sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

ACONTECEU EM SANTANTÔNIO

Quem me conhece sabe que tenho um monte de pátrias ou torrões natal.  Nasci em São Sebastião do Rio Preto, estudei morando em Guanhães, Conceição do Mato Dentro e Belo Horizonte. Passei praticamente todas as férias da infância e pré-adolescência em Santo Antônio do Rio Abaixo e me fixei definitivamente em Itabira, onde vivi e vivo a maior parte da vida.

Agora me interessa Santo Antônio, ou Santantônio, como dissemos nós, mineiros, engolindo sílabas, às vezes até palavras inteiras. Desde criança, como disse, o meu lazer ocorria na Fazenda dos Bambus, dos meus  tios Antônio (in memoriam) e Magda. Gabava-me de conhecer, de cor e salteado, os nomes dos primos, o que ninguém da família, exceto os de casa, sabia naquele tempo: Edson, Edir, Edilon, Elair, Eliane, Ernane, Edivaldo, Eustáquio, Edésio, Fernando e Antônio. E sabia a data de aniversário de cada um. Cansei de lidar com todos e nunca brigamos, novidade, porque as lutas corporais na época eram  normais entre irmãos e primos.

O caso que aconteceu em Santantônio comigo e um outro amigo foi  na nossa adolescência, nos já distantes 17 anos de nossas vidas. Estava eu andando por todos os lados, aguardando completar 18 anos para me instalar em busca de um emprego na Capital. Topei com outra pessoa, da mesma idade,  na mesma situação, esperando chegar a maioridade. Seu nome completo, não me lembro mais, vou apurar. Conhecido como Antônio da Eva, tinha parentesco com os Morais da região. Havia,  portanto, campo aberto em muitas fazendas para as nossas pousadas gratuitas. Infelizmente, o meu  amigo Antônio, que gostava muito de cantar, faleceu ainda novo, acho que antes dos 30 anos...

Andávamos a cavalo para todos os cantos da região sem um centavo nos  bolsos para comprar um escasso e solitário refrigerante, mas ainda assim apresentávamos bem-vestidos. Entramos certo dia nas dependências do então grupo escolar e fomos recebidos efusivamente  pelas professoras. Visitamos as salas de aula e mandamos com uma  coragem de malucos, que os alunos se assentassem, quando eles nem esboçaram gestos de respeito. Só não me lembro os nomes das professoras e sequer da diretora. Recebemos convite para a reza da noite e depois as  barraquinhas, essas no adro da belíssima igreja do padroeiro Santo Antônio. Estávamos no mês de maio, quando os leilões e os gritos de mercadorias retumbam nos ouvidos de frequentadores festivos.

As professoras que nos fizeram convite nos cercavam e pediam que arrematássemos alguma prenda. Havia frangos, requeijões, queijos, pencas de laranja, mexerica e dúzias de ovos.. Antônio e  eu  nem combinamos com antecedência o que faríamos para não passar constrangimento diante das moças, que imaginávamos tinham algum interesse num namorisco daqueles que existiam na época, inocente e sem  juras de compromisso. As moças não insistiram muito porque acreditavam que aqueles dois bobocas, ou babacas, que éramos nós logicamente, teríamos a  obrigação de arrematar uma ceia lindíssima e cheirosíssima, considerando a nossa incauta metidez. Para enfeitá-la havia um leitão assado com uma vermelhíssima e lustosa maçã nas narinas.E exalava um cheiro convidativo e que roía os nossos estômagos famintos.

Visitantes e fazendeiros por perto, alguns nossos desconhecidos, disputavam a ceia e já começaram impondo um  lance alto. Mas Antônio da Eva, irresponsável como ninguém, muito mais que eu, não deixava por menos. Subia o lance de 200 para 300, nem passando por números intermediários. As disputas com um grupo de Morro do Pilar acirravam aquela hasta e atraíam a atenção geral. Eram alguns rapazes e seus pais que pareciam famintos e queriam levar a oferenda, mas pensavam que em nossos bolsos havia dinheiro escapando pelas beiradas. Havia uma troca de desafios como, por exemplo: “Eu levo esta ceia  pra casa mesmo que venda o meu cavalo.” Aí, veio o nosso terrível aperto. Para o meu companheiro, não, sem a mínima preocupação do constrangimento de não ter um centavo no bolso. Mas para mim que, em matéria de dinheiro, cultivei a educação que meu pai me deu, seria o fim.

O valor da demanda estava em 700 e mais não sei o quê, acho que tantos cruzeiros. O grupo do Morro do  subiu para 800 e quis eu sair fora logo. Mas o irrequieto Antônio resolveu fazer o absurdo dos absurdos: aumentou a oferta para 1.000, o que desanimou de vez os nossos rivais. O leiloeiro só olhava para nós, ja cantava o “dou-lhe um, dou-lhe dois”e parecia mesmo que levaríamos o arremate para ser comido num lugar já escolhido por elas — a casa de uma professora — , quando me restou uma última saída: mantivemos um diálogo em voz altíssima, permitindo que os nossos adversários do suíno solene e seus enfeites ouvissem a seguinte frase: “Até 2.000 cruzeiros (a nossa moeda era mesmo o cruzeiro) a ceia será nossa, acima disso, não dá mais, né?” Foi a nossa salvação. Sentindo-se humilhados e ao mesmo tempo com a ânsia de vingar a nossa audácia, eles combinaram entre si uma  estratégia de tirar o  imaginário dinheiro de nossos vazios bolsos.. Segundo nos contaram mais tarde, queriam ver se chegávamos mesmo nos 2.000. Até 1.600 eles estavam com o desejado leilão nas mãos.

Aí foi que resolvemos dar o golpe fatal. Afastamo-nos sorrateiramente, aos  poucos, até alcançar os nossos animais que estavam amarrados debaixo de uma árvore. Como nos filmes faroeste, subimos nos arreios com rapiez e disparamos em direção à Fazenda dos Bambus. No meio do caminho, freamos as nossas conduções e começamos a  nos gabar do golpe. Uma verdadeira dor de barriga de risos quase nos jogava ao chão dos cavalos. Estávamos com fome, mas felizes por sairmos daquela enrascada que nós mesmos nos enfiamos.

Ao chegarmos à fazenda, tia Magda nos preparou um belo mexidão da madrugada. Passava de meia noite, mas ela sempre foi  e é assim: alimenta o mundo todo. Como sempre fez isso com satisfação, jamais negaria uma ceia de graça para um sobrinho de seu marido e para um seu sobrinho, o mais velho e sapeca de todos, mui amado e mimado por ela, modéstia às favas.

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