sábado, 15 de fevereiro de 2014

CENTENÁRIO DO TÃOZINHO DO GODÓ (2)


Para falar do que sei sobre o meu Pai preciso retornar  a 1940 quando, sequer, pelo menos fisicamente, não era eu nem um projeto ou talvez nem um sêmen, simplesmente uma energia ou uma alma ou um espírito. Ele, com 27 anos, namorava minha Mãe, na flor dos 17. Notadamente, Tãozinho se apaixonou,  depois de se divertir inocentemente, como era praxe na época, com uma turma de  meninas, no tempo da inocência pura, la belle époque brasileira.

Então, o que ocorreu em São Sebastião do Rio Preto, na década de  40 do século passado?  Vejo sem ver ou sem ter enxergado  — e isso tento explicar para mim mesmo e não consigo — seis homens fortes, negros, saindo da casa de meu avô Seraphim Sanna, carregando minha futura mãe, que está deitada numa cama de madeira a que chamam de catre. Da meia dúzia de dedicados homens fortes que compunham o séquito, consigo reconhecer a metade: Domiro, Sebastião Calixto e Joaquim Sete Léguas. A enferma gemendo insistentemente. Montados em duas mulas, o pai e o noivo sem aliança decididos a resolver a questão daquela moléstia misteriosa. E as janelas apinhadas de gente, ou as portas de vendas, atabalhoados de curiosos, desses saindo o burburinho que não cessava: “Coitada da filha do Serafim!” Vez por outra o lamento: “Coitado do Tãozim do Godó que quer casar com ela!”

E arrancam em viagem  rumo a Morro do Pilar por uma estrada mais parecida com caminhos de pedras,  atalhos estreitíssimos, que dificultavam a posição dos carregadores. A São Sebastião do Rio Preto não chegavam carros automotores. Havia pois, a necessidade de se percorrer  quatro léguas ou 24 quilômetros, sol a pino, ou ameaça de chuva, final de verão, quando costumam ser normais  as tempestades, as pancadas torrenciais, relâmpagos e trovões que metem medo. Homens suados, braços portentosos, silêncio quase profundo em respeito à doente, coitada, sempre examinada pelo pai farmacêutico mais conhecido como “médico dos bãos”. No rodízio que se impunha naturalmente entre eles, quatro sustentavam a estaca de madeira naquela espécie de padiola, que dava um aspecto quase fúnebre à expedição, dois aguardavam a sua vez e trabalhavam como auxiliares: iam na reserva para as substituições de esforços ou forneciam água e medicamentos que estavam em cangalha e eram para a doente da qual todos se apiedavam a cada instante. O lamento naquele tempo era uma  obrigação quase religiosa. Quem não o tinha era considerado um mau-caráter

A primeira parada se deu a alguns quilômetros, precisamente na localidade do Porto, a seguir mais uma na confrontação de Sangrador, Varginha e com destaque, Itambé do Mato Dentro, onde renovaram os  garrafões de água. Havia também um animal cargueiro, que transportava comida para os homens do sacrifício, além de agasalhos e remédios.. Eles paravam, colocavam o catre no chão, debaixo de uma árvore, uma sombra. Enquanto esquentavam os seus caldeirões de "boia" preparada pela Maria Bárbara, tradicional cozinheira de Dona Maria e Seraphim, o chefe da comitiva, pai da enferma, cumpria o ritual de examinar a filha, que não comia, essa era a preocupação que inquietava todos Ao contrário, os seus sustentáculos devoravam cuias e cuités  recheados como se fossem lobos famintos. Tãozinho e Seraphim apenas lambiscavam guloseimas.

À noite, a chegada a Morro do Pilar, a parada numa casa de pensão, os homens da estaca e do catre procurando um lugar para o pernoite e a estadia dos animais. Seraphim, Itália e Tãozinho foram para um velho hotel ao lado da Igreja Matriz. No dia seguinte, enquanto a turma do transporte por atalhos retornava a São Sebastião, os guarda-costas e a guardada embarcavam num veículo fretado para seguir rumo a Belo Horizonte, tudo com sofreguidão indefinível, só perceptível pelo ar grave e silencioso do ambiente. Morro do Pilar, por onde passara o pioneiro e desbravador de terras Gaspar Soares, já era uma vila mais desenvolvida. Mas, mesmo assim, as pessoas se acotovelavam nas portas e janelas procurando um ângulo para ver a filha daquele farmacêutico famoso, que viera de Ouro Preto para a região.

Sem mais olhos curiosos como antes, a comitiva reduzida a três membros, chegara a Belo Horizonte onde, durante um mês, hospedada na Rua Diamantina, casa de parentes,  frequentou diariamente vários consultórios médicos, acompanhando cada dia com menos esperança, a saga de Itália Sana. E não aparecia uma luz no fim do túnel para aquele problema angustiante e desconhecido que assaltava a mente do farmacêutico, tão acostumado que era a grandes emoções. Havia regressado do interior de São Paulo, como sargento do Exército, tomara parte na Revolução Constitucionalista de 1932. Ele, com seus botões, como chegou a revelar mais tarde, pensava, atordoando e aterrorizando a própria alma: “Como dizem que posso curar dezenas e até centenas de pessoas e não consigo salvar a minha filha?”. Dura um mês esse martírio, sem nenhum  resultado prático, ou seja, em minha futura mãe nada de doença fora encontrada sem, contudo, fazê-la levantar-se da cama, tirá-la daquela espécie de mistério que povoava a cabeça de farmacêutico e de médicos. Ela era uma doente sem doença, uma sofredora sem sofrimento, um caso médico totalmente fora dos parâmetros da medicina na época.

Já consultadas todas as fontes da ciência médica que dominava praticamente a era, restou ao chefe Seraphim senão retornar ao local de origem e aguardar o que Deus determinasse. O último dia de permanência na capital teve um ar de silêncio ensurdecedor entre sogro e genro. Ambos saíram para lugar pré-determinado por suas mentes, sozinho cada um, inexplicavelmente determinados ambos a uma façanha. Com medo de tocar naquele assunto sombrio, eles chegaram à noite da espécie de consulta e se entreolharam, um querendo falar para o outro o que fora feito e o que lhes tinha sido revelado. “Ela está com feitiço brabo”, disse um pai-de-santo ao aspirante a cientista Seraphima Sanna. Praticamente a mesma frase fora dita ao Tãozinho por outro visionário do além. Diria que o sogro foi ao Bairro da Glória e o genro às cercanias do final da Avenida Amazonas, tal detalhe não consegui apurar porque eles próprios desconfiavam um pouco dos chamados feiticeiros ou milagreiros. Mas a expectativa era tão forte que acabaram por confrontar-se as informações e daí o que chamaram de uma pequena solução, cumpriram ao pé da letra as recomendações que receberam em terreiros de Umbanda.

A viagem de volta foi menos dolorosa, como era de se esperar, mas nenhum dos acompanhantes, pai e noivo, revelou a outras pessoas  aquela “verdade” que parecia tomar conta de suas convicções. Seria esse um único caso de segredo guardado a duas chaves. Novo táxi alugado, o motorista cumpriu o trato de fazer, no seu Buick a chamada “corrida” Belo Horizonte a Santo Antônio do Rio Abaixo, por preço pré-fixado. Depois de passarem por Morro do Pilar, estavam a três quilômetros de Santo Antônio, o motorista para  o carro e brada de alto tom: “Daqui para a frente  não rodo nem mais um metro!.” A decisão nem parecia estranha não fosse a péssima estrada em que trafegavam. Mas a Seraphim, sempre um homem tranquilo e sereno, mas determinado, que não teria uma saída para o problema, só restou uma alternativa. Assentado no banco de trás com Itália no colo, sacou um revólver 38 (naquele tempo quase todo mundo andava armado) e colocou-o no pescoço do motorista: “Ou você cumpre o combinado ou morre aqui agora!”. Aí a primeira opção foi seguida porque o chofer, obviamente, não queria morrer.

A duras penas chegaram a Santo Antônio, pernoitaram numa pensão enquanto aguardavam a chegada dos carregadores no dia seguinte. A dona da pensão  vendeu a cama, paga antecipadamente pelo Seraphim. Jamais essa dona a  alugaria, dissera, porque em toda a região corria a notícia de que “a filha do farmacêutico padecia de doença ruim e contagiosa”. O retorno a São Sebastião, trajeto de três léguas, deu-se no dia seguinte, por um outro caminho, igualmente íngreme ao anteriormente percorrido. Ao saírem, um espetáculo deprimente  arrancou muitos indivíduos de suas casas na pequena vila e deixou sogro e genro deliberadamente horrorizados:  a cama usada e vendida foi incinerada na porta da pensão, como se fosse um ritual de macumba ou um desses incêndios que ocorrem em lixões do dia a dia. E a pequena população santantoniense mantinha-se de olhos arregalados.

Já de volta à vila de São Sebastião, a vida retorna ao que era antes. Aí escreve Tãozinho do Godó em sua autobiografia: “Depois de pensar muito sobre o que estava acontecendo, Seraphim resolveu suspender toda a medicação da Itália e determinou alimentação mais forte para ela, quase forçada. Depois de muita insistência, minha irmã Maria Jacintha conseguiu levá-la diariamente à igreja, sempre à noite e, com isso, o tempo foi passando e Itália  dava sinais de cura. Depois de dois anos de espera, ainda noivos ou namorados, finalmente, fomos liberados para o casamento, que ocorreu em 30 de outubro de 1943, data de aniversário do Seraphim”.

Sobre o assunto casamento, mais  uma nota manuscrita na autobiografia de Sebastião Cândido Ferreira de Almeida: “Para pedir autorização para o casamento, escrevi uma carta ao Seraphim, isso antes da viagem a Belo Horiazonte, e ele nunca respondeu, apesar de termos continuado o namoro sem noivado. Não usamos aliança, portanto, e para mim aquela situação foi um pouco incômoda. Como eu gosto muito dela — sempre e sempre — e parecia que ela gostava de mim também, passamos por esse constrangimento”.

Obs: A título de esclarecimento, informo que sempre ouvi contar toda a história acima relatada, até com  mais detalhes. Mas, inexplicavelmente, continuo pensando que eu estava presente naquela trajetória. A tudo acompanhei, recordo, não abro mão, sei todos os detalhes da viagem. Este assunto conversava sempre com o meu pai e ele se mostrava surpreso com o que lhe contava.

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