O pior defeito do ser humano, depois
de prevaricar, mentir, matar, roubar, sacanear, profanar as santas espécies,
violar sepulturas e tirar a inocência de crianças sei qual é e digo logo:
proclamar as nossas chamadas boas ações. Um dos fatores que mais me deram
satisfação na vida foi deixar a política, parar de pedir votos. Para mendigar
sufrágio definitivamente. Principalmente na segunda eleição o político precisa
ir lá e dizer: “Eu fiz, eu construí, eu doei, eu isso, eu aquilo”. De cara
calçada ou não.
Supunha na minha mais ingênua
imaginação que tinha me livrado dos relatórios de trabalho ou invenções
referentes a uma eventual prestação de contas. Mas, de repente, alguém aparece
com uma acusação: “Você nunca fez nada para São Sebastião do Rio Preto, e se
fez foi apenas difamar a nossa Terra!” Que susto tomei e juro que concordei com
tal julgamento. Deitei-me apoiando a cabeça no travesseiro que não tem culpa alguma
e é capaz de me tolerar. E comecei a
pensar desvairadamente: “Nada fiz! Nada, nada, nada! Que droga!” Dormi tarde da
madrugada e muito chateado comigo mesmo. Ao acordar, no dia seguinte, continuei
ainda me acusando, obsessiva e imperdoavelmente, por ter sido um omisso na vida
comunitária. Juro que pensei: mereço ser enforcado como um ladrão de cavalos
dos filmes faroeste.
O que eu fiz, afinal? Pensei que já
fui músico da Banda do meu avô, o Godó, de 8 a 16 anos. Relembrei-me ter
editado um jornaleco por algum templo, o Folha Sebastianense, cujas despesas
caíam somente na minha conta bancária. Imaginei que joguei futebol durante 14
anos e, para encerrar, fui presidente do
São Sebastião Futebol Clube. Também lecionei na escola local por uns tempos.
Ah, era um sonho de parte da comunidade ter uma estrada via Córrego dos
Moreiras à MGC 120, para evitar os tropeços no Alto do Veado e Caracol, então,
acompanhei o meu tio Godofredo nos órgãos públicos durante mais de um ano como
uma espécie de office-boy, esperando a obra que se concretizou.
O DER destruiu o campo de futebol
local. Posicionei-me humildemente ntre os que lutaram para a sua reconstrução,
na imprensa, empenhando-me com o meio de comunicação que dirigi, a revista
DeFato e o site DeFato Online. Lembrando ainda algum esforço pela cidade,
registramos em filmagens, com José Lucas Ferreira e Gilmar Caldeira Duarte, as
festas de setembro de 1983 a 1991, quando equipamentos desse trabalho eram
novidade e poucos tinham tal recurso. Os feitos citados nem merecem registro porque
tudo se constituía como um prazer e não me arrancavam esforço gigantesco.
Que fiz eu, então? Resposta: nada,
nada, nada! Pelo amor de Deus, eu queria ser quem a esta altura? Só me
conformei ao constatar existiram muitos que realizaram e foram esquecidos e argumentei com os meus
botões: se foram esquecidos A mais B mais C mais Z, então tudo normal se estou no
meio da vagabundagem do nada feito. Contudo, para o meu orgulho pessoal seria
preciso ter feito algo notável senão eu não teria sequer licença para morrer.
E, arrancando a máscara do cinismo pessoal, da falsa modéstia, consegui chegar
a uma façanha que, diria, ser notável, principalmente para quem não tem cargo
eletivo ou o poder nas mãos.
Estamos em 1971, mês de julho, entro
nas primeiras férias na antiga Companhia Vale do Rio Doce depois de ter uma
família composta de uma companheira e uma filha. Desembarco no antigo lar, tendo
pela frente 20 dias disponíveis, como eram as férias de antigamente. Sacrifício
para essa pequena família, mas fazer o que se tinha e tenho alguma vocação de
realizar um feito qualquer? Já chego com um planejamento definido para instalar
o primeiro aparelho de televisão na cidade.
Na chegada convoco o meu amigo
inseparável de outros tempos, que me encantava e me encanta com os seus causos
engraçadíssimos, João Guadalupe de Almeida, chamado por mim de Joãozinho Pão de
Queijo ou Kaki para todos em São Sebastião. Duas palavrinhas ao pé do ouvido, à
noite, e marcamos o início do trabalho para o dia seguinte, 2 de julho, às 7
horas da manhã.
Pegamos um aparelho de TV e fios para
energia elétrica e antena e fomos esticando morro acima no fundo da casa de
meus pais, casa e terreno que pertence
hoje à minha Mãe. No princípio, juntarem-se vários voluntários, incluindo
meninos curiosos, que iam dando uma mão daqui e dali. Era preciso bater o
pasto, às vezes abrir uma estradinha, erguer degraus, usando todo tipo de ferramentas de um roceiro. Em
contraposição ao suor que nos molhava, nada de imagens, fomos subindo, subindo,
subindo.
Faltavam fios para a eletricidade e
juntávamos mais e mais pedaços para carregar a energia. Joãozinho, prestativo
demais, mas ansioso, quase pulava de curiosidade quando atingíamos um aclive
acentuado e o aparelho era ligado. Mas somente os chiados eram ouvidos e
chuviscos vistos. Por enquanto nada animador, fora o desânimo das pessoas que
diziam: “Vocês vão pegar é carrapato, rodoleiro e navalha de macaco!”
Acima do meio do morro, que conhecia
desde criança, pois era companheiro do meu irmão Carlos e da nossa babá-cozinheira
Maria Lucinha na colheita anual de café, apareceram alguns sinais de imagens. O
trabalho estava muito cansativo, a ajuda voluntária desaparecia aos poucos, até
o Joãozinho resolveu parar por um dia.
Por esse dia, fiquei sozinho e, então, contratei para me ajudar o
saudoso e Nelson do Orozimbo, conhecido na cidade como Turino. Mas sem o Kaki
senti que não ia dar, visitei-o à noite e o convenci a permanecer ao meu lado.
Ele aceitou e retornou ao posto de bandeirante da TV.
Finalmente, chegamos ao topo do
morro, de onde, quando criança via estourar dinamites no Cauê, em Itabira. E aí
apareceu uma imagem límpida, cristalina, irretocável. Afoito, Joãozinho Kaki
saiu gritando morro abaixo: “Pegou a Globo, a Globo, a Globo!” Na época, a Rede
Globo de Televisão era uma novidade. Mas, ao voltar a imagem, de novo,
constatamos que a pioneira que entrou na cidade foi a conhecida TV Itacolomi
Canal 4. Globo era um anúncio de Detergente Super Globo. Risos e mais risos.
Pronto. Estava tudo resolvido.
Imagem, som, brilho e contraste, em preto e branco, claro, pois a TV a cores só
chegaria quatro anos depois na região. Mas a chacota de alguns amigos ou de eventuais
torcedores contrários continuava quente na cidade. A cada passo que dávamos
morro acima havia aquele tipo de piada que nos enchia os ouvidos: “Eles estão
subindo, veja se vou subir naquela montanha para ver televisão!” Jamais imaginavam
as pessoas que existia um plano já traçado para trazer a imagem para dentro de
casa.
Então, bastou que fizesse uma viagem
a Belo Horizonte e adquirisse todos os equipamentos necessários: quase mil
metros de fio condutor de imagens, chaves e tomadas para postes, um equipamento
chamado “buster”, além de uma TV novinha. Os meus 20 dias de férias voaram e chegavam ao fim e
tudo tinha de dar certo, infalivelmente, senão seria uma bruta frustração. E
deu certo na medida, houve uma estreia na grande sala da casa de meus pais, com
plateia enorme, para um jogo da seleção brasileira. Desculpem-me que nem sei o
resultado da partida. Mas foi um sucesso!
Aí está a façanha: com base no
projeto que executei, outras pessoas começaram a instalar o seu aparelho em São
Sebastião do Rio Preto. José Bonifácio de Almeida foi o segundo e as fazendas
da região ficaram repletas do novo meio de comunicação que chegava à Terrinha.
Não demorou nem um ano, a prefeitura local instalou um repetidor exatamente
onde captamos as imagens de Morro Escuro. O pioneirismo ficou registrado para
sempre, quem se lembra sabe, quem não sabe, é somente pesquisar.
Meu
avô Serafim Sanna trouxe o primeiro rádio para São Sebastião na década de 1940.
E nós tivemos prazer de ser pioneiros da televisão nos anos 1970. Contudo,
reconheço e bato palmas para ele: não fosse a companhia estimuladora do
Joãozinho Pão de Queijo jamais teria atingido o objetivo. E sem rir de mim
diante de um espelho, acredito que ainda consigo descobrir que plantei um pé de
alface ou de couve no fundo da horta de alguém que precisava. Fiz pouco por
minha Terra Natal, mas fiz alguma coisa. Quem sabe ainda faço mais, se Deus
assim o permitir.
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