Nunca em toda a vida pensei em escrever sobre ela. Em vida era
humilde e realizada internamente e, então, jamais seria tocada a elogios. Agora
no além está ainda mais acomodada com a paz que Deus lhe deu interna e
eternamente. Por isso e porque todo escrevente, pé-rapado como eu, ou não, tem
dificuldades em começar, desenvolver e concluir um texto sem pensar
antecipadamente nele. Poderia começar assim: ela era uma santa, mas todos já
sabiam e não tem graça alguma. De há muito sei que a multidão a ama e,
portanto, não é preciso dizer algo. Mas vou começar não em 26 de junho de 1946,
quando ela nasceu, mas dez dias depois dessa data, quando um fato abalou, como o
de 20 de fevereiro passado, a pequena São Sebastião do Rio Preto. E vou dizer o
seu nome agora para que este texto não
pareça um conto de suspense: Raymunda Almeida Dias, mais conhecida como
Mundica.
Minha, ou nossa avó, Maria da Natividade Ferreira de Almeida,
mais precisamente Sinhá do Godó, a companheira de Godofredo Cândido D’Almeida,
cumpria uma de suas tarefas diárias para aliviar a filha que a tivera, Luzia
Cândida Ferreira de Almeida Dias: carregava a menina nos braços, a ninar,
sacudir, fazer dormir. De repente, Sinhá grita e cai abraçada à criança. Sinhá
está morta! Correm as pessoas para acudi-la e tentar salvar a criança. A
primeira tarefa foi em vão, a avó de 57 anos estava já no outro mundo;
Raimunda, completamente intata. Milagre? Meio milagre, diria, porque não se
salvou uma bondade que a vila de São Sebastião do Rio Preto apreciava.
Aí começa a história de uma predestinada. Alguém perguntaria:
ela foi alguma governadora de estado ou presidente da República, ou ministra,
ou algo assim que chamasse a atenção para ganhar o adjetivo predestinada? A
resposta é óbvia e nem é preciso comentá-la. Há na predestinação, de verdade, o
cumprimento fiel de deveres, a colocação em prática da bondade sem esforço,
nada que dependa de nossa avaliação. E que fique bem claro que não estou
fazendo julgamento, sequer avaliação. Cumpro o dever de minha função neste
momento. Após o susto do tombo, desnecessário seria relembrar dias, meses e
anos até a adolescência e a juventude, todo o tempo coroado por uma humildade
linda e sublime.
Vou dar um salto para os 17 anos dela, quando experimentava este
pobre aqui algumas fatias do pão que o diabo primeiramente amassou, depois comeu e cuspiu ou da empada que matou o
guarda, mais claramente passava dias amargos em Belo Horizonte por falta de
emprego. Apenas com o dinheiro da passagem de São Sebastião a Belo Horizonte,
no ônibus fui surpreendido pela tia Luzia, mãe dela, puxando a mocinha pelo
braço e ma entregando: “Ela está sob a sua responsabilidade. Tome conta dela
até Belo Horizonte e embarque a Mundica no ônibus de Itaúna”. Ela estudava em
Itaúna, onde estava em ofício religioso a nossa tia Irmã Míriam. Elas estiveram
juntas também em Itambacuri no Convento das Irmãs Clarissas Franciscanas.
E me vi numa situação irrequieta. Como permaneceria com ela em
BH durante cerca de três horas, passando pela hora do almoço até o embarque do
ônibus de Itaúna? Pois conto agora o que fiz: saímos, a pé, da Rodoviária à Rua
Além Paraíba, pertinho, onde morava um tio-avô. Ultrapassando toda a minha
condição de tímido, diria até orgulhoso, encarei minha tia torta com exatamente
as seguintes palavras dolorosas e corajosas: “Esta aqui é minha prima, tem que ir para Itaúna às
2 horas; viemos almoçar com a senhora.
Podemos?”. Graças a Deus, mesmo não
tendo ela parentesco com a minha tia, não houve questionamento, como era praxe
naqueles difíceis tempos.
Afirmei isso apenas para lembrar que tive a coragem de fazer por
ela algo impossível na minha vida, principalmente naquele tempo, façanha que,
durante quase dois anos, não fiz por mim, já que não somente eu, mas o irmão
dela, José Flávio, vivíamos como meninos de rua na capital. Sem comentários,
desculpem-me contar esse trecho de minha vida. Mas volto à querida prima, que
nos assustou com a sua inesperada
partida agora. Vamos à sua vida de professora: alfabetizou crianças; ensinou
adolescentes, jovens e adultos a ler e viver; dirigiu a escola em que, poucos
anos antes era aluna; comportou-se como honrada primeira-dama, quando o seu
marido era prefeito se São Sebastião (1993-1996).
Seu pai chamava-se Francisco Dias de Azevedo, conhecido como
Chico do Padre (quer dizer, irmão do
Padre Argel, muitos anos vigário de São Sebastião); a mãe, Luzia, que já
apresentei, de olhos azuis como o mar e como o irmão dela, meu pai. Os irmãos:
José Flávio, também já apresentei, Maria das Graças e Goreti. Conquistou Paulo Quintão de Almeida, o nosso
Paulinho, com quem se casou, com quem
teve um casal de filhos: Ana Paula, hoje morando nos Estados Unidos; Tiago, casado com Cristiane com quem tem dois filhos, e mora em BH.
O que mais dizer da prima? Minha irmã Mary Sana pediu-me para
dizer algo sobre ela. Foi sua professora e a ensinou muito, além do
conhecimento pedagógico. Cada aluno que passou por ela se manifestou, em várias
ocasiões, agradecido. Cumpriu seu dever, sua missão e, ainda mais, esbanjou
amizades pelos caminhos percorridos. Também a minha irmã Maria das Graças foi
sua prima-irmã. Vizinhas, solidárias, caminhantes da vida e das ruas para o se manter
a forma física. Também se manteve fiel aos parentes todos, de cada casa e dos
inúmeros amigos. Nem sei porque estou escrevendo isto, completamente
indispensável, um pleonasmo redundante, ou seja, elevado ao quadrado.
Todas as mortes já não me assustam tanto como na minha infância
e juventude. Procuro encaixá-las dentro do contexto da vida, pois se trata de
um acontecimento infalível para todos. Mas tenho que explicar por que neste
momento ainda não me recobrei os sentidos e os sentimentos. Não sei se será
possível por essas linhas. Anotem: a partir de janeiro, logo depois que Ana Paula
regressava de férias a New Jersey (EUA), tinha passado alguns dias com os pais, em São Sebastião
do Rio Preto, iniciamos uma conversa diária no Facebook, in box, que só tinha
um assunto imutável e repetitivo :
Mundica, Mundica, Mundica. Não havia variável para a conversa. Vejam alguns
tópicos que destaquei:
Ana
Paula (20/01/2014) — Dorme com os anjos (depois de uma longa conversa).
José
Sana — Você também
Ana
Paula — Minha mãe é um anjo, sabia?
José
Sana — Claro que sei.
Ana
Paula — Então, filho de anjo...anjinho é
kkkkkkkkkkkkkk
José
Sana — Claro.
Ana
Paula (30/01/2014) — Sabe que ligo para
minha mãe todo dia?
José
Sana — Estou sabendo...
Ana
Paula — Ela quer saber de você por que sumiu? Estou com ciúme....rsrsrsrs
José
Sana — Sumi não. Estava viajando. Ciúme? kkkkkkkk Essa é boa!
Ana
Paula — Sei que você não vai a São Sebastião sem falar com ela...
José
Sana — De quem você está com ciúme: de mim ou dela?
Ana
Paula — Both (ambos)
José
Sana — Mentir é pecado, viu?
Ana
Paula — Eu confesso depois... rsrsrsrsrs...
José
Sana — Ela merece todo amor do mundo...
Ana
Paula — Minha Mamãe não tem explicação.......é
um anjo mesmo.....
José
Sana — Inexplicável!
Ana
Paula — Inexplicável é pouco para ela......nunca fala algo ruim, quando ligo
ela está sempre de ótimo humor.....eu queria ser assim rsrsrs...E olha
que ligo mesmo quase todos os dias.
Nunca reclama de nada....nada, nada, nada.
José
Sana — Ela olha para minha cara e ri. Ou eu tenho uma cara muito engraçada ou
ela está doida!
Ana
Paula — rsrsrsrs...
Ana
Paula (07/02/2014) — Oi primo!...Você tem notícia da mamãe...please?
José
Sana — Sim. Estou vindo do hospital agora...
Ana
Paula — Diga... Você está dirigindo?
José
Sana — Não. Estou no escritório. Estive
na UTI. Ela arrumou uma dor no abdome. Conversamos, seu pai e eu, com a Dra.
Janine, médica chefe da UTI hoje...
Ana
Paula — Nossa a mamãe não fala que está com dor nunca!
José
Sana — E nem gosta de ir ao médico. Foi ao médico de São Sebastião. Passou
muito mal ontem (dia 6, quinta-feira), em São Sebastião e seu pai a trouxe para
Itabira.
Ana
Paula — Meu Deus! Ela tem mesmo pavor de médico!
José
Sana — Quando tiver mais notícias, passo para você. Fique calma.
Depois
disso, mais uns três dias e a filha estava no Brasil, em Itabira, veio
correndo. E, infelizmente, não teve jeito. Deus quis que ela fosse para o Seu
lado. Entendeu (e ninguém questiona) que ela já cumprira a sua missão.
Apagou-se em coma, ou seja, seus últimos dias e horas não tiveram dores para
ela, como bem mereceu a vida toda.
Acho
que para uma falta de palavras, situação própria de qualquer escritor ou
escrevente de meia-tigela, o que acabo de escrever é o bastante. E como nada
escrevi que merecesse a atenção pela literatura, mas pelo personagem, vou, como
sempre faço em momentos em que algo termina, recorro a Carlos Drummond de
Andrade para tirar dele o meu poema preferido:
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
P.S.:
Essas três fotos acima mostradas foram feitas por mim na última vez em que
estive na casa dela, em 31 de janeiro. E o mais incrível: ela me pediu que
fizesse, fato que jamais ocorrera na vida...
Ler seus textos faz sentir a presença das pessoas e lugares citados, evoca um tempo bom, tempo de infância, tempo de convivência com toda essa gente sebastianense...
ResponderExcluirObrigado, amiga e conterrânea Aparecida Ferreira. A sua bondade é maior que este texto comprido. Abraços...
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