam a cada instante. O lamento naquele tempo era uma obrigação
quase religiosa. Quem não o tinha era considerado um mau-caráter
A primeira parada se deu a alguns quilômetros, precisamente na
localidade do Porto, a seguir mais uma na confrontação de Sangrador, Varginha e com
destaque, Itambé do Mato Dentro, onde renovaram os garrafões de água. Havia também um animal cargueiro, que transportava comida para os homens do
sacrifício, além de agasalhos e remédios.. Eles paravam, colocavam o catre no chão, debaixo de uma árvore, uma sombra. Enquanto esquentavam os seus
caldeirões de "boia" preparada pela Maria Bárbara, tradicional cozinheira de Dona
Maria e Seraphim, o chefe da comitiva, pai da enferma, cumpria o ritual de
examinar a filha, que não comia, essa era a preocupação que inquietava todos Ao
contrário, os seus sustentáculos devoravam cuias e cuités recheados como se fossem lobos famintos. Tãozinho e
Seraphim apenas lambiscavam guloseimas.
À noite, a chegada a
Morro do Pilar, a parada numa casa de pensão, os homens da estaca e do catre
procurando um lugar para o pernoite e a estadia dos animais. Seraphim, Itália e
Tãozinho foram para um velho hotel ao lado da Igreja Matriz. No dia seguinte,
enquanto a turma do transporte por atalhos retornava a São Sebastião, os guarda-costas e a
guardada embarcavam num veículo fretado para seguir rumo a Belo Horizonte,
tudo com sofreguidão indefinível, só perceptível pelo ar grave e silencioso do
ambiente. Morro do Pilar, por onde passara o pioneiro e desbravador de terras Gaspar Soares, já era uma
vila mais desenvolvida. Mas, mesmo assim, as pessoas se acotovelavam nas portas
e janelas procurando um ângulo para ver a filha daquele farmacêutico famoso, que
viera de Ouro Preto para a região.
Sem mais olhos curiosos como antes, a comitiva reduzida a três
membros, chegara a Belo Horizonte onde, durante um mês, hospedada na Rua
Diamantina, casa de parentes, frequentou
diariamente vários consultórios médicos, acompanhando cada dia com menos
esperança, a saga de Itália Sana. E não aparecia uma luz no fim do túnel para
aquele problema angustiante e desconhecido que assaltava a mente do farmacêutico, tão acostumado que era a grandes emoções. Havia regressado do interior de São Paulo, como sargento do Exército, tomara parte na Revolução Constitucionalista de 1932.
Ele, com seus botões, como chegou a revelar mais tarde, pensava, atordoando e
aterrorizando a própria alma: “Como dizem que posso curar dezenas e até
centenas de pessoas e não consigo salvar a minha filha?”. Dura um mês esse
martírio, sem nenhum resultado prático,
ou seja, em minha futura mãe nada de doença fora encontrada sem, contudo, fazê-la
levantar-se da cama, tirá-la daquela espécie de mistério que povoava a cabeça de
farmacêutico e de médicos. Ela era uma doente sem doença, uma sofredora sem sofrimento, um caso médico totalmente fora dos parâmetros da medicina na época.
Já consultadas todas as fontes da ciência médica que dominava
praticamente a era, restou ao chefe Seraphim senão retornar ao local de origem
e aguardar o que Deus determinasse. O último dia de permanência na capital teve
um ar de silêncio ensurdecedor entre sogro e genro. Ambos saíram para lugar pré-determinado
por suas mentes, sozinho cada um, inexplicavelmente determinados ambos a uma façanha. Com medo
de tocar naquele assunto sombrio, eles chegaram à noite da espécie de consulta
e se entreolharam, um querendo falar para o outro o que fora feito e o que lhes
tinha sido revelado. “Ela está com feitiço brabo”, disse um pai-de-santo ao
aspirante a cientista Seraphima Sanna. Praticamente a mesma frase fora dita ao
Tãozinho por outro visionário do além. Diria que o sogro foi ao Bairro da Glória e o
genro às cercanias do final da Avenida Amazonas, tal detalhe não consegui
apurar porque eles próprios desconfiavam um pouco dos chamados feiticeiros ou milagreiros. Mas
a expectativa era tão forte que acabaram por confrontar-se as informações e daí
o que chamaram de uma pequena solução, cumpriram ao pé da letra as
recomendações que receberam em terreiros de Umbanda.
A viagem de volta foi menos dolorosa, como era de se esperar,
mas nenhum dos acompanhantes, pai e noivo, revelou a outras pessoas aquela “verdade” que parecia tomar conta de
suas convicções. Seria esse um único caso de segredo guardado a duas chaves.
Novo táxi alugado, o motorista cumpriu o trato de fazer, no seu Buick a chamada
“corrida” Belo Horizonte a Santo Antônio do Rio Abaixo, por preço pré-fixado.
Depois de passarem por Morro do Pilar, estavam a três quilômetros de Santo
Antônio, o motorista para o carro e
brada de alto tom: “Daqui para a frente não rodo nem mais um metro!.” A decisão nem
parecia estranha não fosse a péssima estrada em que trafegavam. Mas a Seraphim,
sempre um homem tranquilo e sereno, mas determinado, que não teria uma saída
para o problema, só restou uma alternativa. Assentado no banco de trás com
Itália no colo, sacou um revólver 38 (naquele tempo quase todo mundo andava
armado) e colocou-o no pescoço do motorista: “Ou você cumpre o combinado ou morre
aqui agora!”. Aí a primeira opção foi seguida porque o chofer, obviamente, não
queria morrer.
A duras penas chegaram a Santo Antônio, pernoitaram numa pensão
enquanto aguardavam a chegada dos carregadores no dia seguinte. A dona da
pensão vendeu a cama, paga
antecipadamente pelo Seraphim. Jamais essa dona a alugaria, dissera, porque em toda a região
corria a notícia de que “a filha do farmacêutico padecia de doença ruim e
contagiosa”. O retorno a São Sebastião, trajeto de três léguas, deu-se no dia seguinte, por um
outro caminho, igualmente íngreme ao anteriormente percorrido. Ao saírem, um espetáculo
deprimente arrancou muitos indivíduos de suas casas na
pequena vila e deixou sogro e genro deliberadamente horrorizados: a cama usada e vendida foi incinerada na porta
da pensão, como se fosse um ritual de macumba ou um desses incêndios que
ocorrem em lixões do dia a dia. E a pequena população santantoniense
mantinha-se de olhos arregalados.
Já de volta à vila de São Sebastião, a vida retorna ao que era
antes. Aí escreve Tãozinho do Godó em sua autobiografia: “Depois de pensar
muito sobre o que estava acontecendo, Seraphim resolveu suspender toda a
medicação da Itália e determinou alimentação mais forte para ela, quase forçada.
Depois de muita insistência, minha irmã Maria Jacintha conseguiu levá-la
diariamente à igreja, sempre à noite e, com isso, o tempo foi passando e Itália
dava sinais de cura. Depois de dois anos
de espera, ainda noivos ou namorados, finalmente, fomos liberados para o
casamento, que ocorreu em 30 de outubro de 1943, data de aniversário do
Seraphim”.
Sobre o assunto casamento, mais
uma nota manuscrita na autobiografia de Sebastião Cândido Ferreira de Almeida:
“Para pedir autorização para o casamento, escrevi uma carta ao Seraphim, isso
antes da viagem a Belo Horiazonte, e ele nunca respondeu, apesar de termos continuado
o namoro sem noivado. Não usamos aliança, portanto, e para mim aquela situação
foi um pouco incômoda. Como eu gosto muito dela — sempre e sempre — e parecia
que ela gostava de mim também, passamos por esse constrangimento”.
Obs: A título de esclarecimento, informo que sempre ouvi contar
toda a história acima relatada, até com
mais detalhes. Mas, inexplicavelmente, continuo pensando que eu estava
presente naquela trajetória. A tudo acompanhei, recordo, não abro mão, sei
todos os detalhes da viagem. Este assunto conversava sempre com o meu pai e ele
se mostrava surpreso com o que lhe contava.
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