segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A galinhada mais gostosa de todos os tempos em São Sebastião do Rio Preto. Sem galinha

Melquíades é o nome dele. Encontra-se, no momento, curtindo a sua merecida vida de aposentado, com a família, em sua terra natal, São Sebastião do Rio Preto. Filho de ah... preciso ver no meu atestado de casamento o nome do pai dele, acho que Adolvano Glicério da Silva, sei lá, mas sempre foi conhecido como Nego da Olinda, o juiz de Paz do ex-arraial de São Sebastião do Cemitério. O nosso personagem de hoje, o filho do popular Nego, então é ele mesmo, o Meio Quilo, um quase apelido do Melquíades.

Meio Quilo tinha uma ferraria ou forja  bem no centro da vila, perigosamente no andar  térreo de um velho sobrado que já ameaçava cair. E, hoje, analisando os riscos que oferecia, teria o casarão apontados pelos multiplicados bombeiros que vagam por aí, como o  primeiro a ser interditado em qualquer canto do mundo. Mas, graças a Deus, romperam anos a fio e os tempos e só ruiu o prédio com a sua demolição antes do final do século XX.

Na década de 60 do século passado, quando abrigava a citada forja, jamais tinha sido uma espécie de cozinha das famosas galinhas com arroz que se realizavam pelo menos duas, três e até quatro vezes por  semana. Mas acabou sendo uma dessas fatais demolidoras de aves que sobravam nos poleiros que atraíam os “pegadores profissionais”, aqueles que sabiam dar o bote no pescoço da ave sem um barulho sequer e até mesmo o esparramar de suas companheiras.  Uma turminha de vagabundos, entre tantos eu, que nunca perdi um desses jantares da madrugada no pouco tempo em que perambulei por lá como adolescente. A turma saía pelos quintais afora, como se andasse numa rua qualquer, e não deixava que o cacarejar fora de hora das aves perturbasse o sono de seus legítimos donos. O alvo da vadiagem eram aves gordas, às vezes já estudadas antecipadamente. O aviso corria de boca a ouvido pelas portas de botecos e assentos de praças, com ele o convite para  devorar a dita cuja coitadinha, sem que se vazasse uma pista sequer aos não confiáveis.

Não havia lugar definido para o encontro fatal na calada da noite. Os comes e bebes (havia o acompanhamento infalível de um litro de cachaça) ocorriam  sempre  em locais diferentes,  alternados, sendo o arroz oferecido pelo patrocinador com os demais temperos.  O convite aos comilões chegava com um pedido a um ou outro: “Leve a pinga”. E não podia mesmo faltar a “malvada” , já que o arraial, depois cidade, carrega desde a antiguidade o nome quase oficial de Gambá. Para  enriquecer essa cultura, registro aqui uma frase do saudoso amigo José Lucas Ferreira, o Zezé de Dona Maricas do Sótão do Padre (os nomes das pessoas costumam buscar a origem até no bisavô ou bisavó, uma característica cultural do lugar): “Em São Sebastião o único que não bebe é o sino da igreja, que está de boca pra baixo”.

Numa bela noite em que faltava energia elétrica nas ruas, como era praxe, recebemos o mais inusitado dos convites: “Melquíades, ou melhor, Meio Quilo, mandou chamar para uma galinhada na sua tenda”. Tenda, assim se chamava a forja. E foi à meia-noite, hora que fazia tremer muita gente naquele tempo, principalmente os que ainda ouviam histórias de assombrações do Manoel Bispo Nascente, chegamos ao destino. Infalivelmente,  Joãozinho Kaki, Zé Flávio, Teia e outros gatos pingados faziam parte da comitiva. Eu no meio deles, sem dúvida o mais agitado e entusiasmado, modéstia às favas, pois nem conseguia dormir  antes das 5 da manhã.

Adentramos a tenda. Uma escuridão de buraco negro tomava conta do interior do ex-casarão do  Nhozinho do Jacintho, outra lenda da cidade. No fundo da oficina, um “panelão de cozinhar para marujada”, como dizia um dos presentes, transbordava de galinha, ou galinhas, com arroz, jamais imaginadas que existiriam um dia, especialmente naquela noite em que nada de especial havia, nem era aniversário do cachorro que vigiava a tenda.  Para enxergar a  panela era preciso apertar a “barriga” do fole da forja. Aí ele fumegava temporariamente  como um relâmpago de alto-circuito sem o trovão de banda de música do Godó.

Pratos cheios, cada um no seu canto, assentados todos, os pedaços de coxas eram anunciados pela espantosa esperteza do Teia, que bradava aos quatro cantos:  “Uai, Meio Quilo, você matou quantas galinhas? Só eu peguei três coxas!”  (risos, risos e mais  risos).  Manjando a charada da noite, Zé Flávio rasgava a garganta de vibração com a novidade, que já parecia uma fraude, com a ênfase alucinatória anunciada. A desconfiança não se alastrou porque praticamente todos já babavam seus pileques em cima da camisa. Alguém perguntou ao Melquíades, acho que foi o Élio Quintão, o Broa, onde e na mão de quem tinha comprado  ou “roubado” as galinhas, e ele  nem quis responder, ou apenas declarou timidamente: “Isso é mistério, vocês vão saber depois”.

E lá se foi o que estava na panela. Rapada e raspada até o fim,  todos elogiaram a “galinhada” do Meio Quilo, feita no fole, na brasa e na forja que era uma cópia da oficina tradicional do velho Mingola. A mim, ele solicitou um atestado de qualidade do produto, como se fosse algum relatório exigido por um órgão público competente. Rindo como todos, segurando uma gargalhada maior, falei aos quatro cantos da oficina: “Esse macarroz  foi o mais gostoso que até hoje devorei na vida! E olha que já sou velho nisso!”

Em tempo: macarroz é o nome que encontrei no meu pobre dicionário para definir uma mistura de macarrão com arroz, ambos queimados no fundo da panela  para parecer pedaços de frango. E viva o humor, a novidade e a noitada inesquecível vivida dentro da forja do Meio Quilo!   

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