segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

REPORTAGENS QUE NUNCA FORAM ESCRITAS (1) Godofredo, o neto

Para início de conversa, devo antecipar que o meu primo Godofredo Cândido Duarte  é um de meus personagens desta vida em que vivemos juntos e separados. Se o mundo acabar hoje, ou daqui a cem anos, ou mil, ele será o mesmo, independentemente do que acontecer nos anos subsequentes, assim será.  Alguém me pergunta: "Você tem estreitas relações com o Godozinho, em Ferros, onde ele mora?" Respondo já e já numa só palavra: "Não tanto". Outro argui: "Ele puxa seu saco diariamente ou, pelo menos, uma vez por mês?" Vai imediatamente a resposta: "Não" (Aliás, o puxa-saquismo é a destruição de qualquer sentimento positivo). 

Há quem faça um questionamento: "Você já recebeu dinheiro emprestado ou dado por ele?" A resposta é contundente: "Não". Mas tem uma pergunta que ninguém faz e que entrego estampada na bandeja: "Vocês já viveram momentos de dificuldades na vida e compartilharam essa época?" Resposta sem titubear: "Sim, vivemos. Só que tudo passou despercebido".

Vamos falar dele, o que interessa. Começo assim: como gostaria de ter aprendido e apreendido todas as lições que ele ministrou de graça! Acho que por ter nascido com dom musical, tornou-se uma criatura mansa como um cordeiro. Primeiro, nasceu de família de músicos natos. Aos oito anos, porque somos dos Almeidas, estávamos na  Banda do Godó. Eu, por imposição da família e da vontade de me superar, mas brecado pela baixa audição, sem reclamar, é claro. A Banda do Godó vem da Banda do Zé Grande, que vem de outras bandas de música herdadas do país colonizador, Portugal.  Nasceram outros instrumentistas nos Almeidas, dentre os quais meu pai Tãozinho, meu tio Zezé, além de outro tio, o Godofredo Júnior,  e o super-patriota e patriarca Godofredo Cândido d'Almeida, o Seu Godó. 

Nasceu também o Dezinho, um ano mais velho que nós, que já foi alvo de uma série de textos meus. O que Dezinho fez é inédito no planeta Terra.  E o Fantástico não mostrou, hein? Mas eu mostrei. Vou contar outra vez, se não roubar a paciência de algum eventual leitor. Vai lá: faltam cinco minutos para o prefeito de São Sebastião do Rio Preto, meu tio Serafim Sana Filho, hastear a bandeira do Brasil, exatamente em  7 de setembro  de 1990, sem som, ou melhor, em silêncio. Dezinho, como sempre ligado no que ocorre ao redor, corre a um bambuzal  localizado do outro lado do Córrego das Posses, que banha a cidade; corta uma peça de bambu, faz dela, magica e rapidamente,  uma flauta, retorna para o local de hasteamento da bandeira, posta-se à frente de todos como num palanque,  e executa magistralmente o Hino Nacional Brasileiro. Se estivesse sintonizado em rede nacional de televisão, o país inteiro se colocaria em posição de "sentido" neste momento.

Voltando ao Godó, ou Godoi, ou Godô, ou Godofredo, da Banda do Godó  ele começa a dedilhar, sem mestre e sem livretos,  um violão enferrujado. Paralelamente, os mais sensíveis, não eu, obviamente, de baixa audição, descobrem também que a sua voz mais parece o entoar de um canto de orquestra sinfônica do que propriamente o ressoar de algo que passa pelos pulmões, pregas vocais dentro da laringe e os articuladores - lábios, língua, dentes, palato duro e mandíbula. 

Os nossos encontros na vida continuaram e continuam: já escrevi que fui treinador dele e tentei aprender o ofício colocando-o frente a frente com mais um primo, Marcos Sana, inadaptado ao futebol para tristeza do meu tio, padrinho e compadre Líbio Sana. Marcos, no entanto, é uma peça inigualável. Ainda chego nele.  Em seguida, nos encontramos em campos de futebol, sempre como companheiros de equipe Só mesmo um exímio comentarista desse esporte diria que ele foi uma virtuose da chamada arte que Armando Nogueira tanto soube dignificar. Vamos reviver apenas um momento para saber o que Godó fazia de carinho, amor e amizade com a bola. 

Estamos em Santo Antônio do Rio Abaixo; jogam os times da cidade e o da vizinha  São Sebastião do Rio Preto; o jogo vai começar e, pela expectativa da torcida, a equipe local vai golear; Godó, do SSFC, estreia fora de sua posição, que seria o meio de campo ou o ataque; atua na zaga, por falta de um jogador que foi requisitado pelo outro lado, Nitinho, por sinal meu tio; o time de Santo Antônio tem um enxerto nacional chamado Zandona; a torcida vibra e Zandona vai tocar na bola. 

Abro um parênteses só para mostrar como  Zandona hipnotizou a cidade. Na caminhada para o campo, entregaram-lhe a tal pelota, em frente a igreja, nas ruas íngremes de Santo Antônio do Rio Abaixo; ele conduziu-a em mirabolantes embaixadas até o campo, ultrapassando buracos, pedras, paralepípedos e bloquetes. Gritos de "viva" e de "hoje vamos massacrar o Gambá" eram urrados na via sacra do Zandona pela descida nos morros. Odilon, um dos craques de nosso time, muito gozador por sinal, apenas soltou uma de suas risadas características, entre palavras: "Quero ver se faz isso dentro do campo!" 

Fecho o parênteses. O lance capital e fatal vai acontecer neste momento; todos os santantonienses, vivos e mortos, estão presentes, vibram e esperam o show de Zandona, jogador profissional do Bangu do Rio de Janeiro. Para se ter uma ideia, até o pároco local, Padre Argel Dias de Azevedo, com a sua lendária batina preta, está presente no campo. O momento futebolístico se desenrola na lateral-direita, rente ao ângulo de escanteio. Zandona chama Godó num gesto grotesco e "sassarica" diante dele, balançando as pernas como um Garrincha da alegria do povo. 

A torcida quase invade o gramado, num ato de euforia desesperada; Godó, único de nosso lado tranquilo de verdade, apenas espera pacientemente a sua vez; perto dali, eu como goleiro, tremo em cima das chuteiras, juro que sim; a torcida continua urrando ensurdecedoramente no aguardo de um drible humilhante. Aí o jogo muda, de repente, de água para vinho; depois de muita expectativa, Godó toma a bola de Zandona, que não é mais Zandona, pois se torna um marcador, um ex-Zandona; a bola é do Godó, toda dele, imperdível, que começa a fazer o seu show particular, enfiando-a debaixo das pernas do craque carioca do Bairro Moça Bonita do Rio de Janeiro;  o lance demora uns cinco minutos e Godofredo faz o que quer de Zandona, que sai não apenas humilhado pela sua própria audácia anterior, mas derrotado com o time; seu erro fundamental foi cutucar marimbondo com vara curta, disse Anão, um de nossos craques do melhor time que o Gambá teve. 

Fim de  jogo. Inacreditavelmente, eis o resultado: São Sebastião 7 x Santo Antônio 0. Para não dizer que tenho falsa modéstia, depois do Godó e do mano Carlos (depois dessa farra ele foi contratado pelo Nhô do Tanito, prefeito, para morar na cidade), fui apontado como o melhor em campo. Mesmo com um placar dilatado, peguei até penalidades incríveis e chutes pavorosos desse ex-Zandona. Silenciosa a torcida local, restou um torcedor do SSFC chamado José Longuinho, que não tinha um dos braços, mas uma garganta portentosa.  Zé Longinho resolveu azucrinar o ambiente no fim com gritos ao goleiro adversário, que levou sete nas redes: "Oh, goleiro, pode pegar que a bola é pintada, mas não é onça!" (Naquele jogo, houve a estreia de uma bola diferente das marrons, usadas até então).

Fica para outra ocasião mais considerações sobre Godofredo Cândido Duarte. Sua história é longa, bela e fantástica. Apenas acrescento: nunca fez nenhuma graça para ninguém rir, ou, talvez, somente para a sua namorada, a bela Heide, com quem se casou, de cuja união nasceram duas lindas criaturas: Laís e Leandro. 

Para encerrar, voltam a me perguntar: "Se Godó não ama você, por que você ama o Godó?" E respondo com desenvoltura: ele gosta tanto de mim que nunca disse isso a ninguém. É um segredo desde os tempos de criança.. E eu nem procurei, nem quis ouvir.  Sabe por sabedoria e conhecimento que afinidade não é paparicar, exibir, aparecer, estampar. Apenas poderia resumir em uma só palavra o significado universal do que é, ou seja,  AMAR É AMAR.

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