sábado, 22 de fevereiro de 2014

Para minha prima ou à sua memória. Sinceramente...



Nunca em toda a vida pensei em escrever sobre ela. Em vida era humilde e realizada internamente e, então, jamais seria tocada a elogios. Agora no além está ainda mais acomodada com a paz que Deus lhe deu interna e eternamente. Por isso e porque todo escrevente, pé-rapado como eu, ou não, tem dificuldades em começar, desenvolver e concluir um texto sem pensar antecipadamente nele. Poderia começar assim: ela era uma santa, mas todos já sabiam e não tem graça alguma. De há muito sei que a multidão a ama e, portanto, não é preciso dizer algo. Mas vou começar não em 26 de junho de 1946, quando ela nasceu, mas dez dias depois dessa data, quando um fato abalou, como o de 20 de fevereiro passado, a pequena São Sebastião do Rio Preto. E vou dizer o seu nome agora  para que este texto não pareça um conto de suspense: Raymunda Almeida Dias, mais conhecida como Mundica.

Minha, ou nossa avó, Maria da Natividade Ferreira de Almeida, mais precisamente Sinhá do Godó, a companheira de Godofredo Cândido D’Almeida, cumpria uma de suas tarefas diárias para aliviar a filha que a tivera, Luzia Cândida Ferreira de Almeida Dias: carregava a menina nos braços, a ninar, sacudir, fazer dormir. De repente, Sinhá grita e cai abraçada à criança. Sinhá está morta! Correm as pessoas para acudi-la e tentar salvar a criança. A primeira tarefa foi em vão, a avó de 57 anos estava já no outro mundo; Raimunda, completamente intata. Milagre? Meio milagre, diria, porque não se salvou uma bondade que a vila de São Sebastião do Rio Preto apreciava.

Aí começa a história de uma predestinada. Alguém perguntaria: ela foi alguma governadora de estado ou presidente da República, ou ministra, ou algo assim que chamasse a atenção para ganhar o adjetivo predestinada? A resposta é óbvia e nem é preciso comentá-la. Há na predestinação, de verdade, o cumprimento fiel de deveres, a colocação em prática da bondade sem esforço, nada que dependa de nossa avaliação. E que fique bem claro que não estou fazendo julgamento, sequer avaliação. Cumpro o dever de minha função neste momento. Após o susto do tombo, desnecessário seria relembrar dias, meses e anos até a adolescência e a juventude, todo o tempo coroado por uma humildade linda e sublime.

Vou dar um salto para os 17 anos dela, quando experimentava este pobre aqui algumas fatias do pão que o diabo primeiramente amassou, depois comeu e cuspiu ou da empada que matou o guarda, mais claramente passava dias amargos em Belo Horizonte por falta de emprego. Apenas com o dinheiro da passagem de São Sebastião a Belo Horizonte, no ônibus fui surpreendido pela tia Luzia, mãe dela, puxando a mocinha pelo braço e ma entregando: “Ela está sob a sua responsabilidade. Tome conta dela até Belo Horizonte e embarque a Mundica no ônibus de Itaúna”. Ela estudava em Itaúna, onde estava em ofício religioso a nossa tia Irmã Míriam. Elas estiveram juntas também em Itambacuri no Convento das Irmãs Clarissas Franciscanas.

E me vi numa situação irrequieta. Como permaneceria com ela em BH durante cerca de três horas, passando pela hora do almoço até o embarque do ônibus de Itaúna? Pois conto agora o que fiz: saímos, a pé, da Rodoviária à Rua Além Paraíba, pertinho, onde morava um tio-avô. Ultrapassando toda a minha condição de tímido, diria até orgulhoso, encarei minha tia torta com exatamente as seguintes palavras dolorosas e corajosas: “Esta  aqui é minha prima, tem que ir para Itaúna às 2 horas;  viemos almoçar com a senhora. Podemos?”.  Graças a Deus, mesmo não tendo ela parentesco com a minha tia, não houve questionamento, como era praxe naqueles difíceis tempos.

Afirmei isso apenas para lembrar que tive a coragem de fazer por ela algo impossível na minha vida, principalmente naquele tempo, façanha que, durante quase dois anos, não fiz por mim, já que não somente eu, mas o irmão dela, José Flávio, vivíamos como meninos de rua na capital. Sem comentários, desculpem-me contar esse trecho de minha vida. Mas volto à querida prima, que nos assustou com a sua  inesperada partida agora. Vamos à sua vida de professora: alfabetizou crianças; ensinou adolescentes, jovens e adultos a ler e viver; dirigiu a escola em que, poucos anos antes era aluna; comportou-se como honrada primeira-dama, quando o seu marido era prefeito se São Sebastião (1993-1996).

Seu pai chamava-se Francisco Dias de Azevedo, conhecido como Chico do Padre  (quer dizer, irmão do Padre Argel, muitos anos vigário de São Sebastião); a mãe, Luzia, que já apresentei, de olhos azuis como o mar e como o irmão dela, meu pai. Os irmãos: José Flávio, também já apresentei, Maria das Graças e Goreti.  Conquistou Paulo Quintão de Almeida, o nosso Paulinho, com quem  se casou, com quem teve um casal de filhos: Ana Paula, hoje morando nos Estados Unidos; Tiago, casado com Cristiane com  quem tem dois filhos, e mora em BH.

O que mais dizer da prima? Minha irmã Mary Sana pediu-me para dizer algo sobre ela. Foi sua professora e a ensinou muito, além do conhecimento pedagógico. Cada aluno que passou por ela se manifestou, em várias ocasiões, agradecido. Cumpriu seu dever, sua missão e, ainda mais, esbanjou amizades pelos caminhos percorridos. Também a minha irmã Maria das Graças foi sua prima-irmã. Vizinhas, solidárias, caminhantes da vida e das ruas para o se manter a forma física. Também se manteve fiel aos parentes todos, de cada casa e dos inúmeros amigos. Nem sei porque estou escrevendo isto, completamente indispensável, um pleonasmo redundante, ou seja, elevado ao quadrado.

Todas as mortes já não me assustam tanto como na minha infância e juventude. Procuro encaixá-las dentro do contexto da vida, pois se trata de um acontecimento infalível para todos. Mas tenho que explicar por que neste momento ainda não me recobrei os sentidos e os sentimentos. Não sei se será possível por essas linhas. Anotem: a partir de janeiro, logo depois que Ana Paula regressava de férias a New Jersey (EUA), tinha passado alguns dias com  os pais, em São Sebastião do Rio Preto, iniciamos uma conversa diária no Facebook, in box, que só tinha um assunto  imutável e repetitivo : Mundica, Mundica, Mundica. Não havia variável para a conversa. Vejam alguns tópicos que destaquei: 






Ana Paula (20/01/2014) — Dorme com os anjos (depois de uma longa conversa).
José Sana — Você também
Ana Paula — Minha mãe é um anjo, sabia?
José Sana —  Claro que sei.
Ana Paula — Então, filho de anjo...anjinho é  kkkkkkkkkkkkkk
José Sana — Claro.

Ana Paula  (30/01/2014) — Sabe que ligo para minha mãe todo dia?
José Sana — Estou sabendo...
Ana Paula — Ela quer saber de você por que sumiu? Estou com ciúme....rsrsrsrs
José Sana — Sumi não. Estava viajando. Ciúme? kkkkkkkk Essa é boa!
Ana Paula — Sei que você não vai a São Sebastião sem falar com ela...
José Sana — De quem você está com ciúme: de mim ou dela?
Ana Paula — Both (ambos)
José Sana — Mentir é pecado, viu?
Ana Paula — Eu confesso depois... rsrsrsrsrs...
José Sana —  Ela merece todo amor do mundo...
Ana Paula — Minha Mamãe não tem explicação.......é  um anjo mesmo.....
José Sana — Inexplicável!
Ana Paula — Inexplicável é pouco para ela......nunca fala algo ruim, quando ligo ela  está sempre de ótimo  humor.....eu queria ser assim rsrsrs...E olha que  ligo mesmo quase todos os dias. Nunca reclama de nada....nada, nada, nada.
José Sana — Ela olha para minha cara e ri. Ou eu tenho uma cara muito engraçada ou ela está doida!
Ana Paula — rsrsrsrs...

Ana Paula (07/02/2014) — Oi primo!...Você tem notícia da mamãe...please?
José Sana — Sim. Estou vindo do hospital agora...
Ana Paula — Diga... Você está dirigindo?
José Sana —  Não. Estou no escritório. Estive na UTI. Ela arrumou uma dor no abdome. Conversamos, seu pai e eu, com a Dra. Janine, médica chefe da UTI hoje...
Ana Paula — Nossa a mamãe não fala que está com dor nunca!
José Sana — E nem gosta de ir ao médico. Foi ao médico de São Sebastião. Passou muito mal ontem (dia 6, quinta-feira), em São Sebastião e seu pai a trouxe para Itabira.
Ana Paula — Meu Deus! Ela tem mesmo pavor de médico!
José Sana — Quando tiver mais notícias, passo para você. Fique calma.

Depois disso, mais uns três dias e a filha estava no Brasil, em Itabira, veio correndo. E, infelizmente, não teve jeito. Deus quis que ela fosse para o Seu lado. Entendeu (e ninguém questiona) que ela já cumprira a sua missão. Apagou-se em coma, ou seja, seus últimos dias e horas não tiveram dores para ela, como bem mereceu a vida toda.

Acho que para uma falta de palavras, situação própria de qualquer escritor ou escrevente de meia-tigela, o que acabo de escrever é o bastante. E como nada escrevi que merecesse a atenção pela literatura, mas pelo personagem, vou, como sempre faço em momentos em que algo termina, recorro a Carlos Drummond de Andrade para tirar dele o meu poema preferido:

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.


P.S.: Essas três fotos acima mostradas foram feitas por mim na última vez em que estive na casa dela, em 31 de janeiro. E o mais incrível: ela me pediu que fizesse, fato que jamais ocorrera na vida...
 

2 comentários:

  1. Ler seus textos faz sentir a presença das pessoas e lugares citados, evoca um tempo bom, tempo de infância, tempo de convivência com toda essa gente sebastianense...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, amiga e conterrânea Aparecida Ferreira. A sua bondade é maior que este texto comprido. Abraços...

      Excluir